Entrevista: Lenine - "'Chão' é o meu romance"

O TMDQA esteve em um show do cantor em Petrópolis (RJ) e bateu um animado papo com ele no camarim.

Foto: Nathália Pandeló
Foto: Nathália Pandeló

Lenine em Petrópolis

Fotos: Nathália Pandeló

Entrevista: Daniel Corrêa, Nathália Pandeló e Luiz Antônio Ribeiro (Acontece em Petrópolis)

A construção imponente na entrada de Petrópolis (RJ) já abrigou ricos e milionários, apostadores, grandes nomes da música e anos de abandono e decadência. Hoje propriedade do Sesc, o Palácio Quitandinha abriga o Festival de Inverno e naquela noite de sábado, receberia Lenine.

Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, pernambucano nascido no dia de Iemanjá, dedicou mais de 30 anos de seus 54 à música. Com uma discografia curta e muito consistente, o cantor e compositor mistura elementos do rock e da música eletrônica com elementos regionais em canções com uma forte identidade própria e de um lirismo ímpar.

Após flertar com o pop em “Na Pressão” e “Falange Canibal”, Lenine começou uma jornada mais experimental com “Labiata” até chegar em “Chão”, seu último disco, feito com sons orgânicos e efeitos de espacialidade, quase clamando para ser ouvido com calma, com bons fones.

Pensando em como seria a transposição desse espírito para o show, seguíamos pela antiga cozinha do Palácio, até o lado do palco de onde vimos que os sorrisos e alegria conhecidos pelo público são os mesmo da (longa) passagem de som e do camarim, para nos receber para uma conversa.

 

Lenine em Petrópolis

O “Chão” é um disco muito orgânico, é quase uma experiência pra você ouvir e perceber cada nuance. Como é o processo pra trazer isso para o palco?

Que bom você ter sacado isso porque me abre a janela pra poder falar um bocado sobre esse assunto. O “Chão” tem essa peculiaridade: o fato de ter nascido já com esse desejo de fazer um projeto sem bateria e sem percussão. Eu já sabia que poderia usar uma ferramenta muito interessante, e que eu sou apaixonado, que é o surround e poder brincar com a espacialidade do som. A gente é bidimensional no que diz respeito ao ouvido, quando você vai num show é L e R (Left – esquerda e Right – direita), um sistema que simula o ouvido. A gente quando assiste um filme, não sente estranheza do som estar vindo de vários lugares: o surround é uma ferramenta do áudio.

Então o “Chão” quando eu comecei a gravar, já sabia que poderia usar um projeto que se adequaria em demasia pra esse tipo de formato. E acho que isso foi muito acertado porque quando a gente descobriu que poderia usar sons do cotidiano, já percebi que poderia usar esses sons de maneira tridimensional e brincar com esse eixo. É de trás pra frente, ora de um lado pro outro, ora em X, ora em cruz. Isso pra quem está assistindo é um mergulho que trata de uma experimentação sensorial. O cara realmente vai estar mergulhado no show e no som de “Chão”.

Com relação ao disco, ele parece muito diferente da sua discografia. E depois do “Acústico MTV”, teve o “Labiata”, o “Lenine.doc” e agora o “Chão” é bastante diferente. Como você vê esse disco dentro da sua discografia?

Eu acho que ele dialoga muito com o “Labiata”. O “Lenine.doc”, na verdade, foi um disco de coletâneas: foi tornar física uma coisa que não existia, todas aquelas faixas foram feitas pra coisas tão específicas e nunca saíram nos meus discos.

No fundo, uma coisa que fica muito evidente no “Chão” é essa sonoplastia, vamos dizer assim, ou relevo sonoro que a gente criou, mas que esteve sempre presente em todos os meus discos. E digo mais, em todos os discos, a primeira coisa que eu fazia era um banco de sons pra garantir que ninguém tivesse aqueles mesmos ruídos. Geralmente, uma coisa que me incomoda, mas que eu reconheço ao ouvir no rádio. Tem o Juno 60 o Júpiter 8 (teclados), ouço o timbre do negócio e é uma loucura pra quem trabalha com áudio. Então a maneira de eu burlar é fazer um banco de blindagem que permeia cada um dos meus projetos. Nesse sentido, o “Chão” não é tão diferente assim, talvez o que seja mais evidente é o fato da gente ter levado isso até as últimas consequências e de alguma maneira isso me expôs muito! É um disco muito cru nesse sentido, as músicas estão praticamente despidas, é tudo extremamente íntimo porque os arranjos são compostos de muitos silêncios, de muitas pausas. Então por essa infinidade de coisas, por ele ser mínimo, por ser meio sintético, acho que talvez pareça, de alguma maneira, mais descolado da minha discografia, mas eu não penso assim não. Acho que é um pouco mais íntimo por causa das ferramentas que usei, por causa da capa que sou eu e meu neto. Eu estou procurando, cara! Em cada projeto eu mergulho assim mesmo, no escuro!

