“Música em troca de hospedagem e alimentação”. Foi com esse conceito em mente que a cantora inglesa Lucy Rose embarcou, no fim de março, em uma turnê de dois meses pela América do Sul e pelo México, com shows totalmente organizados por ela em contato direto com fãs ávidos deste lado do globo. Segundo a própria, em uma série de blogs publicada no site The Line of Best Fit, Lucy sempre teve vontade de viajar e conhecer o mundo fora do circuito aeroporto-hotel-show-hotel-aeroporto das longas turnês, e depois de ver tantos apelos do tipo “PLS COME TO BRAZIL” na internet (funciona, olha aí), ela juntou dinheiro suficiente para custear passagens, trocou e-mails com os fãs fazendo as vezes de produtores e embarcou pra cá.
Dona de uma carreira solo de repercussão considerável no universo indie e parceira ocasional do quarteto londrino Bombay Bicycle Club, Lucy viajou com a proposta de realizar shows (quase sempre) gratuitos, hospedada na casa dos fãs, em troca de conhecer mais do nosso planeta. O rolê começou pelo Equador, seguiu para o Peru, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e chegou ao Brasil via Porto Alegre, e de lá para o Rio e depois São Paulo.
A jornada toda está descrita em detalhes no post dela sobre o capítulo brasileiro da experiência, mas o Luís Gustavo Coutinho, músico, jornalista e um dos fãs que ajudou a organizar os shows dela em São Paulo, escreveu um texto com exclusividade para o Faixa Título narrando todo processo do lado de lá da história – o do fã que tem a honra de receber uma artista que adora. Segue o relato dele:
A sorte de ter um contato com algum ídolo, mesmo que dure apenas alguns segundos, pode te deixar sorrindo por semanas. Quando esse contato se estende por três dias e envolve a organização de um show por vários meses sem dinheiro e sem a menor experiência prévia, incluindo um show de abertura da sua banda, o seu cérebro com certeza entra em curto-circuito. O ídolo em questão é a Lucy Rose, cantora britânica com uma carreira solo excelente e voz feminina do icônico Bombay Bicycle Club (agora em hiato, infelizmente). E até que ela estivesse na sala de uma das minhas melhores amigas, tocando minha viola caipira depois de comer três fatias de goiabada da minha vó, todos os envolvidos percorreram um longo caminho.
Em Fevereiro recebi uma mensagem da Paula, grande amiga de Porto Alegre que está sempre por São Paulo pra ver as turnês que ignoram a capital gaúcha. Quando a Lucy Rose anunciou pelo twitter que queria sair em mochilão pela América Latina atendendo os intensos pedidos de vários fãs, e tocar em todos os lugares onde oferecessem casa, comida, roupa lavada e alguma estrutura pra fazer um show de graça, a Paula foi a primeira a fechar um show no Brasil. Com a missão cumprida por lá, me sugeriu de falar com a Lucy e tentar marcar um show pra um dos dias em que ela estaria aqui por São Paulo (já havia um outro show planejado em lugar aberto, que acabou sendo o show que levou 1200 pessoas na última terça para a frente do House of Bubbles em Pinheiros).
Com a cabeça a mil, imediatamente pensei no Elevado, um bar/espaço ótimo em Santa Cecília onde eu já tinha tocado com a minha banda e que além de confiável, era o lugar perfeito pra um show intimista desses. Na época o Derek, dono do lugar, entrou de cabeça no plano e nenhum de nós imaginava o quanto o interesse por esses shows aumentaria. Enviei um email para a Lucy chamado “São Paulo Concert – Here’s a lovely place!” que seria respondido em poucas horas e ao qual se seguiriam 45 emails trocados entre eu e ela até o dia do show. Já no segundo email, falei sobre a minha banda que se chama Falso Coral e na qual eu toco um “violão barroco de dez cordas” na melhor tradução possível de viola caipira para o inglês. Por sorte havíamos acabado de lançar nosso EP numa estreia exclusiva pela Billboard Brasil, e terminado de editar o clipe de “Still on the Race”, que provocaram a seguinte resposta da Lucy: “Love your music! (…) Of course you can open for me!”.
Essa foi a primeira amostra da generosidade infinita que parece emanar da Lucy Rose e do marido dela, o Will, que a acompanhou nessa turnê. E a aprovação pro show de abertura causou um dos primeiros tilts que o meu cérebro sofreria nesse processo, já que além da admiração imensa que eu tenho pela Lucy Rose, nós do Falso Coral passamos os últimos meses de 2015 debruçados sobre “Luna” do Bombay Bicycle Club, que foi uma das influências mais diretas na gravação e produção do nosso EP. Entre as outras poucas músicas que estavam nesse “altar” de influências estão “Sprawl II” do Arcade Fire e “If Looks Could Kill” do Camera Obscura.
E nas minhas mãos estava a responsabilidade de garantir que no máximo 100 pessoas assistiriam com segurança e pagando apenas 5 reais a um show de uma artista internacional que eu adoro, que tem vídeos que se aproximam dos 3 milhões de views no YouTube, e ainda tocar e cantar no meio do caminho. Não sei se pra você paulistano esperto essa parece uma tarefa fácil, mas pra mim que nasci numa fazenda na menor cidade do Brasil, as coisas ficavam eventualmente apavorantes.
