O rock não vive um bom momento. Bandas de rock só atingem o topo das paradas em semanas de poucos lançamentos expressivos no pop, e artisticamente há poucas inovações e muitas leituras inexpressivas do que já foi cool um dia, em recriações destemperadas de estilos estourados há dez, vinte, cinquenta anos. Não há, entretanto, motivo para pessimismo. Ainda há muitos artistas dispostos a encontrar um caminho inexplorado entre tantas referências, e no mar sem fim da internet existem grupos que, conscientemente ou não, tentam o mais difícil quando a regra é repetir o óbvio. Perdido nessa infinitude está o Scalene, quarteto de Brasília que acaba de lançar Real/Surreal, o segundo álbum da carreira. Mas que podia ser o primeiro, e em muitos sentidos é.
Antes capitaneado por uma vocalista, o Scalene estreou em 2011 com Cromático, um álbum repleto de boas referências, mas excessivamente calcado no lado mais previsível e gasto do pop punk da última década. Havia bons momentos, como “Ilusionista”, mas ainda era pouco para merecer o destaque amplo que buscavam. No ano após Cromático a banda ganhou público, perdeu a vocalista e tornou-se um quarteto. Liderado pelo guitarrista e (agora) vocalista Gustavo Bertoni, principal compositor da banda ao lado do irmão, o também guitarrista Tomás Bertoni, o Scalene ganhou confiança, maturidade e transformou completamente o próprio som. É uma nova banda – completada pelo baixista Lucas Furtado e o baterista Phillipe Nogueira – dentro do esqueleto da antiga.
Real/Surreal é um projeto ambicioso. É um álbum duplo ou dois dentro de um só, dependendo da edição que você adquirir. Ambos têm 18 músicas, divididas em dois capítulos temáticos, e narram a saga do “Sonhador”, personagem abstrato criado em “Sonhador I”, faixa acústica lançada como single em 2012.
Real compila faixas mais próximas da sonoridade de Cromático. São oito músicas mais próximas do post-hardcore, mas que vão um passo além do trabalho anterior. “Sonhador II” abre o álbum com uma pancada, mas a energia cai em “Marco Zero”, que dá continuidade à saga do Sonhador. “Marco Zero” não é uma faixa ruim, e ecoa bons momentos do Thrice, mas fica apagada entre “Sonhador II” e a excelente “Nós > Eles”, uma das mais pesadas do disco. Isso ocorre outras vezes em Real. “Prefácio”, por exemplo, é ofuscada pela belíssima “Silêncio” e pelo post-grunge de “Forma Padrão”, e “Amanheceu” tem talvez a letra mais bonita do álbum, mas perde em emoção para o refrão épico de “Disfarce”, que soa como uma versão mais refinada e visceral do Silverchair na era Freak Show.
O lado A de Real/Surreal deixa claro que o Scalene funciona melhor quando ousa mais. E isso fica ainda mais evidente em Surreal, que começa após um breve interlúdio instrumental ainda no primeiro disco.
Logo na primeira faixa de Surreal (faixa 10 na versão simples do disco), o single “Danse Macabre” (assista ao clipe no fim do post) a diferença entre os dois temas fica nítida. A introdução sombria ao piano antecede um riff robótico e sujo à la Queens of the Stone Age, mas o resto da canção evita o que poderia facilmente se tornar um plágio de Josh Homme e cia. e privilegia a influência de nomes menos conhecidos como o grupo americano O’Brother ou os ingleses do Maybeshewill. Essa é a maior qualidade das composições do Scalene: saber aliar influências de nomes estabelecidos a outras mais obscuras, unindo o mainstream e o underground na mesma redoma. Isso resulta em uma mistura ainda heterogênea, mas que caminha rumo à consolidação de uma identidade única. E o melhor: os versos funcionam perfeitamente, mesmo cantados em português.
“Milhares Como Eu” beira o post-rock, e em contrapartida a brutal “Karma” pode ser considerada uma cruza de trabalhos mais recentes do Metallica com timbres próximos aos do new metal. Pode parecer esquizofrênico, e à primeira audição a impressão é justamente essa; mas com o passar do tempo fica mais fácil entender a diversidade de Surreal. “O Alvo” e “A Luz e a Sombra” percorrem a trilha mais experimental do post-hardcore, enquanto os versos de “Ilustres Desconhecidos” lembram Foo Fighters mas contrastam com o interlúdio angustiante que remete ao lado mais psicodélico do Korn. As três faixas restantes são todas lentas: a bonita “Surreal”, “Anoiteceu” – contraponto a “Amanheceu”, com um emocionante arranjo de cordas – e “Branco”, que encerra o álbum de forma discreta.
Real/Surreal poderia ter sido enxugado para se tornar um trabalho mais curto e objetivo. Mas nesse caso a diferença entre o antigo e o novo Scalene ficaria ainda menos compreensível, o que poderia afastar quem acompanha a banda desde o início. De qualquer forma, não deve se tornar o álbum definitivo do grupo. É apenas um ritual de passagem muito bem desenvolvido para os próximos trabalhos do quarteto que, caso cumpra a difícil tarefa de se manter nesse grau de evolução, facilmente se tornará uma das maiores surpresas desta geração do nosso rock. Especialmente se os próximos passos forem ainda mais arriscados que Real/Surreal.
Real/Surreal pode ser baixado de graça ou comprado em CD no site da banda. Versões digitais de alta qualidade também estão disponíveis no iTunes e no OneRpm.
Nota: 7,5/10