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Resenha: Emicida - Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa

O segundo disco de Emicida é um tapa na cara, sem luva de pelica: ácido, real e detalhista, o rapper coloca o dedo na ferida da sociedade.

Emicida

Desde muito antes de ser “descoberto” pela mídia especializada e se transformar em uma grande influência para a juventude, o jovem Emicida já chamava a atenção em suas mixtapes e músicas para as mesmas pautas: a juventude da periferia, a falta de oportunidades, a escassez de recursos, o racismo e o preconceito. Em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, não poderia ser diferente. As principais mudanças que são percebidas entre este e o álbum de estreia do músico, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui são as referências que Emicida trouxe de sua viagem à África, e a agressividade, certeiro dedo na ferida daqueles que ainda se incomodam em ver a verdade sob os olhos das ruas.

Para abrir o disco, “Mãe” é uma emocionante homenagem à batalhadora mãe do moço, D. Jacira, que até dá uma palhinha no final da música. A música pode ser tida como uma continuação de “Crisântemo”, do primeiro álbum, também autobiográfica, mas que conta a história do pai de Emicida, Miguel, que morreu ainda na infância do rapper. O símbolo feminino de coragem não fica só na abertura do trabalho: a sabedoria infantil de sua filha faz “Amoras” nascer, tão doce quanto “Sol de Giz de Cera” em O glorioso…, citando grandes nomes da representatividade negra, enquanto “Mandume”, já quase no fim do disco fala, entre outros temas, do desrespeito às mulheres e de sua resposta direta a todas as ofensas.

Em “8” são as ruas brasileiras que aparecem como um dos diversos temas,  já que é a música em que Emicida derrama toda a cultura acumulada durante seus anos de pedreiro que trabalhava para comprar livros e gibis japoneses. É na música também que ele homenageia os professores agredidos pela polícia no Paraná, pede atenção ao povo para a “burrice” que está dominando a “era da informação” e deixa o recado: se informe, procure saber, fique atento.

Já em “Mufete”, o teletransporte é garantido para as gingas da África, numa revisão digna de um historiador, que inclui a citação a Djavan e a cultura do Cabo Verde e de Angola, e pede respeito ao povo negro, em todo o mundo. “Sodade”, em tom de oração, repete o mesmo recado.

As parcerias da vez continuam sendo as mais diversas. Em “Passarinhos”Emicida Vanessa da Mata fazem um reggae para falar de oportunidades, que podem mudar vidas. Em “Baiana”, com Caetano Veloso, é a vez de uma música com mais cara de MPB ganhar corpo, falando dos encantos de uma mulher que enlouquece a cabeça de qualquer homem.

Para “Casa”, “Chapa”, “Boa Esperança” “Trabalhadores do Brasil” fica a missão de dar ao disco a dor e a indignação da raça negra tão sofrida, vítima do racismo que “não existe no Brasil”, da fuga forçada para busca de condições melhores para os seus, da luta que nunca parece ter qualquer resultado, da busca diária por uma série de direitos que já deveriam há muito ser garantidos, mas não encontram espaço.

Para encerrar o trabalho, “Salve Black – Estilo Livre” homenageia a coragem dos negros de fazer acontecer e vencer na vida, mesmo enfrentando tantas adversidades. O tributo também faz menção à união para alcançar a vitória em conjunto. A música encerra o disco em um samba que  coloca todo mundo para dançar.

Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa é um disco indispensável. Para quem quer entender a luta negra no Brasil e em qualquer lugar do mundo, para quem quer conhecer a multiplicidade do rap e do hip-hop, para quem quer viajar pelo continente africano, para quem quer entender o que está acontecendo com a música brasileira. E é claro, para quem quer entender a rima visceral e ferrenha de Emicida.