Johnny Cash nem sempre teve o status de lenda com o qual foi tratado nas últimas décadas. O alcoolismo, o vício em drogas e a infidelidade ajudaram a manchar a reputação do Man In Black, decadência ajudada pelo declínio da música country tradicional nos anos 1980, em favor das superproduções, dos espetáculos e do country pop atualmente representado por “estrelas” como Taylor Swift.
Cash não vendia tão bem, e apesar do sucesso da faixa-título de The Baron (1981), a Columbia Records decidiu não lançar um novo álbum gravado em 1984, em sessões dirigidas pelo produtor Billy Sherrill, o mesmo de The Baron. Em 1986 a Columbia dispensou Cash, e as sessões de 1984 ficaram fadadas ao esquecimento. Pelo menos até uns anos atrás.
Em 2012, John Carter Cash, único filho do casal emblemático formado por Cash e June Carter – eternizado na cinebiografia Johnny & June, onde o casal é interpretado por Joaquin Phoenix e Reese Whiterspoon – encontrou as fitas originais das sessões, e decidiu presentear os fãs dos pais dele com o lançamento das faixas inéditas. Mas havia um problema: a maior parte das gravações tinha arranjos apenas rascunhados, ideias nunca concluídas pelo abandono do disco pela Columbia.
Com a ajuda do produtor Steve Berkowitz (Tony Bennett, Leonard Cohen, entre muitos outros), John convocou alguns dos melhores músicos de estúdio do country, do folk e do bluegrass para transformar os retalhos em Out Among the Stars, terceiro álbum póstumo de Cash, lançado no fim de março.
Como a cinebiografia e a série American Recordings – os seis álbuns produzidos por Rick Rubin nos últimos anos de vida de Cash – evidenciam, Johnny Cash cativa não só pelo talento, mas pela humanidade legítima da própria obra. Falha e inconsistente como a pessoa por trás do artista, a discografia de Cash torna-se genial quando o homem mais soturno do country se dedicou pura e simplesmente à arte. Out Among the Stars não é emocional e intimista como nenhum da série American, nem ácido e vigoroso como clássicos do naipe de At Folsom Prison (1968) ou a estreia de Cash em 1957. Mas representa muito bem uma fase diferente do cantor.
É impossível definir a qualidade dos novos arranjos concluídos por Berkowitz e o time de músicos sem ouvir as fitas originais. No entanto, o primor do trabalho instrumental é evidente, a ponto de incomodar; é tudo tão certo, tão bem tocado, que o disco perde a espontaneidade em alguns momentos.
Já a performance de Cash como intérprete, apesar de também impecável, é orgânica, dando brilho até a composições menos inspiradas como “After All” ou “Tennessee”. Os destaques do álbum são os vocais de faixas emocionais como o single “She Used to Love Me a Lot”, a sarcástica “I Drove Her Out of My Mind” e a veloz “Baby Ride Easy”, com participação de June Carter, que reaparece na romântica “Don’t You Think It’s Come Our Time”. Out Among the Stars ganharia pontos, no entanto, se reunisse mais composições de Cash. As únicas duas presentes no disco, “Call Your Mother” e “I Came to Believe”, encaixam perfeitamente com o timbre profundo do cantor, em plena forma nas sessões que resultaram no disco.
A última, inclusive, é ótima para entendermos Out Among the Stars. Escondida nessas sessões perdidas, “I Came to Believe” foi regravada por Cash em 2003, e acabou lançada em American V: A Hundred Highways (2006), em uma versão minimalista e emocionante. A comparação entre as duas versões evidencia que Out Among the Stars não é um clássico imperdível do repertório de Cash, ou não teria ficado escondido por tanto tempo. Mas é um retrato digno e fiel de um momento subestimado de um dos maiores nomes da música americana recente.
Nota: 7/10