Na sexta passada, um 1º de abril que nos recebeu com discos novos de Weezer, Moderat, Yeasayer, Black Mountain, Mogwai, Explosions in the Sky, Last Shadow Puppets, Andrew Bird, Com Truise, Bombino e mais uma pancada de coisa, um álbum legitimamente brasileiro me chamou muita atenção: o disco de estreia do Xóõ.
Eu soube da banda no fim do ano passado, quando participei de um evento em Belo Horizonte que tinha a participação do pessoal do Baleia (que a propósito lançou recentemente o Atlas, segundo álbum deles). Rolou um jantar, um bando de conversa solta, e quando vi eu tava pegando carona com o Vitor e o Cícero, do Lupe de Lupe, no carro que possibilitou a turnê Sem Sair Na Rolling Stone, que se você não sabe do que se trata, precisa saber neste link. Existisse o Faixa Título na época, aquela noite tinha virado post. Não tinha, ficou na memória. Basta dizer que mineiro não tem medo de carro que morre a cada esquina (sério), e isso tem tudo a ver com o espírito meio desenfreado do Xóõ.
Como o próprio Vitor explica em “Créditos”, faixa que encerra o álbum, o Xóõ é fruto de uma vinda dele ao Rio, quando ele conheceu o povo do Baleia, os integrantes da Ventre e mais uma turma próxima e agregada. A amizade virou um álbum produzido em 7 dias por 8 integrantes em um combo inédito em disco: Vitor Brauer (Lupe de Lupe), Bruno Schulz (Cícero), Cairê Rego e Felipe Pacheco (Baleia), Gabriel Barbosa (SLVDR, Posada e O Clã) e a íntegra do Ventre – Larissa Conforto, Hugo Noguchi (também do SLVDR e do Posada e O Clã) e Gabriel Ventura (também do Posada e O Clã, Cícero).
O disco superou minhas expectativas, mas dispenso a análise dele neste post (recomendo a ótima que li no Altnewspaper). Em vez disso, peço uma comparação rápida entre as duas versões de “É Tudo Roubado”, o primeiro single do disco. Quando ele saiu, em janeiro, a música era assim:
Mas no disco, pelo menos na versão lançada nas plataformas digitais pagas, ela ficou assim:
Ouviu a diferença? Na versão original, que segue ativa nas plataformas gratuitas, os vocais fluem normalmente, mas no álbum lançado no Spotify eles estão ao contrário. Com exceção do verso “É tudo roubado, é tudo roubado” no refrão, todos os outros são trechos citados ipsis litteris de inúmeras obras, que vão de poemas de Fernando Pessoa a falas de Yoda, passando por plágios declarados de Caetano Veloso, Belchior, Gonzaguinha, Zé Ramalho e vários outros, com ênfase em “A Lenda”, faixa do grupo niteroiense de rap Quinto Andar, de onde Vitor extraiu o resto do refrão: “rouba bicicleta de 2 mil / empresta pro amigo que também é roubado / cobra uma nova como se tivesse comprado”.
Segundo Vitor, a assessoria de imprensa da banda alegou que para lançar a música nos serviços de streaming, a banda precisaria pegar autorização de todos os citados, ou corria o risco da música não sair no disco. “Aí tivemos essa idéia de lançar ela nos meios pagos ao contrário e nos meios gratuitos a versão normal”, conta o vocalista. “Na internet ninguém é dono de nada, eu acho. Tem muita coisa ali que é domínio público. Só de Shakespeare e da Bíblia eu já devo ter roubado umas vinte frases, sei lá. Mas tinha um Caetano grandão que eu roubei, desses que eu fiquei com medo,” explica.
“Eu roubo direto e nunca vou parar, e se me roubarem eu vou achar muito louco também,” continua Vitor. “Nas outras músicas tem altas citações também, e eu nem finjo que não roubei não. Eu boto entre aspas na letra e tudo mais, mas essa música foi o único caso de uma música toda feita só de coisas roubadas. Aí bateu a pressão porque é muita citação numa coisa só”.
A questão é microscópica no âmbito geral do mercado fonográfico, mas expõe uma fragilidade importante dos serviços de streaming, que se baseiam em legalidades e burocracias que muito têm a ver com dinheiro e pouco com arte. Arte, como sabemos, frequentemente surge através de releituras e reapropriações que, contextualizadas, muitas vezes são o trampolim para uma nova safra criativa. Ontem, por exemplo, descobri um disco do TOMOYU, produtor japonês que, impossibilitado de ouvir legalmente o The Life of Pablo do Kanye West, pegou a lista de todos os samples do disco e decidiu imaginar o que Kanye teria feito com elas. Um exemplo entre zilhões que o Spotify não vai mostrar pra você.
Que movimento cultural não surgiu a partir da referência ou da reação a outro, anterior? Quantos artistas independentes, de quem outros artistas mais conhecidas irão roubar para ditar novas tendências, estão na sua playlist de hoje? Seriam os roubos de Vitor Brauer o equivalente ao sample? Errou a banda ao mudar a faixa? O que seriam os alardeados Beatles, Rolling Stones e especialmente o Led Zeppelin se não a união de uma dúzia de ingleses extremamente talentosos, mas mestres também em copiar e recriar o blues e o rock n’ roll dos Estados Unidos?
“Não sei, só sei que foi assim”, diria Chicó, que roubo de Suassuna em O Auto da Compadecida. O tempo, quem sabe, dirá. Enquanto isso ouve aí o disco do Xóõ, sem a versão original de “É Tudo Roubado”, rouba uns riffs, grava um disco e manda pra cá que é só o ouro.
Atualização: a Larissa, baterista da banda, comentou a matéria no Facebook dela com questões muito importantes. Adiciono aqui:
“Tem muito mais coisa.
Tem a ver com as leis de direito autoral no Brasil, os artistas que se beneficiam delas, o lide do Brasil e do mundo com a pirataria e etc, etc, etecéteras infinitas.
E não foi a assessoria quem disse, foi a distribuidora mesmo que pediu o takedown porque não tínhamos autorização pra lançar aquelas citações.
Inclusive, o mesmo direito autoral que separa o músico do escritor, que coloca o cantor como o único e grande protagonista da música, ainda que não seja dele. O mesmo que rouba dinheiro do pequeno/independente e põe no grande, o Robin Wood ao contrário de doismilecrises”.