“What Happened, Miss Simone?” (O que houve, Srta. Simone?). É a partir dessa pergunta, feita pela escritora e poeta negra Maya Angelou – que também dá nome ao novo documentário sobre a cantora, pianista e ativista Nina Simone – que o filme se desenvolve e vai criando camadas bastante profundas sobre a vida e a obra da artista. Lançado na sexta-feria, 26 de Junho, o longa-metragem dirigido por Liz Garbus é mais uma produção da Netflix.
“Ela merece ter sua história verdadeira contada por causa de sua jornada, sua música, seus sacrifícios, sua mensagem, as contribuições maravilhosas que deu a nosso povo. Era importante haver algo para educar e inspirar as massas”, diz sua filha, Lisa Simone Kelly, em dado momento do filme.
Além da filha, o documentário tem ainda depoimentos de amigos, familiares, do ex-marido Andy Stroud e da própria Nina, além de revelações de seu diário. O ressurgimento da artista no cenário popular é marcado também por outro filme, chamado Nina, da estreante Cynthia Mort, e o lançamento de um disco onde nomes como Usher e Lauryn Hill fazem tributo à cantora.
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A narrativa parte do Festival de Jazz de Montreaux, na Suíça, em 1976, quando Nina volta aos palcos após passar anos reclusa, morando na África e ter vivido um período sombrio de depressão e bipolaridade. Quando sobe ao palco, o cansaço dos anos na luta pelos direitos civis igualitários e também contra os demônios de sua própria vida estão evidenciados em sua expressão facial.
Apesar de apenas jogar luz sobre temas como sua doença mental, o vício em remédios e em sexo, é suficiente para o espectador compreender e se emocionar. Inteligentemente, o diretor corta para a infância da artista e passa a contar a história cronologicamente.
As imagens de sua infância em um dos períodos mais difíceis da história americana, onde as pessoas negras viviam segregadas, como cidadãos de segunda classe, faz pensar nas tantas lutas que o mundo ainda passa atualmente. É triste perceber que os longínquos anos 1960 infelizmente ainda têm espaço nas sociedades contemporâneas.
Nina nasceu Eunice Kathleen Waymon, em 1933, na Carolina do Norte, Estados Unidos. Sua “vida musical” começou aos quatro anos, tocando piano na igreja. A partir daí, duas mulheres brancas, a patroa de sua mãe, e a professora de música Srta. Mazzanovich passaram a ensiná-la piano clássico, apostando no talento da menina.
A criança que já sonhava em ser a primeira pianista clássica negra da América não imaginou que seria um dos nomes mais importantes da música negra mundial. Embora nunca tenha realizado o sonho de desenvolver uma carreira como musicista clássica, isso esteve sempre norteando suas composições de uma maneira quase exclusiva. Sua mescla de jazz e soul acompanha uma sofisticação além do “comum”. Mesmo nas improvisações jazzísticas, sua formação clássica nunca deixou de ser sua base.
Aos vinte e poucos anos, após se casar com o policial, que depois virou seu empresário, e ter sua filha, foi que a artista se envolveu com o ativismo. Sua vida conjugal nem sempre foi um mar de rosas, ela tinha uma relação de amor e ódio com o marido. Apesar de ser inúmeras vezes espancada por ele, não conseguia largá-lo. Dualidade que também pode ser vista em sua relação com a filha, mais tarde também espancada pela mãe.
No longa, sua história na busca pelos direitos civis igualitários, mais especificamente contra o racismo, é fascinante. O espectador se depara com nomes como Malcolm X e Martin Luther King, por exemplo. Não é difícil perceber um pouco de cada um em Nina: o lado forte de X e também o pacífico de King.
Há cenas da famosa marcha de Selma, onde milhares de brancos se uniram à população discriminada em uma caminhada histórica, onde Nina cantou o hino “Mississippi Goddam”. Selma, inclusive, virou um belíssimo filme em 2014. A marcha foi parar nas telonas através do olhar da diretora Ava DuVernay.
É interessante também acompanhar um pouco da história de suas músicas mais famosas. Quando ela canta “Ain´t got No, I Got Life” é um dos momentos mais bonitos. A letra expõe consequências do regime racista: “Não tenho casa, não tenho sapatos / Não tenho dinheiro, não tenho classe”, para então dizer como se sente e como todos os negros deveriam se sentir: “Tenho a vida, tenho a liberdade”.
O lado sombrio da cantora se aprofunda quando o ódio por não ver resultados na luta passa a dominá-la. Nina começa a fazer concertos totalmente políticos, com músicas de protesto e discursos incentivando a luta através da lei do “olho por olho”. É aí que tudo começa a degringolar e os empresários deixam de contratar seus shows. “Estão prontos para matar se necessário?” era uma pergunta corriqueira que fazia em suas apresentações à plateia.
Quando cantou no funeral de Martin Luther King, sua angústia era tanta que Nina nunca mais voltou a ser a mesma. “What Happened, Miss Simone?”. é uma fascinante resposta de Liz Garbus à pergunta de Maya. Cheia de nuances e contornos, com um pé no brilhantismo de uma artista muito à frente de seu tempo. E cheio da sombriedade que uma sociedade ultrapassada pode deixar em alguém como Nina.