Resenha: Refused - Freedom

17 anos depois, Refused volta com um clássico instantâneo no excelente disco "Freedom".

Resenha: Refused - Freedom

Onde você estava em 1998?

Se você já tinha idade o suficiente para ouvir e entender, pelo menos um pouco, de música, pode ter dado de cara com o emblemático clipe de “New Noise”, do Refused, em uma das tantas madrugadas da MTV Brasil onde o clipe foi exibido, mas muito provavelmente não foi muito além do single que está no disco mais influente de hardcore desde que foi lançado.

E a culpa não é sua, não. Em 1998 a banda sueca lançou seu terceiro álbum de estúdio, The Shape of Punk To Come, através da bem sucedida parceria entre o selo europeu Burning Heart e a gigante americana Epitaph, que teve como single justamente a faixa citada acima.

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O problema é que como tantas grandes obras da história da arte, o álbum passou batido à época de seu lançamento e a banda se desintegrou em uma turnê pelos Estados Unidos que não serviu para nada além de gerar tensão entre seus integrantes. Resultado: poucos meses após o lançamento do disco, a banda acabaria.

Talvez o fim do grupo tenha sido uma espécie de “alerta”, e os críticos começaram a ouvir The Shape com mais carinho, em um processo que culminou na grande maioria das resenhas dando notas entre 9 e 10 para o álbum.

Daí pra frente, o resto é história. O Refused, mesmo morto, tornou-se um dos grupos mais influentes do final dos anos 90 e início dos anos 2000, e foi parar nos ouvidos de muita gente que estava fazendo música na época.

A gama de artistas e bandas que influenciou com sua mistura perfeita da explosão do post-hardcore com geniais letras políticas e um tanto quanto de arte, no melhor sentido da palavra, variou de headbangers até pop-punkers (Anthrax, Rise Against, Paramore são apenas alguns que citam a banda como grande influência), e de repente um sentimento de que algo muito bom havia se perdido com o fim da banda apareceu.

Ao invés de aproveitar o embalo e voltar à ativa prontamente, a banda se manteve em silêncio por mais de 15 anos, e após alguns shows de reunião, entra em estúdio para o registro de Freedom, seu quarto álbum, o primeiro desde 1998.

Antes de começar a falar sobre o álbum em si, mais uma informação importante para a compreensão de Freedom e prova de que essa banda conseguiu tornar músicas pesadas e inteligentes acessíveis para todos os públicos: o produtor do álbum é Shellback, fã incondicional do grupo e que tem, em sua carreira, músicas escritas para P!nk, Taylor Swift, Christina Aguilera, Avril Lavigne e Maroon 5. Sim, o pop também foi atingido pelo ritmo mortal do Refused.

Em Freedom, disco do aguardado retorno, a banda poderia seguir em diversos caminhos diferentes, e resolveu optar por utilizar a fórmula que deu certo com a evolução natural da banda nesses 17 anos. E a evolução, vale destacar, é no melhor sentido da palavra.

Há tanto tempo ouvimos bandas que lançam discos recheados de elementos em excesso, com os quais não estão acostumadas, dizendo que “evoluíram”, e o resultado costuma ser desastroso. Aqui, como um bom vinho ou uma boa receita em fogo baixo, o caldeirão do Refused foi reunindo todas as suas influências musicais, líricas, de vida e da estrada com outros projetos em um resultado final que soa (ou cheira) bem demais.

Em “Elektra”, faixa que abre o disco, a banda resolveu trazer seu peso e arranjo tradicionais aliados a frases muito bem encaixadas que servem tanto para descrever o estado atual da banda quanto da política europeia e mundial, alvos prediletos do Refused: “Eles empilham os corpos com altura de mil / Um monumento para tocar o céu / Eles coroam os picos / Tão distantes / Mas lá embaixo na sujeira, nada mudou / Nada mudou / A hora chegou / Não há como escapar”.

