Foto por Gabriel Quintão
A essa altura, você já sabe que o Alabama Shakes esteve pela segunda vez no Brasil nos últimos dias, com apresentações elogiadíssimas no Lollapalooza Brasil e em side shows em São Paulo e no Rio. O que você talvez não saiba é que a guitarrista Brittany Howard precisou comprar uma guitarra de última hora, pois na viagem para cá o instrumento de estimação dela acabou ficando para trás.
Numa feliz coincidência, o Aloizio, amigo meu e capitão da banda onde toco bateria, foi convidado para ajudá-la a encontrar uma guitarra nova em São Paulo, na última segunda-feira (14). Pedi para ele escrever um relato sobre a experiência, texto que reproduzo a seguir aqui no Faixa Título:
Por volta das 17h, meu telefone tocou enquanto eu editava uma trilha no Pro Tools. “Mano, tô aqui numa entrevista com o Alabama Shakes e a Brittany [Howard, vocalista e guitarrista da banda] perguntou se a gente conhece alguém que poderia ajudá-la a comprar uma boa guitarra”. Era o Filipe, um amigo que estava trabalhando em uma entrevista que a Poli, uma amiga nossa, conduzia com o Alabama naquele momento. “Parece que deixaram os equipamentos dela pra trás e ela precisa comprar uma guitarra para o show de hoje”. Minha resposta foi imediata: “Claro, o que ela precisa?”.
Eu sou do tipo que presta muita atenção nos equipamentos que os artistas usam, e lembrei que no show no Lollapalooza [no domingo 13] Brittany não empunhava a sua Gibson SG verde-azulada que ela costuma usar. Recebi do Filipe – o amigo cineasta/músico/locutor/tradutor que me botou nessa – uma lista de guitarras maravilhosamente antigas que você encontraria em qualquer loja de usadas em Nova Iorque, mas em São Paulo, com apenas uma hora para o fim do expediente, seria quase impossível.
Peguei o telefone e liguei para várias lojas perguntando o que eles tinham de melhor, especialmente alguma guitarra montada antes de 1980. Nada. Nada. Nada. Pesquisei em grupos no Facebook, também sem sucesso. Aí lembrei de um cantinho da Rua Cristiano Viana, esquina com a Teodoro Sampaio, que abriga as três melhores lojas da cidade, cheias de relíquias espetaculares. Enquanto a banda passava o som na Audio Club, para o show solo que fizeram mais tarde em São Paulo, eu e Filipe ligamos para as lojas para saber se conseguiríamos ser recebidos depois que elas estivessem fechadas. Com a resposta afirmativa da Two Tone, uma loja acostumada a receber artistas gringos, vesti um casaco, peguei a minha Epiphone SG parecida com a dela (vai que), e subi a Teodoro Sampaio.
Chegando lá, os donos da loja estavam numa jam session de baixo e guitarra. Peguei a minha e entrei na brincadeira, enquanto o Filipe mantinha contato com a produção da banda, avisando que estávamos prontos. Alguns minutos depois, uma van parou na porta da loja e desceu Brittany, líder do Alabama Shakes, que entrou ali já de olho nas Gibson, Fender e PRS espalhadas pelas paredes. Muito mais tímida do que eu imaginava, eu a cumprimentei e perguntei o que ela queria. Ela me falou de captadores mais “soft”, enquanto olhava e olhava para os instrumentos da loja, mas tudo ali parecia moderno demais pra quem faz um som tão vintage. Falamos das Gibson 335 até que ela resolveu testar uma 339, mais compacta. Ela plugou a guitarra num amplificador Fender valvulado e ali, naquele minuto, a mágica começou. Parecia que eu estava escutando em primeira mão uma mistura de Marisa Anderson com Jeff Buckley. Perguntei se ela os conhecia, e ela disse que só conhecia a versão do Buckley para “Hallelujah”. Enquanto ela tocava, falamos de música brasileira, e ela citou Moacir Santos como um de seus favoritos. Mais surpreendente, impossível. Falamos de Caetano, Gil, Villa-Lobos e o Filipe prometeu uma belíssima playlist no Spotify pra ela conhecer música brasileira.