Recentemente você fez shows comemorando 20 anos do “Olho de Peixe” (disco feito com Marcos Suzano). Como você vê a diferença entre esses 20 anos que passaram?

Nenhuma, rapaz! Pra gente é uma loucura! Porque foram 20 anos de “Olho de Peixe” e 15 anos sem tocar junto! E a gente nem ensaiou porque essas coisas não se ensaiam. Cara, na passagem de som, todo mundo chegou e olhou um pro outro e  falei: “bicho, eu não me lembro de nada, eu não me lembro de…” (Faz com as mãos como se pegasse um violão e tocasse um acorde) E rolou…aí foi fácil, foi divertido. Eu acho que eu sou um cara muito felizardo porque quando eu olhei pra trás eu vi que tudo que eu tinha feito tinha muito carinho envolvido, muito afeto. Isso é bacana porque deixa um resíduo, independente de todos os projetos que fiz, cada um que eu me envolvi. Sempre foi uma coisa de muita troca de intimidade. Dependendo de como isso acontece é pra marcar a vida toda, pro bem ou pro mal, mas comigo tem sido só pro bem! Em cada um dos meus projetos ficou muita amizade, ficou muito carinho, muito afeto, muito amor mesmo!

Eu vi em um documentário seu você que não se sentiu vindo pra “uma cidade grande” quando chegou ao Rio. Pra você a experiência foi de sair de uma cidade grande, o Recife, pra uma cidade pequena que é o bairro da Urca. Como o Rio foi determinante no tipo de som que você faz desde aquela época?

O Rio foi determinante em tudo! Mais do que no som que eu faço, o Rio foi fundamental pra minha formação, pra minha formatação. Foi o Rio que me deu o filtro que eu tenho hoje, ele me deu essa coisa de trânsito que só o Rio tem. Talvez não fique muito evidente pro brasileiro porque o brasileiro quando ouve minha música salta aos ouvidos o meu lado nordestino. Quando eu saio do Brasil isso se perde: o que salta no ouvido do estrangeiro é o que a minha música não tem de nacional.

Então isso tudo é muito bom porque não tem adjetivo, não tem muita arrodeio e faz parte também do meu papel desmistificar que é um trabalho como outro qualquer e que você tem que ter muito empenho. Faz a diferença pra quem faz quando realmente faz. Isso não muda, cara! Na arte fica mais evidente porque você está ali exposto. Eu sou péssimo ator: tem gente que está mal, mas está ali no palco desempenhando lindamente. Eu não consigo não, cara! Não tem muita preparação, não tem muito ensaio, não tem muita marcação, tem uma coisa de um sabor do agora que é a intuição que sempre pilotou minha vida e que vou continuar a deixar pilotar porque ela tem acertado.

Vou aproveitar e juntar duas perguntas: As duas falam do panorama da música que está mudando um pouquinho. Primeiro, a relação do ouvinte com o disco. Por exemplo, o Chão é um disco muito conceitual, como você vê isso mudando…

Essa é uma palavra muito estranha, “conceitual”. O que é conceitual? (Risos) Tudo é conceitual. Tudo é a partir de um conceito. Tudo é a partir de um conceito: pode não ser muito o teu conceito, pode não te dizer muito, mas tudo tem um conceito. Perdão, eu estou falando isso porque isso é muito estimulante e a gente tem pensado nesse assunto. Logo que a gente foi estrear o show, a gente falava assim “é um projeto estranho, né? sem bateria, sem percussão.” Restringir isso às salas, surround, quando a gente for fazer, tem que ter uma arquitetura diferente, como percussionar as caixas pra ter um melhor aproveitamento. Então essa estranheza toda não existe. Tudo depende de como você joga e da maneira com que joga. Não tem essa coisa de ou é difícil, ou é estranho. Constatei isso com “Chão”, que é um projeto longevo: eu estou há um ano e meio com ele e vou até o final do ano cheio de trabalho com tudo “bombadaço”. Tem muito chão ainda pra eu percorrer e, no entanto, num primeiro momento, deu essa impressão.  O “Chão” teve essa agradável surpresa também, essa resposta imediata de tudo. Quando a gente vai, não só dentro do Brasil, fora dele, cara, as pessoas estão cantando o repertório todo… quer dizer, não é tão estranho assim, não quanto têm achado. Desceu redondo.

