Intitulado Carne Doce, o primeiro disco da banda que carrega o mesmo nome conta com 10 faixas inéditas, incluindo uma nova versão de “Fruta Elétrica” que estava presente no EP Dos Namorados (2013) e também uma versão de “Benzin“, composição conjunta com o Boogarins. A banda é composta pelo casal Salma Jô e Macloys Aquino, Aderson Maia (ex- baixista de bandas consagradas de Goiânia), João Victor Santana e Ricardo Machado(estes dois últimos são também integrantes da Luziluzia, banda indie bastante promissora na cena goiana).
Carne doce é mais uma banda goiana que ganha destaque nacional com um som psicodélico abrasileirado, um pós-MPB, uma Tropicália moderna. Digo que é “mais uma”, mas ressalto que não é “apenas” mais uma. O quinteto tem uma singularidade especial em cada nota de suas músicas. É impossível não se contagiar pela melodia da guitarra de Macloys, pelo baixo bem marcado do talentoso Aderson Maia, pelos gritos de Salma que surpreendem por sua amplitude impressionante, pela batida marcante da bateria de Ricardo Machado e pelo toque final dos sintetizadores de João Victor Santana. É uma música boa de ouvir, de dançar. As letras então, nem se fala. Produzidas pelo casal Salma e Macloys, abordam os mais diversos temas do cotidiano.
Salma Jô tem uma voz absoluta, com uma imensa extensão vocal e um timbre de voz que mescla momentos fortes com outros agudíssimos. Pode ser vista como uma mistura de Gal Costa, Elis Regina e (alguns) toques de Tetê Espíndola. Esta última em sua época foi vista como inovadora por sua multiplicidade com incursões pela vanguarda, o regionalismo, fusões de sua voz com elementos eletrônicos e um certo experimentalismo, características facilmente encontradas na jovem Salma também.
Não é um disco onde se pode dar destaque para algumas músicas. Todas são de uma qualidade impressionante e juntas constroem um retrato poético de detalhes do dia a dia de qualquer um, de qualquer casal, de todo o mundo.
A trinca inicial chama a atenção por retratar a versatilidade da banda. Em “Idéia” (com acento mesmo, ignorando a reforma ortográfica realizada por “gente genial demais”) a amplitude vocal de Salma é destaque, com agudos e uma instabilidade proposital que combinam perfeitamente com os efeitos durante a música, embalando-nos em um instrumental complexo, viajando por diversas camadas de guitarra e com uma marcação certeira de baixo. A parte final da música em certos momentos remete levemente à um bolero, nada que se assemelhe a faixa seguinte: “Sertão Urbano“. Com uma bateria de banda marcial, a segunda faixa reflete sobre a urbanização e a busca por um refúgio do progresso, característica predominante de um ser tão urbano.
A terceira faixa é o polêmico hit “Passivo” , retrato de uma mulher cheia de desejos que conquista o ouvinte (e gruda a música na sua cabeça) através de uma letra direta em união com uma batida bastante inspirada no funk e com um sampler (in)direto de um sucesso não muito antigo do funk brasileiro em um dos pontos altos da música (se realmente não for uma fonte de inspiração, lembra bastante).
“Passivo” talvez seja a faixa que conquistou mais rapidamente o público até agora, e tem de tudo para atrais mais adeptos. Para resumir a impressão que essa faixa passa, tomo a liberdade para citar uma frase de Orion Love (vocalista da banda goiana Lust For Sexxx) em uma resenha recente: “Já dá pra imaginar os remixes: queremos Passivo na balada, Passivo é muito gostoso/a.”
“Preto Negro” traz novamente a bateria marcial como um ponto marcante e aborda questionamentos sobre identidade racial (Pois cada vez mais o povo é preto, é negro/Mesmo quem sempre foi marrom/E até então se via branco). Os gritos melódicos de Salma voltam a embalar o ritmo das guitarras, transformando a música em uma dança evidente, um manifesto que não se importa com o politicamente correto e se difere das faixas anteriores com uma certa estabilidade na voz de Salma (até um certo momento). Na segunda parte da música voltam os vocais rasgados onde o tom de voz de Salma sobe assustadoramente e chama a atenção do ouvinte para o que está sendo cantado.