Voltando à guitarra, a 339 agradou, mas não o suficiente. Os olhos dela ainda buscavam a parceira ideal pelas paredes da loja. Falei que durante um período que eu morei em Nova Iorque me apaixonei pelas guitarras da Duesenberg, uma marca alemã que recentemente começou a exportar para outros países. Ela disse que não conhecia, e o vendedor da loja pegou a única que tinha por lá e falou um pouco sobre o instrumento. Ela topou experimentar, plugou e mandou ”Hold On” pra testar o timbre. Foi ajustando os captadores e tonalidades enquanto elogiava o braço da guitarra. Ela passou o riff de praticamente todas as músicas do show, e todos no recinto em silêncio absoluto apreciavam aquele show particular. Enfim ela parou de tocar e perguntou: “Ok, this is the one. How much?”.
Enquanto a produtora dela tentava resolver um problema de compatibilidade entre o cartão americano da Brittany e o sistema brasileiro da loja, eu peguei minha guitarra e mostrei a ela, que disse: “Looks like mine! Is it yours? Can I play?”. Pensei: PORRA, PODE PEGAR E LEVAR PRA VOCÊ. Ela sentou de um lado com a minha guitarra, eu peguei a que ela havia acabado de comprar e começamos a tocar. Ela perguntou se eu sabia alguma do Alabama Shakes, e eu respondi que arranhava “Gimme All Your Love”, pra mim a melhor música de 2015. Ela ficou com vergonha e perguntou se eu realmente achava a música muito boa. Eu disse que eu e todo mundo. Perguntei se ela tinha percebido como os brasileiros amam a banda dela, e ela perguntou se curtiam mesmo, porque é difícil sacar a reação do público em festivais, todo mundo tá ali por causa de mil outras coisas. Eu disse que muita gente ali tinha ido só por causa do Alabama Shakes, e ela ficou feliz e pediu pra eu tocar “Gimme All Your Love”. Fiquei tão sem jeito que pulei uma parte, e ela brincou: “calma, tem isso aqui”. Hahaha. Virou uma aula particular, e ela me explicou até o que ela fazia de diferente do outro guitarrista da banda.
Dali, ela resolveu testar uma Fender Telecaster Custom Shop, que ela disse que não costuma gostar, mas se apaixonou e quase levou essa também. Ainda conversamos sobre Bernie Sanders, cultura negra, preconceito racial e a realidade social no sul dos Estados Unidos. A essa altura, o cartão passou e estava quase na hora de ir para o show. Peguei uma cópia do meu primeiro álbum, Esquina do Mundo, e dei pra ela. Ela perguntou se eu cantava, também. Eu disse que sim, e que meu disco tinha saído em algumas listas de melhores do ano aqui no Brasil. Ela respondeu com um high five dizendo: “mine too”. Nos despedimos com um “break a leg tonight” e um até sabe se lá quando.
Saí de lá obviamente refletindo muito sobre tudo. Pensei que a gente precisa ser quem a gente realmente é, tratar bem as pessoas que nos cercam, e ser gentis com quem a gente não conhece e a vida sempre dá um jeito de dar um retorno positivo. Pensei também que o mundo não é mais lugar de artistas endeusados e intocáveis, mas de pessoas sensivelmente talentosas como a Brittany, que na maior parte do tempo só quererem ser pessoas normais dispostas a dar todo nosso amor para aquilo que amamos fazer. E nessas reflexões esqueci de pedir um ingresso para o show, que acabei não vendo. Fui pra casa tocar guitarra.
Aloizio é músico, e em 2015 lançou Esquina do Mundo, o primeiro álbum solo dele e um dos melhores discos nacionais do ano passado na lista do TMDQA!.
Atualmente ele segue em turnê pelo Brasil, e trabalha nas próximas empreitadas musicais. E acredite se quiser: ele mantém ativo o anúncio de venda da Epiphone SG testada pela vocalista do Alabama Shakes, que colocou no ar dias atrás. Vá ser desapegado assim lá longe…