Raul Seixas leu o livro Hinduísta Bhagavad-Gita três vezes em sua vida. O livro, no entanto, só foi absorvido em seu próprio canto na terceira vez, quando Raul já se interessava pela filosofia e quando resolveu se inspirar para escrever a música que daria nome ao seu talvez mais bem sucedido álbum.
A parceria com o então “jornalista” Paulo Coelho, trazia um conhecimento infinitamente mais profundo para suas canções. Em comparação com as músicas compostas por outros artistas contemporâneas a Raul, “Gita“, entre outros trabalhos, possuía diversos níveis de entendimento, indo contra as letras rasas e monotemáticas da moda.
O álbum, lançado em 1974, trouxe a Raul e a Paulo a mudança drástica de suas vidas. Mudança de país, de realidade. Eles atingiram o sucesso musical absoluto com o disco de ouro. Mas estavam nos Estados Unidos, em exílio, principalmente por causa da música “Sociedade Alternativa” que evocava “A Lei“, criada pelo mago Aleister Crowley em 1904.
“Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei
Todo homem e toda mulher é uma estrela
O número 666 chama-se Aleister Crowlei (…)”
A música trazia o número da Besta, presente no livro do Apocalipse, na Bíblia, evocando-o como o número do homem. Uma utilização da simbologia cristã de forma radical, feita para chocar e já usada pelo próprio mago Crowley. A música, acima de tudo, dava viva a uma nova sociedade. Algo extremamente perigoso em meio a uma ditadura militar.
Durante o exílio foi que Raul Seixas teria supostamente conversado com John Lennon, qua havia se interessado pelo projeto da Cidade das Estrelas. A verdade sobre esse contato só veio a tona com o lançamento da Biografia “O Mago” de Paulo Coelho, que deixava claro que tal conversa entre os dois ídolos do Rock nunca havia acontecido.
O álbum ainda trouxe a música “Trem das 7” em um dos primeiros momentos em que Raul usaria a analogia do trem para ilustra a vida. Analogia trazida novamente à tona por Paulo Coelho em seu mais recente livro, “O Aleph“. O contexto filosófico dessa analogia foi posteriormente e profundamente analisado no livro “Metamorfose Ambulante” de Mário Lucena e colaboradores.
Um dos grandes méritos de Raul estava no fato de conseguir abordar questões tão densas de forma leve, por vezes quase infantil. A genialidade do artista se mostrava afinada ainda em momentos como na irônica “Super Heróis“, rasgando a realidade do momento em duras críticas disfarçadas em um rock simples, de levada quase boba.
“Medo da Chuva“, uma das letras mais belas já escritas, falando declaradamente de uma espécie de liberdade que ultrapassa a que nos damos o direito de vivenciar, é mais um dos hinos impressos na carreira de Raul. Com linhas de harpa e orquestra, desfecho com coral e a participação de muitos músicos, mostra que os arranjos foram lapidados ao extremo.
E finalmente o hino “Gita“. Baseada no fragmento de texto do Bhagavad-Gita onde Arjuna interroga Krishna sobre seu significado, onde este responde:
“Entre as estrelas sou a lua… entre os animais selvagens sou o leão… dos peixes eu sou o tubarão…. de todas as criações eu sou o início e também o fim e também o meio… das letras eu sou a letra A… eu sou a morte que tudo devora e o gerador de todas as coisas ainda por existir… sou o jogo de azar dos enganadores…”
“Gita“, ao meu ver, mudou um pouco a face musical do país. Uma música com tamanha qualidade filosófica e poética, mantendo o contexto pop e sendo ouvida por multidões só pode confirmar para mim o tamanho da inteligência de Raul. Não há outro artista no Brasil que tenha sequer chegado perto dessa conquista.
62 músicos foram usados para gravar os arranjos dessa música. Raul queria algo épico. Ele sabia que seria uma marca deixada na face da história da música. O fechamento desse maravilhoso álbum não podia de forma mais sublime.