Passava das 19h quando uma melodia familiar ecoou pelo pátio do Colégio Estadual Visconde de Cairu, no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro. Dezenas de alunos se espalhavam pelo espaço, muitos amontoados em frente a um palco improvisado, com braços levantados e sorrisos largos enquanto uma das alunas, identificada somente por um adesivo amarelo no peito, fazia as vezes de mestre de cerimônias. Ao lado dela, o cantor Lucas Santtana acompanhava o coral repentino com uma base simples de guitarra. A canção? “Baile de Favela”, do MC João, com uma letra diferente: em vez de listar nomes de bailes da periferia de São Paulo, os alunos entoavam nomes de escolas públicas do Rio, sempre seguidos pelo verso “escola de luta”. Era um outro hino. Um outro contexto.
Lucas estava no Cairu para participar do Viradão Musical, evento realizado por produtores culturais no dia 26 de abril para apoiar a ocupação da escola, iniciada há cerca de um mês. O Cairu é um dos mais de sessenta colégios ocupados por secundaristas que, inspirados pela ocupação de escolas públicas em São Paulo e pela greve corrente de professores da rede estadual, exigem melhorias básicas na infraestrutura das escolas, amputadas pelo corte de R$ 2,9 bilhões nas verbas destinadas à Educação no Estado do Rio de 2015 para cá.
A situação é realmente drástica. Em um breve passeio pelo Cairu, orientado pelos alunos da ocupação sem líderes, vi laboratórios abandonados e sucateados, banheiros sem luz, elevadores desligados e salas de aula minúsculas para a quantidade de alunos, algumas abrigando o dobro da quantidade prevista. (Mais) um descaso obsceno dos comandantes da Cidade Olímpica, maquiada para receber os estrangeiros, mas visivelmente largada à podridão dos desmandos políticos. O governo estadual, é claro, rechaça o movimento, e mal consegue dialogar com os estudantes, tamanha incapacidade. Por outro lado, o movimento tem recebido apoio notório de integrantes da nova geração da música brasileira, frequentemente criticada pela falta de protagonismo na polarização política dos nosso tempos.
Recentemente, escrevi sobre “Opinião”, faixa-ícone do levante contra a ditadura militar, e muito tenho ouvido sobre a ausência de canções como “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” ou “Cálice” em plena ebulição política no país. De fato, não temos um hino, nem dois. Significa que o momento atual não se reflete politicamente na música? Não. Isso ainda acontece, mas por caminhos diferentes.
“O lado bom da crise política ter se agravado é que a classe artística está muito mais presente”, diz Lucas Santtana, ao ser questionado sobre o papel dos artistas em movimentos sociais e políticos como a ocupação nas escolas. “Eu sempre me posicionei politicamente, mas aqui no Brasil o pessoal da cultura tem medo de perder uma boquinha ou outra se criticar, acha que vai perder edital, e não tem nada a ver uma coisa com a outra. A música faz parte do cotidiano de todos os brasileiros, e por isso é importante que quem faz música se posicione”, reforça.
Além de Lucas, artistas como Ava Rocha, Teresa Cristina, Biltre, Orquestra Voadora, Clarice Falcão e Tico Santa Cruz estiveram no Viradão Musical do Cairu para declarar apoio à ocupação, com pocket-shows adornados por discursos de incentivo à luta estudantil. Eventos semelhantes têm acontecido em outras escolas, e a gratidão dos estudantes pelo apoio é evidente.
“Eu amei que os artistas vieram aqui. Foi um tiro!”, brinca Eloiza Bernardino, 17 anos, que faz o 2º ano no Cairu. Eloiza é uma das integrantes mais comunicativas da ocupação, e se emociona ao relatar a rotina dos estudantes, responsáveis por organizar o dia-a-dia na escola – da alimentação ao controle de entrada e saída do colégio. No horário de aulas, os estudantes promovem encontros e aulões ministrados por professores e alunos de ensino superior que apoiam a ocupação. “Tá uma maravilha, tá melhor do que antes. Eu não sei se a gente vai querer desocupar (risos). Tem exibição de documentários, debates, shows de talentos, os artistas vindo… A gente tá aprendendo pra caralho, ninguém tá vindo por presença, por nota. A galera tá vindo pelo conteúdo. Tá muito lindo”, avalia Eloiza, que mais tarde se aproveitaria do próprio dom à oratória para virar a mestre de cerimônias citada no primeiro parágrafo.
Rafael Oliveira, outro secundarista do Cairu, concorda com Eloiza. “Eu durmo todos os dias aqui e estou me sentindo mais seguro no colégio, que antes não tinha nem porteiro”, diz. “De repente você descobre que um cara que passa todo dia por você no corredor canta, toca violão, e você nem sabia. A ocupação reaproximou todo mundo, e fez com que eu visse coisas que eu achei que jamais veria, tipo o Tico Santa Cruz no meu colégio”, derrete-se.
Arthur Ferreira e Vicente Coelho, integrantes da Biltre, ressaltam a importância do posicionamento político, em especial da cena independente. “A gente estar dentro de uma escola fazendo arte é revolucionário. A arte sozinha não é solução, que é a educação. Mas é uma saída”, argumenta Vicente. Para Arthur, atos como o Viradão provam que é possível transformar através da música. “A gente tem que aplaudir os alunos, e não o contrário. Quando a gente se junta, quando a gente soma, a gente encontra pessoas que também querem fazer a diferenca. O Jorge Mautner fala que o Brasil é o único país do mundo que pode salvar o mundo, então a gente tem que acreditar cada vez mais na gente, acreditar na nossa miscigenação, na nossa cultura”.
Vivemos tempos descentralizadores, onde ídolos são construídos às costas da grande mídia. No meio do turbilhão, voz nenhuma se destaca para quem procura nos lugares de sempre, saturado pela música-enquanto-produto consumida pela classe média – também um ato político, como o entretenimento pelo entretenimento da Jovem Guarda. Do batuque do BaianaSystem à finesse sofrida de Elza Soares, do impacto cultural do rap à aceitação do funk como fenômeno pop, e em todo artista que sai da zona de conforto por estudantes que exigem direitos elementares há, sim, atitude política na música brasileira atual, pois não há como dissociar uma da outra. E do outro lado, bem, quem é o grande herói político da nação? Há algum? Deve haver? As vozes são múltiplas, raramente uníssonas, mas nem por isso menos impactantes. O tempo dirá.
Até a publicação deste artigo, o Colégio Estadual Visconde de Cairu seguia ocupado pelos estudantes, sem previsão de desistência.