Não é de hoje que os comentários a respeito de festivais mundo afora têm chegado ao senso comum de que os artistas e formatos são tão parecidos que parece que temos um mesmo evento rodando o mundo todo, mudando dia, lugar e uma ou outra atração. Definitivamente não dá pra dizer isso do Popload Festival, que aconteceu ontem (15) em São Paulo, no Memorial da América Latina, e transformou o feriadão da Proclamação da República em uma imensa festa para os fãs de música alternativa que ali estavam.
Em um dos poucos erros do evento, o primeiro show do dia começou cedo demais com a incrível Letrux. Mesmo com um público interessante, muita gente acabou chegando perto do final da apresentação marcada para 12:15, horário difícil para quem tem que passar pelo credenciamento, retirar seu ingresso, se localizar pela área do festival e mais.
Dali pra frente uma das preocupações que todos tínhamos começou a ir embora: na edição de 2017 o sol literalmente queimou equipamentos de bandas que estavam no palco e fez com que assistir a um show inteiro fosse um árduo trabalho de devoção, já que procurar uma sombra fazia mais sentido.
Em 2018, porém, a chuva deu as caras e o que começou como uma garoa fininha ganhou corpo durante a apresentação de Tim Bernardes e Mallu Magalhães, um dos shows do dia que mostra que o Popload pensa à frente. Juntando os dois artistas para um show inédito, o festival colocou a dupla para cantar hits de ambas as carreiras solo, bem como sucessos de bandas ligadas a eles, como O Terno e Banda do Mar. Se pareceu cansativo para o público em geral em alguns momentos, definitivamente esse é um show que em uma casa de shows menor, com clima intimista e repleto de seguidores da talentosa dupla iria se tornar memorável, digno da gravação de belos vídeos com o público cantando em peso.
Quando o show acabou logo passou também a chuva e logo começou a ansiedade por um dos shows mais aguardados do dia.
O At The Drive-In nunca tinha vindo ao Brasil em seus 24 anos de carreira. Não apenas a escalação como o horário da banda de post-hardcore no Popload deram o que falar desde o início, já que o vocalista do grupo Cedric Bixler-Zavala é conhecido por performances explosivas em cima do palco, o que se reflete no público, e certamente teríamos fãs de artistas e bandas mais tranquilas já esperando para ver seus ídolos nas grades do festival.
Assim que começaram as primeiras notas de “Arcarsenal”,o que se viu no Popload foi uma prova clara de que a ideia da escalação era sair da caixa: tínhamos centenas de fãs celebrando a catarse que é, finalmente, poder ver uma das bandas mais explosivas da história do Rock And Roll moderno de perto, e muita gente de boca aberta com o que acontecia ali, principalmente porque há algum bom tempo as bandas de Rock não têm vontade/culhão de acompanhar suas performances ao vivo com a energia que é característica do gênero.
Nem terminou a primeira música, Cedric já havia jogado o microfone no pit, derrubado o pedestal algumas vezes e pulado dos amplificadores de guitarra, o que seguiu durante toda a (curta) apresentação de 45 minutos.
É claro que o choque de públicos causou alguns transtornos e muitos fãs que estavam à frente do palco para ver outras bandas da escalação se sentiram incomodados com tanta gente gritando e pulando na plateia, e esse é aquele tipo de problema onde a solução é mais difícil do que se imagina, principalmente quando o festival tem um só palco. Não dá pra deixar de escalar uma banda tão interessante quanto o ATDI e não dá pra impedir que os fãs de outros artistas estejam ali, então o que se espera é respeito das duas partes para conviver pacificamente, o que ao vivo parece ter acontecido onde estávamos, mas em alguns cantos gerou comentários agressivos nas redes sociais.
Cedric sabia do que estava acontecendo e, como é de costume, falou muita coisa nonsense ao microfone, mas em um momento em que pareceu falar sério, disse que sabia que as pessoas ali não o queriam, e que “era só esperar mais meia horinha pra daí se divertir”. Pra mim essa meia horinha passou como 3 minutos e deu pra banda mostrar um pouco do que é principalmente através de músicas do disco Relationship of Command, um dos mais influentes de 2000, que conta com participações de ninguém menos que Iggy Pop. O final veio com o clássico “One Armed Scissor” e a cereja no bolo.
Os fãs que vieram do hardcore e estavam ali presentes aos montes com suas camisetas de bandas como Descendents e Refused ainda teriam mais um bom momento de nostalgia na sequência. Também pela primeira vez no Brasil, o Death Cab For Cutie mostrou que é o exemplo perfeito para explicar um outro movimento importante do final dos anos 90 e começo dos anos 2000: o emo que fez um crossover e tornou-se o que se chama de indie rock.
Se o At The Drive-In começou no emo e foi para o lado agressivo da coisa em seus lançamentos futuros, o Death Cab fez o caminho inverso e tornou-se um dos grupos mais importantes do rock alternativo com suas belas composições.
Acontece que por um instante achamos que a banda nem tocaria, já que um comunicado do festival ao microfone disse que o líder da banda, Ben Gibbard, tinha um recado para o público, e todo mundo já pensou no pior. Quando a locutora percebeu o susto da plateia, logo emendou com um “antes do show” e tranquilizou todo mundo ao avisar que Gibbard havia sofrido um acidente e estava mal, mas não queria cancelar a apresentação. Sendo assim, tocaria sentado para seguir com a programação normalmente.