“Amigo dos Bichos” é um afago sonoro. Bem mais leve do que a maior parte do disco, carrega uma letra sutil e uma preocupação com as crianças e sua realidade inocente (Ô trem, que é que você fez dessa vez? Sua mãe finge nem lhe enxergar/Se arrependera?). É uma música nostálgica, doce e bucólica, com um toque saudosista. Praticamente o inverso do ambiente “pesado” de “Passivo”, a faixa é uma cantiga de roda para gente grande.
“Fetiche” e “Canção de Amor” voltam aos primórdios do primeiro EP da banda, “Dos Namorados“, retratando claramente o dia a dia de um casal, o ciúme sem explicação e o medo de uma possível ausência do amado(a). Ou então, a própria celebração do amor, a alegria e conforto de se estar com quem ama. Com uma tonalidade calma e equilibrada, na primeira faixa Salma canta diretamente para seu amado, ressaltando a troca contínua entre os dois, que além de parceiros na música são um casal. A música se infiltra na intimidade dos dois, e essa mesma intimidade se reflete nas letras e melodias das duas faixas. Na canção de amor o título já resume tudo, é carinho explícito durante toda a faixa.
“Benzin“, composta em conjunto com os meninos do Boogarins retrata um tipo de relacionamento diferente. Parece ser um hino em homenagem às raízes da banda (Não há nada como o sol daqui/Mesmo sem mar/Mas juro que já quis fugir/Ir pra não voltar) e às amizades que se firmam na cidade de Goiânia, como ocorre com o próprio quarteto que compôs a música (Eu tenho um bando que amo aqui/Esse é meu lugar). A psicodelia do instrumental dessa faixa em especial remete um pouco ao som da Luziluzia, que conta com gente do Boogarins também em sua formação. É um ótimo exemplo de como essa mistura e essa parceria se refletem claramente no som dos goianos. Se existiram os Novos Baianos que aos poucos se encontraram e formaram um grande conjunto musical se diferenciando de tudo que havia na época, pode-se dizer que os “Novos Goianos” estão se misturando por aqui.
A nova versão de “Fruta Elétrica” é prova do crescimento musical da banda, que antes aparecia como uma dupla e agora é um quinteto. O ritmo está bem mais marcante, é evidente a presença do baião, com uma forte batida e um som mais preenchido. A voz de Salma também está bem mais trabalhada. Na primeira versão a vocalista cantava como uma menina, de forma romântica e até inocente. Nessa nova versão a potência que aparece em faixas anteriores do disco se mantém, e a música ganha outra vida com a maturidade vocal de Salma e o ritmo mais dançante.
O solo de baixo marcante no início de “Adoração” inicia um dos momentos mais interessantes do disco. Com uma letra de apenas 6 versos, o instrumental é quem manda nessa faixa. A presença dos sintetizadores é bem mais evidente, a guitarra faz a música fluir de forma padronizada, até se destruir com distorções mais ousadas. A faixa fecha com chave de ouro o disco de estreia surpreendente dessa banda que tem de tudo para representar muito bem a nova geração da música brasileira, no cenário nacional e (quem sabe) internacional.
Do universo louco e das situações do dia a dia surgem letras e riffs de extrema qualidade, que em conjunto nos levam à uma viagem sensorial, remetendo ao amor, ao amargo ciúme, à amizade, à modernidade… É um caos de sentimentos totalmente organizado, em 10 faixas totalizando 40 minutos de duração. A ideia de que a música é uma linguagem universal se aplica também nas composições da Carne Doce. O quinteto ultrapassa fronteiras e se faz entender de modo simples, sincero e direto.
Nota: 9/10