Mas então, eu estava dizendo, eu vejo “Chão” também como uma obra completa, ele é um todo, né? E hoje a gente vive na era do mp3 que você vai lá e compra por $0,99 uma música…

Sabe o que é, eu já falei isso outras vezes, o disco já é diferente. Tinha também um desejo de ser diferente: em muitas músicas do Chão eu não repeti nenhuma frase, nenhum refrão. Isso foi intencional. As músicas tem 2:30, 3:00, no máximo. Isso também foi intencional. Quando você faz um disco, você faz uma coletânea de canções, é como se fosse uma coletânea de contos. “Chão” é um romance. “Chão” é meu romance. Então, é uma narrativa só. Tudo é entremeado, tem um por que, cada música serve de escada pra um novo degrau que é a música seguinte.

Parece que você foi um dos artistas que apoiou toda a discussão em torno do ECAD. Agora as pessoas estão começando a debater sobre o assunto. Como você vê esse panorama atual que parece que vem mudando?

As pessoas sempre debateram, mas agora meio que estão dando uma resposta. É bonito ver tanta gente de uma diversidade tão grande de expressões em torno de uma coisa. Isso é impactante pra gente também. É uma coisa que urgia, algo que a gente já debatia há algum tempo, mas agora está mudando e até demorou pra acontecer:  a gente tem que tomar essa iniciativa como cidadão e cada um lutar para suas conquistas e suas melhorias em cada uma das áreas e atividades.

A história dos direitos autorais é uma coisa que urge porque a cultura da canção é o DNA da nossa nação, portanto há que se ter muito carinho com isso tudo. Trata-se de educação: quando se fala de cultura, se está falando de educação. Os direitos autorais no Brasil ainda é uma coisa muito anacrônica porque surge o ECAD em 73, mas já surge com um órgão regulador que é o CNDA – Conselho Nacional de Direito Autoral. O Collor quando acabou com o MINC, tudo que era tentáculo do MINC – autarquia, secretarias – desapareceram. Então o ECAD virou um anacronismo só, sem regulação, sem regulamentação, uma empresa privada que ninguém sabe o que é. Eu como autor não posso entrar no ECAD, só uma sociedade que me representa que é recebida por eles, apenas pessoas jurídicas.  Hoje a gente está em casa e recebe tudo que é débito nosso, conta de luz, de gás, telefone e se a gente não paga em dia, isso recai sobre juros! Se não pagar, vão cortar! Ora, por que tudo que é crédito meu, eu tenho que correr atrás feito um louco? Chega ao cúmulo de existir uma coisa chamada crédito retido que é um bolo de dinheiro que fica lá e eles dizem assim: “eu não sei que obra é essa!”

Wando fez “Moça”, sabe? Mas o cara da rádio ao invés de colocar “Moça” colocou “Massa”, aí o cara fala: “essa música não sei qual é”, aí o crédito fica retido. Estamos no mundo digital, minha gente! Então são questões que tem a ver com aprimoramento, melhorias, transparência. Acho que é isso: sou completamente a favor da gente melhorar!

Vamos agora, senão eu não faço o show, né? (risos)

Lenine em Petrópolis

O Show:

Uma lâmpada se acende sobre Lenine, como uma ideia que surge. Já havia passado quase metade do show e ele, pela primeira vez fala com o público. Fala que canções são como filhos que você joga no mundo. Que você acaba dando prioridade para as mais novas.

Mas não era só isso. No espetacular show da turnê “Chão”, Lenine recria canções de todas as fases de sua carreira com a estética do projeto atual, transformando o teatro em uma grande instalação sonora, com ondas, pássaros, cigarras, passos e camadas de som que criam uma imersão completa nas canções.

Imersão essa intensificada pela espetacular e minimalista iluminação, como a luz que se acendeu sobre Lenine.

“Chão” é um show imperdível. É a chance de ver um dos artistas mais criativos desse país em um dos seus melhores momentos.