Steven Patrick Morrissey, ou apenas Morrissey, como ficou conhecido, é um dos artistas mais influentes de todos os tempos.
O britânico, atualmente venerado como uma espécie de semi-deus indie, é famoso por suas letras dramáticas e desoladas sobre relacionamentos mal-acabados, assim como pelo estilo vocal incomum – cantando sempre com uma profunda (e maravilhosa) tristeza na alma.
Quando Chino Moreno citou o ex-vocalista do The Smiths como uma das principais influências para o novo álbum de estúdio do Deftones – na época em fase de pré-produção do trabalho – muitos ficaram com uma pulga atrás da orelha.
Mesmo já sendo sabido e registrado que os caras buscavam por influências mais experimentais há tempos, “Morrissey” soou forte demais para boa parte dos fãs – que até hoje não consegue esquecer a veia pesada e agressiva que consagrou a banda durante a já longínqua década de 2000.
Ao ouvir o aguardadíssimo Gore, oitavo registro da banda lançado no último dia 08 de Abril, percebemos que algumas das peças desse quebra-cabeça acabam se encaixando nas entrelinhas, como veremos a seguir.
O disco abre com a ótima “Prayers/Triangles”, oportunamente escolhida como a primeira música de trabalho. Com seus licks de guitarra deliciosamente espaciais e o refrão poderoso, a música conquista de primeira, ficando ainda melhor ao longo das próximas audições.
Dá-se a impressão de que Gore virá vigoroso e espetacular, mas não é exatamente o que acontece.
O baque é sentido já na segunda música – “Acid Hologram”: ao invés de seguir embalada por “Prayers”, a faixa é especialmente monótona e arrastada. As melodias, absolutamente focada nos vocais, soam algo piegas e excessivamente emotivas, sem a tradicional energia do Deftones.
Com a terceira faixa, “Doomed User”, o baque se confirma. De fato, foi a segunda música de trabalho a ser divulgada e, assim, a primeira a trazer a noção de que Gore não seria essa maravilha toda da canção de abertura. A banda resolve apostar na sua velha fórmula de versos raivosos amortecidos por refrão suave, mas de uma forma menos inspirada.
Chino segue firme empenhado em ostentar seus potenciais vocais agora na balada “Geometric Headdress” e após as tradicionais introduções nervosas, ele cede rapidamente e parte para versos e pontes altamente melódicos e atmosféricos, desaguando de forma competente no refrão emotivo, melancólico.
Esse é o álbum de Chino, definitivamente. Por mais que todos os membros da banda sejam extremamente competentes em seus instrumentos, dessa vez os arranjos chegam mais simples – como que construindo o ambiente ideal para as linhas do vocalista brilharem mais alto.
O clímax aparece na deliciosa “Hearts/Wires”, disparadamente uma das melhores do disco.
A música soa como uma irmã mais nova de “Prayers/Triangles” (sempre ela), em que as guitarras minimalistas de Stephen Carpenter dão as caras novamente. Dessa vez, elas se apresentam ainda mais brilhantes e etéreas, jogadas sobre um groove leve, quase dançante, dando à canção um sabor todo especial. É possível que ela fique ecoando na mente por dias a fio. E tudo bem.
Nada que chegue, porém, perto do brilhantismo experimental das faixas da época de White Pony, por exemplo – as comparações acabam sendo inevitáveis e são dignas de referência aqui.
“Pittura Infamante” surge urgente. Chega com um quê de blues se infiltrando ao som tradicional do Deftones. Ficou legalzinha, sexy. Chino canta a plenos pulmões, como se não houvesse amanhã, dessa vez ousando também nas vocalizações harmônicas e complexas ao fundo, mas uma nova baixa se sente com a dobradinha das irrelevantes “Xenon” e “(L)MIRL”.
Os nomes das músicas aparecem com palavras esquisitas – uma pena que as estruturas, em si, não corresponderam tanto. Ambas são baladas bem quadradinhas, inofensivas, do tipo que caberiam fácil na trilha sonora de alguma sitcom adolescente.
Seguindo com a homônima “Gore”, dá-se uma boa guinada para o início do fim do álbum. Ela começa com um clima psicótico interessante vindo das palhetadas velozes do baixista Sergio Vega. O refrão é absurdamente agressivo e lembra – muito – a fúria dos primeiros álbuns. O clímax explosivo ao final da música é um dos momentos mais pesados (e interessantes), também.
“Phantom Bride” é a power-ballad do álbum, por excelência. As guitarras soam ótimas, especialmente porque agora vêm executadas junto à participação especial de ninguém menos do que Jerry Cantrell, eterno guitarrista do Alice in Chains.
Com direito a dois solos poderosos, é um ótimo respiro para o álbum, a que se segue pela bucólica “Rubicon”, que encerra Gore de forma discreta, fechando a porta sem bater.
Ao primeiro contato, Gore pode soar excessivamente morno mas é um disco que, definitivamente, merece uma audição cuidadosa. Não são músicas simples de serem digeridas. Nunca foram.
Importante notar que não é a primeira vez que os caras apostam num registro com gama mais suave e “açucarada” de canções – menções honrosas para Saturday Night Wrist. Com Gore, a porção mais metalhead da base de fãs da banda, se ainda existia, será extinta de vez.
Seria muito limitado dizer que o Deftones encarnou numa fase pop, mas eles estão, definitivamente, direcionando suas composições para formatos mais concisos, elegantes, de canção mesmo. Os picos de agressividade, presença tão comum no passado, vão sendo agora reservados a momentos cada vez mais pontuais.
E não é nada difícil de entender o porquê disso: os caras já estão maduros – todos passando da faixa dos 40 e, em sua maioria, pais de família. “New metal” é um rótulo que já venceu no crachá da banda há muito, muito tempo.
É possível que Chino tenha levado a sério, talvez até demais, essa história de emular a Morrisey. E talvez, inclusive, tenha sido exatamente essa a fonte das homéricas divergências criativas divulgadas entre ele e o guitarrista Stephen Carpenter. Jamais saberemos ao certo.
O que sabemos é: as progressões imprevisíveis, os infinitos contrastes entre timbres leves e pesados, assim como as letras e melodias existenciais que sempre caracterizaram o som do Deftones estão todas ali, apenas sob uma abordagem diferente.
Interessante notar a simbologia dos flamingos – estampada exaustivamente nas artes do disco e dos singles. O animal simboliza a ascensão da alma ao encontro da luz e no presente trabalho, a escolha definitiva da banda em direcionar sua músicas por caminhos bem mais luminosos. Ainda assim, fez questão de lembrar que é uma banda cuja marca registrada é o contraste, já que batizou o álbum de “Gore”, palavra que remete à violência. Logo na apresentação do álbum aparecem ali o suave e o pesado.
Escute repetidamente.