Fotos por Fabiano Veneza
Devendra Banhart é um homem simpático, cordial, bem-humorado mas inquietamente reservado. Nascido no Texas, criado na Venezuela e californiano por conveniência desde os 13, o cantor responde com honestidade a qualquer pergunta, mas nunca sem deixar a sensação de que filtra a própria fala para manter-se adequado ao convívio social. “Não gosto de falar”, confessa. “Gosto de escrever, gosto de cantar. Não sei porquê, mas os momentos em silêncio são melhores para mim”.
Apaixonado pela cultura brasileira, Devendra derreteu-se pelo país em uma breve conversa com a reportagem do Tenho Mais Discos Que Amigos! na última quinta-feira (14), minutos antes do segundo show da atual turnê pelo Brasil, no Rio de Janeiro. Devendra veio divulgar Mala, o oitavo álbum de estúdio, lançado quatro anos após o antecessor, What We Will Be (2009). Acompanhado em estúdio e nos palcos por Rodrigo Amarante, do Los Hermanos, o americano mostrou admiração sincera pelo Brasil, e se desculpou pela insistência em responder a entrevista em um portunhol que se revelou uma salada de línguas batizada por ele de “francespanhinguês”. “Quero tentar”, pediu.
A última vez do músico no país foi em 2006, e de lá para cá muita coisa mudou: o hippie descamisado de barba cheia e cabelos longos deu lugar a um rapaz alinhado demais para simular uma casualidade estética no figurino, e musicalmente o pai do “freak folk” – rótulo criado pela imprensa americana para explicar a mistura de folk com música experimental de Devendra – soa mais focado e seguro, mesmo quando disposto a experimentar.
Tenho Mais Discos Que Amigos! – Recentemente você afirmou se sentir confortável quando está desconfortável. O que isso quer dizer?
Devendra Banhart – Bom, faz parte do meu trabalho. É como se eu seguisse desconfortável por muito tempo, e nunca alcançasse o conforto. Então tive que aceitar o desconforto. Eu tenho 32 anos, então convivo com isso há 32 anos.
TMDQA! – E como você se sente em voltar ao Brasil depois de tanto tempo?
DB – É outro mundo. Eu mudei muito também, e trouxe novas referências que tenho lá de fora. Antes de vir para cá pela primeira vez, o Brasil era como uma fantasia. Eu achava que eu ia caminhar pela praia e o Ney Matogrosso iria aparecer dançando, que o Hermeto Pascoal estaria em cima de uma montanha tocando, uma coisa muito incrível. Ainda é especial, mas muito diferente. Em muitos sentidos, é como se eu estivesse aqui pela primeira vez.
TMDQA! – Você é frequentemente classificado como um artista folk, mas você sempre demonstrou um conhecimento profundo de vários tipos de música, do hardcore e o ska à música clássica. Quando você cria, você se deixa influenciar por todos esses estilos ou separa o seu gosto musical do que pretende fazer como músico?
DB – Minha música é muita referencial, muito pós-moderna. Às vezes em uma canção eu faço referência a outras cinco, ou seis. Mas nos primeiros discos eu tinha uma paleta muito pequena de opções. O primeiro álbum tem apenas um violão, mas na minha cabeça estou tocando algo do Faust, do Slaphappy ou do Can. Para mim pode ser krautrock, mas as pessoas dizem que é folk porque só tem violão. Não faz sentido, porque eu tenho músicas que não têm nada “freaky” ou nada “folk”. Fica muito banal.
TMDQA! – Mas chega a te incomodar o fato de tantos veículos da imprensa avaliarem e classificarem a sua música dessa maneira?
DB – Bem, eu preferia que fosse diferente, que avaliassem cada música de uma forma, por exemplo. Mas insistem no mesmo rótulo de “folk”, não consigo entender. Seria mais interessante ver uma análise mais criativa, ou pelo menos mais direta, do tipo “esta música é desse estilo”, porque mesmo quando faço música eletrônica chamam de folk. É preguiçoso e mal-educado.
TMDQA! – Ao mesmo tempo, Mala foi considerado pela imprensa como um de seus melhores álbuns, e o melhor entre os mais recentes. Você concorda?
