É engraçado como esse nosso mundo gira. Desde algumas semanas atrás, o disco mais esperado do ano, deste ano de 2013 da era cristã, é Random Access Memories, o quarto do Daft Punk. Até aí, nenhuma novidade; de 1997 pra cá, o duo francês é sinônimo de vanguarda na música eletrônica, tornando-se referência para infinitos outros a cada lançamento, remix, ou turnê. Tal expectativa é mais que normal.
Mas poucas vezes desde a “retromania” do rock pós-The Strokes criou-se tanta expectativa por um disco assumidamente com cara de velharia. Nas poucas prévias e declarações sobre o disco, Thomas Bangalter e Guy-Manoel de Homem-Christo destacaram que a proposta de Random Access Memories era “olhar para trás para seguir em frente”, ou seja: a linha de frente da música atual buscava quebrar a barreira do espaço/tempo para nos transportar diretamente para um início dos anos 1980 vivido em pleno século XXI. E o que significa quando os robôs mais populares do universo fonográfico desde o Kraftwerk olham mais para trás do que em qualquer outro momento da carreira? O vazamento e consequente streaming de Random Access Memories, nesta segunda-feira (16), veio para finalmente nos responder.
Para começar a conversa, Random Access Memories é um disco longo: são 74 minutos de duração, o suficiente para lotar cada MB disponível em um CD. Apesar disso, não é um disco difícil, daqueles que sofremos para acabar logo, pelo contrário: é suave, equilibrado, cristalino. É um álbum produzido com precisão milimétrica, com timbres deliciosos, e um combo de mixagem e masterização que soa perfeito até em mp3 de baixa qualidade – e nos cobre de ansiedade para ouvir o que o LP pode fazer com as nossas caixas de som. Tecnicamente, então, ponto para o Daft Punk. Mas se produção bastasse para construir carreiras de sucesso, talvez Katy Perry tivesse mais respeito e credibilidade que o Sex Pistols. O que Random Access Memories tem a nos oferecer artisticamente?
A dupla francesa sempre reverenciou o album oriented rock ou adult oriented rock (AOR), estilo popularizado no fim da década de setenta que mistura elementos de disco music, soul, R&B, funk e rock, mais especificamente através da cruza do rock com o jazz, o fusion. Canções de nomes como Chic, Breakwater, Billy Joel e Electric Light Orchestra foram sampleadas em grandes sucessos do Daft Punk, mas o novo álbum leva essa paixão assumida além: é um tributo vivo ao AOR.
Random Access Memories é o trabalho mais orgânico da carreira do Daft Punk. Saem os samples distorcidos e reconstruídos à exaustão, e entram instrumentos reais, como a guitarra gravada por Nile Rodgers – responsável não apenas pelo Chic, mas também por linhas inesquecíveis de guitarra como “Let’s Dance”, de David Bowie – e a bateria de John “JR” Robinson, parceiro de longa data de ninguém menos que Quincy Jones. Tudo isso vem amarrado por batidas e programações eletrônicas, mas com duas nítidas diferenças: sem as explosões de sintetizadores dos álbuns anteriores, nem a absorção imediata de sucessos anteriores da dupla.
Basicamente, Random Access Memories tem três “tipos” de faixas: os grooves dançantes, as baladas com resultados irregulares e as faixas épicas e grandiosas que mesclam elementos dos dois tipos anteriores.
No primeiro time, temos “Get Lucky”, o primeiro single do álbum, cujo potencial para hit-chiclete é tão grande que apenas o teaser divulgado nos telões do Coachella foi suficiente para colar nos cérebros de qualquer um que habitasse a internet nas semanas seguintes. Além dela, temos a grandiosa “Give Life Back To Music”, que abre o disco como uma tour-de-force dançante, a deliciosa “Lose Yourself to Dance” e a animada “Fragments Of Time”, que tem um jeitão de single do Hall & Oates.
O segundo, o das baladas, é o tendão de Aquiles do álbum. Há algumas boas surpresas, como a belíssima “Motherboard” e a ótima “Doin’ It Right” – com voz do Panda Bear – mas “Within” e “The Game of Love” exalam cafonice, enquanto “Beyond” não conquista nem incomoda, apesar de ter uma levada interessante de baixo e bateria. Para fechar o pote, temos a dispensável “Instant Crush”, que inclui a participação de Julian Casablancas (The Strokes).
Já a seleção das faixas mais épicas do álbum é liderada pela impressionante “Giorgio by Moroder”, que em 9 minutos consegue a façanha de misturar de forma surpreendentemente conexa sintetizadores à la Kraftwerk, levadas dignas do Steely Dan, dois solos de bateria e discursos do pioneiro da disco Giorgio Moroder . “Contact” é outro épico, e fecha o álbum com maestria. Mas os mais de 8 minutos de “Touch”, com vocais do ator e compositor Paul Williams, tenta sem sucesso repetir a mistureba de “Giorgio by Moroder”, desta vez com elementos que funcionariam bem apenas em musicais de segundo escalão.
Random Access Memories não é de forma alguma um álbum ruim. É o melhor álbum do Daft Punk em muitos aspectos – apenas Discovery (2001) chegou perto de soar tão sólido e coeso. Mas a produção impecável não esconde o fato de que, durante os 74 minutos de duração do disco, o duo parece resgatar, resgatar e resgatar sem conseguir andar para frente, apenas montando as peças do quebra-cabeça ligeiramente fora de ordem – o que não implica em avanço. Se Random Access Memories fosse o álbum de estreia de uma nova dupla de produtores, poderíamos prever uma carreira promissora à frente dos franceses. Mas tratando-se da dupla que ditou tantos rumos tomados pela EDM desde o fim dos anos 90, Random Access Memories parece ficar aquém do esperado, e expectativa, tratando-se de Daft Punk, não é algo simples de se ignorar. Uma pena.
Random Access Memories está disponível em streaming gratuito no iTunes, e sai oficialmente na próxima terça-feira (21).
Nota: 7