Depois de mostrar que “nada mudou”, começam as experimentações, também presentes em seu último disco, logo de cara, como que para mostrar a quem ouve o disco de cabeça fechada, que já pode parar por ali.

“Old Friends / New War” tem vocais a la trip hop, violões, elementos eletrônicos, melodia e os berros marcantes do vocalista Dennis Lyxzén. É uma das (des)construções mais interessantes do álbum e faz referências a sons antigos do grupo na letra, em mais uma composição política/pessoal.

“Dawkins Christ” até lembra a introdução de “New Noise”, adicionada a belos vocais, antes de trazer um riff de guitarra que tem a cara do Refused aliada a influências de bandas punk dos anos 80 e 90, como o Dead Kennedys. Aqui, a banda aborda a religião em frases e passagens geniais como “medo e ódio nos mantém em linha / à medida que escalamos cruzes desenhadas por nós mesmos / pregos em nossa carne, martelos em nossas mentes”.

De forma bastante ácida, finaliza dizendo que o interlocutor tem o “coração de Judas / a alma de Nietzsche / o pau de Dawkins em um buraco com a forma de Deus.” Dawkins, no caso, seria Richard Dawkins, ateu conhecido por suas publicações no mundo todo.

“Françafrique” é o mais próximo que o Refused chega do pop em seu novo álbum, tem uma pegada roqueira mais clássica, vocais infantis a la “Another Brick In The Wall” e uma influência de outras bandas que Lyxzén teve depois do Refused, como o The (International) Noise Conspiracy.

Na canção, a banda critica com arte a colonização europeia, antes de embarcar em um dos ápices de Freedom, “Thought Is Blood”.

Ao anunciar seu renascimento, a letra fala sobre o poder do pensamento, em um minuto e meio de andamento calmo que precede mais uma mostra da arte dominada pela banda: a ciência da dose exata entre peso e melodia.

A grande surpresa de Freedom deve vir na forma de “War On The Palaces”, com seus metais a la Rocket From The Crypt. Explorados de uma forma bastante diferente em seu trabalho anterior, aqui eles são protagonistas em mais um rockão cheio de estilo em cima de uma estrutura complexa que se torna acessível, outro ponto forte do Refused.

“Destroy The Man” é a canção que marcou o início do retorno da banda. Segundo seus integrantes, foi com ela e a ideia de “fazer uma música só e se divertir”, que o processo todo começou a andar nos trilhos novamente para o grupo.

Ela antecede “366” outro grande destaque do disco que faz uma referência clara a “The Shape Of Punk To Come” faixa título do álbum já citado, e é um resumo interessantíssimo do que o Refused sabe fazer de melhor. A definição de “riff” não poderia ser melhor explicada aqui, bem como as tantas camadas de guitarra, as distorções, cordas limpas, berros e vocais melódicos. É de deixar as bandas que influenciaram o Refused orgulhosas.

“Servants of Death” traz mais um pouco das novas experimentações da banda com elementos diferentes e o rock and roll classudo antes de dar espaço a mais uma crítica dos suecos à sua comunidade local em “Useless Europeans”.

Com traços de balada, folk, western e na linha de músicas que fecharam o até então último disco do Refused na carreira, é uma construção de 6 minutos e 30 que irão passar rapidinho, te deixando com vontade de, primeiro, entender tudo que acabou de acontecer e, segundo, colocar o disco para tocar novamente.

Em 1998 eu tinha 13 anos de idade, e não achei instantaneamente nada do Refused além de muito foda o fato de Lyxzén berrar em um clipe muito bem produzido nas madrugadas da MTV Brasil, quando deixava a TV ligada e aproveitava o pulso único da minha Internet discada. Não tive a chance de levar esse soco na cara com The Shape of Punk To Come, um dos discos mais importantes dos últimos 20 anos instantaneamente, o que só aconteceu bons anos depois.

Com Freedom, a chance de não apenas digerir e aproveitar o disco, como não deixar que ele passe batido à sua época, está aí. E se eu fosse você, não deixaria passar.

 

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