DB – Acho que as pessoas sempre acabam achando o seu álbum mais recente o melhor. Pessoalmente, acho todos muito ruins (risos), então… Para mim, Mala é um álbum transitório. É uma ponte. Muito tempo se passou entre este e o anterior, e não foi bom deixar tanto tempo passar porque acumulei muita coisa dentro de mim nesse intervalo. Mala é como um ponte entre tudo isso que acumulei e o agora.
TMDQA! – E por que tanto tempo sem gravar?
DB – Porque eu senti que precisava disso, queria me dedicar às artes visuais. Mas não foi uma boa ideia. Eu estava experimentando, estava cansado de gravar, sair em turnê, gravar, sair em turnê, sempre a mesma coisa. Agora, quero dedicar um semestre à música e outro às artes visuais.
TMDQA! – Então há planos para um novo álbum em breve?
DB – Só quanto eu tiver tempo para escrever. Não sou como o Rodrigo Amarante, que compõe o tempo todo, duas ou três canções por dia. Ele está sempre tocando violão, até dentro do ônibus, e está sempre escrevendo, escrevendo, escrevendo. Ele é um gênio. Eu toco violão umas duas vezes por ano, é algo muito raro para mim. Às vezes eu olho para o instrumento e me pergunto: “O que é isso, o que é essa coisa? Ah, é um violão” (risos). Eu escrevo de uma maneira mais conceitual; primeiro penso nas letras e em que tipo de música eu gostaria de fazer para depois compor.
TMDQA! – E o que quer dizer o nome do disco? Em português e em espanhol ele tem um significado muito pejorativo.
DB – Sim, para mim e para você é algo muito negativo. Mas uma noite eu estava com a minha mulher [a fotógrafa sérvia Ana Kraš], e ela disse para mim de forma muito doce, com muito amor: “malo” [em espanhol, “mal”]. Eu perguntei: “O quê?!”, e ela me explicou o significado da palavra na língua dela. Achei muito interessante existir uma palavra com sentimentos tão diferentes em línguas diferentes, e quando pesquisei sobre o termo, descobri que ele tem ainda mais significados em outras línguas e culturas. Em irlandês gaélico, em maltês, em hindu, em italiano… E é uma palavra muito bonita, é uma jóia de palavra.
TMDQA! – Quando lançou o disco-solo aqui no Brasil, o Rodrigo Amarante…
DB – Quem? (risos)
TMDQA! – …publicou uma carta em que ele falava sobre como ele se sentia um forasteiro em Los Angeles, e como isso afetou a música dele. Você se identifica com essa sensação, por ter crescido na Venezuela?
DB – Eu sempre me senti um estrangeiro em todos os lugares, porque eu fui criado na Venezuela, mas sou americano. Quando estou nos Estados Unidos, sou sul-americano. Aqui, sou americano. Ao mesmo tempo, sinto como se fosse de todos os lugares. É aquela história de encontrar conforto no desconforto.
TMDQA! – Você participou de Cavalo, e conhece o Rodrigo há muitos anos. Ao ouvir as composições do álbum, você percebeu alguma influência sua no som dele, pelo fato dele te acompanhar como músico de apoio nos últimos anos?
DB – De repente o writer’s block, a constipação (risos)… Eu não sei, é preciso perguntar a ele. Mas para mim é muito natural trabalhar com ele. Ele é como se fosse da minha família, passamos mais tempo conversando e comendo do que tocando. É algo que não é forçado. Sou super fã do álbum dele. Tenho o álbum no meu telefone, sempre ouço e digo a ele: “o seu álbum é incrível”.
TMDQA! – Você também é fã de Caetano Veloso, que recentemente completou 70 anos e lançou Abraçaço. Você espera chegar aos 70 produzindo como ele?
DB – Não sei (risos)… Claro que sim, mas não há ninguém como Caetano. É outro nível de existência, não consigo nem pensar nisso. Talvez eu consiga através de implantes, se eu cobrir toda a minha pele com bacon para parecer mais jovem (risos). A coisa mais interessante sobre Caetano é que se você esquecer toda a história dele e focar apenas no novo álbum… uau! Ainda assim é incrível. Canções como “Estou Triste”, “Um Comunista”, “Quando o Galo Cantou”… E se você considerar todo o catálogo dele, todos os álbuns são bons. Você não pode dizer isso nem de cinco outros artistas, nem de Paul McCartney! É algo que respeito muito.
TMDQA! – Por fim, você tem mais discos que amigos?
DB – Ah, com certeza. Muito mais. Muito, muito mais.