Texto por Tullio Dias (Cinema de Buteco)
Fotos do celular de Julia Goulart
Show é sempre um acontecimento com os mais variados tipos de pessoas. Na apresentação do The Cure no Rio de Janeiro não foi diferente e, entre os tiozões, as famílias e os adolescentes, havia também aquelas pessoas que roubam a cena e protagonizam momentos muitas vezes tão dignos de atenção quanto a performance principal dos artistas em cima do palco. Para uma banda que demorou 17 anos para voltar ao Brasil, o que se viu foi muita alegria da plateia de um HSBC Arena lotado.
Fiquei estrategicamente posicionado numa cadeira especial para ter uma boa visão do palco e também do público. Depois de lidar com três dias exaustivos na maratona Lollapalooza, em São Paulo, não pensei duas vezes em escolher o sossego e o conforto de uma boa cadeira. Que maravilha foi, apesar do som às vezes sair meio embolado.
Se no palco havia pouca coisa estranha para ser comentada, excluindo aqui a incrível capacidade vocal de Robert Smith durante as quase três horas e meia de show (ou 40 músicas), no meio da galera era bem diferente. A maior parte do público parecia cansado por ter enfrentado o longo (e pesado) tráfego até a Arena e só esboçava reação quando as músicas mais conhecidas eram tocadas. Com um começo arrebatador – que banda pode se dar ao luxo de tocar sucessos como “Inbetween Days” e “Just Like Heaven” na sequência e na primeira meia hora de show? – havia a impressão de que o show seria épico. Realmente foi, mas desde que você fosse um fã verdadeiro de Robert Smith. Foram muitas canções intimistas. Ou desconhecidas, para falar a verdade. Um jovem no fundo da pista não parecia se importar e continuava pulando freneticamente em todas as músicas, incluindo aquelas mais lentas. Era saudade demais no coração dele, imagino.
Durante “Lullaby”, um homem que voltava com dois copos de cerveja na mão teve o caminho impedido pela animada performance de um rapaz que dançava como se estivesse num concurso ou numa boate. Ele rodava, girava as mãos para o alto, fazia o passinho do volante depressivo, enfim, o show era dele. O homem da cerveja esperava tudo na maior paciência do mundo enquanto degustava do bom e velho suco de cevada. Azar da outra pessoa que esperava pelo seu copo e teve que tomar a cerveja mais quente.
Tão bonito quanto perceber o amor de um fã por uma banda é perceber no meio do público um casal que compartilha uma grande paixão em comum. Quis imaginar que o The Cure teve um tipo de papel importante na vida deles, como se fosse a banda que tocou no dia em que eles se beijaram da primeira vez, que eles escolheram se casar numa sexta-feira, enfim. A emoção do homem era tão grande que só pude supor que ele havia sido proibido pela mãe de ir no show de 1987 e perdeu o de 1996. Ou isso ou era a bebida malvada fazendo mais uma vítima. Só não digo que era o maior fã da noite porque ele saiu para buscar cerveja quando o The Cure iniciou uma série de músicas menos agradáveis.
A turma da fumaça não se intimidou com a repressão e marcou presença tão forte que parecia com o show do Planet Hemp no Lollapalooza. Qual não foi a minha surpresa quando um animado senhor de idade e que, ao contrário do nosso companheiro acima, possivelmente viu o The Cure em 87 e 96, interrompeu sua dança de passista de carnaval para abordar o casal que estava “numa boa”. A seguir uma mistura de leitura labial realizada por meu olhar atento de quem não estava marejado.
– Deixa eu dar um tapa? – pediu o senhor.
– Acabou. – respondeu o educado Sr. Fumaça, que sorriu e deixou o senhor chateado com a impossibilidade de reviver os seus tempos de Woodstock.
Sabe como é. Se o cara encontra a desculpa perfeita para beber numa quinta-feira, ele vai beber. Se o compromisso durar mais de três horas, as chances dele perder a linha e ficar completamente alterado são imensas. Foi o caso de um homem que estava próximo das cadeiras do HSBC. Após invadir uma área aparentemente restrita para os deficientes físicos, o sujeito foi virando uma lata de cerveja atrás da outra para o desespero de sua esposa, que acompanhava tudo olhando timidamente para as pessoas que estavam mais perto. Ela estava prevendo o que viria.
Não demorou muito para o cara chamar a atenção das pessoas com o seu comportamento peculiar: ele ficava todo blasê quando a banda tocava uma ou outra faixa mais conhecida, mas se transformava completamente quando o The Cure iniciava as faixas menos populares. O cara vivia cada música como se fosse a última. Gritava cada verso de maneira dramática, parecia que regia uma orquestra imaginária. Dentre as várias situações engraçadas, como uma espécie de alongamento maluco digno do Elvis Presley cover da Av. Paulista, foi uma mistura de gargalhada alta com medo quando ele tentou subir em cima da grade de proteção. Por sorte, sua esposa e um outro homem que estavam próximo agiram rápido e pegaram o dançarino pelas calças. Literalmente.
É surpreendente perceber que apesar de tantas músicas mais sensíveis e bonitinhas, o The Cure ao vivo tem uma presença de palco enorme. E é curioso dizer isso quando todos os membros da banda viram estátuas. Exceto o baixista Simon Gallup. É inegável a influência da banda nos trabalhos de gente como o Nine Inch Nails, Marilyn Manson e o Radiohead. Uma pena que o repertório tenha ignorado o meu querido Bloodflowers, de 2000. A introdução de “Pictures of You”, no comecinho, me deu a falsa expectativa de que poderia morrer feliz após ouvir “Maybe Someday” ou “There is No If…”, mas terei que esperar mais 17 anos para isso acontecer. Ou não. Espero que não.
Com um show pesado e sem as firulas de artistas de renome, o The Cure mostrou como é que se faz uma apresentação longa de verdade. Ainda que tenha sido cansativo, afinal de contas não é nada fácil ficar parado assistindo a um show com o dobro da duração daquilo que estamos normalmente acostumados, foi uma noite inesquecível e que ficará na memória de cada pessoa que se aventurou pela longa odisseia musical protagonizada por Robert Smith e seus companheiros.