Não à toa, o recado era necessário: Ben subiu ao palco amparado por outro membro do grupo e mal conseguia andar, brincando depois ao dizer que só estava ali porque tinha tomado duas injeções para aguentar a dor.
A banda priorizou seu mais recente disco, Thank You For Today, lançado em 2018, e fez uma bela apresentação que exaltou a qualidade das composições do lesionado Gibbard.
Os momentos mais altos vieram, é claro, como a faixa título de Transatlanticism e “Title And Registration”, do mesmo disco. Ben fez o show todo com o mesmo entusiasmo e sua voz, característica e impecável, deu o tom de mais um show que estava longe da obviedade no Popload e funcionou muito bem.
Quem não funcionou foi o MGMT, que parece querer compensar a falta de entusiasmo do seu show com várias peças decorativas no palco, de pilares até palmeiras. A não ser pelo hit “Kids”, esse foi aquele show pra ir pegar uma comida e uma bebida, então usaremos o espaço para falar de duas apresentações que são dignas de muito espaço.
Há alguns dias nós estivemos no Festival Se Rasgum, em Belém, e eu disse na resenha que a resistência é feminina. Isso fica cada vez mais claro como ficou ontem no palco do Popload.
Primeiro tivemos a sensacional Debbie Harry, aos 73 anos de idade, liderando o mega influente Blondie, começando o show com a incrível “One Way Or Another”. Dali pra frente o que tivemos foi uma verdadeira aula de música como arte, revolução e protesto.
No telão, junto com fotos de Debbie em várias fases de sua vida, artes incríveis dividiam espaço com socos quase literais como uma que dizia “Punch a Nazi” e caía como uma luva para os tempos em que estamos vivendo hoje em dia.
Também priorizando seu mais recente álbum, Pollinator (2017), o Blondie encontrou espaço para músicas de várias fases da carreira e outros hits como “Maria”, em um show que era repleto de significados. Estávamos testemunhando ali uma das maiores figuras da história da música de pertinho, com uma saúde incrível e não apenas a capacidade como a vontade de expor suas visões ao microfone para quem quisesse ouvir, fazendo o que muita gente mais jovem tem se negado nos últimos tempos.
Quem esteve no Popload presenciou uma performance histórica, daquelas de ficar prestando atenção e guardando cada momento em sua memória, no que foi uma verdadeira aula da banda norte-americana que chegou aos seus 44 anos de carreira, após ter sido fundada em 1974 pela vocalista ao lado do guitarrista Chris Stein.
Chris não esteve com a banda e Debbie dedicou “Heart Of Glass” a ele, inclusive, e aqui vale outro destaque individual: o baterista Clem Burke é um verdadeiro monstro, mostrando que aos 63 anos de idade continua com o vigor de um adolescente ao não apenas conduzir a banda como também mandar ver em solos e viradas que remetiam a estilos como o Punk e o Hardcore.
Depois do show da Blondie, tivemos outro completamente diferente do poder da mulher, mas tão impactante quanto.
A neozelandesa Lorde tem apenas 22 anos de idade e quando lançou seu gigantesco disco de estreia, Pure Heroine, tinha apenas 16. Mesmo assim, a moça foi responsável por alguns dos maiores hits dos últimos anos como a canção “Royals”.
A abordagem de Lorde para a música pop é bastante particular e moderna, e seu show segue na mesma linha. Se não trouxe a mega produção que apresenta em locais como os Estados Unidos, compensou pela energia, presença de palco e dançarinos que as acompanhavam em diversos momentos.
As canções da jovem estrela são divertidas, empolgantes, contagiantes e contam com letras que falam de experiências bastante pessoais de Lorde.
Seja dançando ou nos emocionando com as sensacionais “Writer In The Dark” e “Liability”, Lorde gosta de colocar o coração em suas músicas. Ao escrever as letras, a cantora deixa escancarados seus medos, angústias e as experiências pelas quais já passou na sua ainda curta vida.
Não é comum ver uma artista se abrindo tanto para o público na música como ela faz, e quando entoou as duas baladas citadas acima, Lorde sentou-se à beira do palco para se conectar com a audiência, falando sobre como “Liability” era uma canção a respeito de pessoas que queria encaixá-la em lugares pequenos e deixar sua vida pior. Se você pegar a letra dessa canção, poderá entender as coisas que se passam na mente de uma jovem que, ainda adolescente, tornou-se uma sensação mundial e passou a carregar todo o peso da fama que muitas vezes já desgraçou as vidas de gente muito mais experiente em diversos estilos musicais.
No palco, assim como em sua carreira e em sua linha artística, Lorde é determinada e no Popload fez um show espetacular com seus trajes vermelhos, carisma e música pop que está longe de ser banal.
Foi um encerramento digno de um festival que parece ter pensado, desde o primeiro momento, em fugir do óbvio e não se prender às formatações artísticas que os festivais acham que estão dando certo e começam a dar claros sinais de desgaste.
Foi intenso, emocionante e divertido. Foi foda. Parabéns ao Popload!
Confira fotos exclusivas no álbum abaixo