Lucy chegou no fim de Março ao Equador e o mês de Abril foi interminável enquanto eu acompanhava as aventuras e desventuras de sua turnê no twitter e nos seus detalhadíssimos diários de viagem. Meu medo que algo pudesse dar errado era constante e muito palpável, e culminou na distribuição dos 80 ingressos a R$5, dois dias antes do show, quando o hype em torno da passagem dela por aqui já ultrapassava qualquer previsão inicial nossa. Obviamente haviam muito mais que 80 pessoas esperando a distribuição dos ingressos, obviamente pessoas tentaram furar a fila e obviamente as pessoas do final da fila continuaram lá mesmo depois que a octogésima pessoa esperando foi avisada que os ingressos só dariam até ali.
Mas ao transferir qualquer possível confusão para dois dias antes do show, garantimos que a segunda-feira em que Lucy Rose chegou no Elevado se transformasse num dia verdadeiramente mágico. O cenário e o palco foram montados num mutirão entre Derek e Lucas do Elevado e a trupe do Falso Coral: nosso baterista Pedro que cuidou do som e ainda descolou um piano elétrico pra Lucy tocar e o nosso baixista Henrique. A nossa apresentação seria acústica como a de Lucy: apenas Bela, eu e a viola caipira.
Lucy e Will chegaram pouco antes da hora prevista pro nosso show começar, e numa rápida conversa entre eu e eles já deu pra perceber que eu estava diante de pessoas realmente iluminadas. Afinal de contas alguém que tira grana do próprio bolso pra tocar de graça por dois meses, visitando até cidades que nunca tinham tido apresentações internacionais, só pode estar sendo movido pelas melhores das intenções e pelo amor à música e aos fãs. Depois eu vi por fotos que a Lucy assistiu o nosso show, o que eu não vi e agradeci por não ter visto, pois provavelmente desmaiaria durante a apresentação.
O público de Lucy Rose, afeito ao indie-folk e coladíssimo no espaço virtual que separava público de “palco”, recebeu super bem nossa apresentação e ainda pediu mais duas músicas no final. Três dias depois encontrei uma resenha falando muito bem do nosso show e do evento como um todo, e meu lado que escreve resenhas de shows há 5 anos sentiu algo inédito.
Voltando para o show, acompanhei emocionado Lucy assumindo o posto logo depois da gente e mandando uma hora de música tocada e cantada com sensibilidade inacreditável. A voz dela ao vivo parece uma entidade de algum mundo muito mais elevado que o nosso. E o seu domínio sobre o violão (principalmente) e sobre o piano é realmente admirável. Como cantora e como instrumentista, Lucy Rose é uma aula ambulante e ao longo dos outros dias também descobriríamos que ela é PhD em humildade e simpatia (me desculpem).
Mesmo exausta e morrendo de fome, Lucy atendeu cada pessoa que veio falar com ela com a maior alegria do mundo. E mesmo já com planos de ver ela e Will nos outros dias, pedi um autógrafo no meu vinil do So Long, See You Tomorrow (2014), último disco do Bombay, e entreguei uma garrafa de cachaça de Araxá com mel e limão, que ela abriu e tomou enquanto eu “protestava” dizendo que era melhor gelada. Ela simplesmente ignorou meus protestos.
Ana Laura, fiel escudeira do Falso Coral, diretora dos nossos clipes e mais fã ainda tanto da Lucy quanto do Bombay, também estava se correspondendo com ela nos últimos meses oferecendo lugar pra Lucy e Will ficarem. Ana também é amiga da Paula, e as duas se conheceram no show que o Bombay fez no Circo Voador em 2011, show esse onde a Lucy estava tocando! Quem poderia imaginar que por causa daquele show 5 anos atrás, tudo aquilo estava acontecendo? A música tem caminhos que vão muito além do que a gente sonha.
Em São Paulo, Lucy acabou ficando na casa do Wolf, idealizador do House of All do qual o House of Bubbles faz parte, mas passou as tardes de terça e quarta com a gente, o que incluiu a Ana cozinhando moqueca pros nossos visitantes ilustres e um rolê de Pinheiros até o Centro. Foi o que deu tempo de fazer mas gerou memórias que pareciam de um mês inteiro.
Ao almoço da moqueca se seguiu um rodízio de doces brasileiros e uma conversa extensa sobre trivialidades e sobre nossa situação política. E é incrível como pessoas de fora, talvez por estarem em contato com um jornalismo como o do Guardian que sempre analisou a situação por aqui de modo imparcial, entendem e enxergam rápido as imensas contradições do que está acontecendo. Do nada Lucy deu play no seu celular do famigerado vídeo em que a palavra “anulação” é repetida dezenas de vezes. Ela e Will estavam super ligados no que estava e está acontecendo.
E quando Lucy e Will já estavam meio atrasados pra passagem de som do show de terça-feira, Lucy atendeu ao pedido da Paula pra que ela tocasse viola e mandasse um vídeo disso pra ela. Durante uns 10 minutos, Lucy criou melodias enquanto “decifrava” a viola caipira e começou até a compor com o instrumento que a fez exclamar “Eu nunca toquei nada parecido com isso antes! É maluco!”. Lucy me fez prometer levar uma viola caipira pra ela em Londres, promessa que eu cumprirei eventualmente (alguém tem uma passagem sobrando aí?).
Entre atos de generosidade inacreditáveis (por causa de um desses atos a Ana Laura vai conseguir assistir o show de uma certa banda que acabou de lançar disco e cujos ingressos tinham se esgotado em 10 minutos), trocas de experiências e mil planos pra um futuro próximo, subimos no Martinelli na quarta, enquanto o tempo nublado dava espaço pra raios de sol isolados. E não consigo deixar de ficar surpreso com o quanto nós nos abrimos e eles se abriram pra gente, conversando sobre coisas bem pessoais com a confiança de quem se conhece há muito tempo, de ambas as partes, enquanto admirávamos os não-horizontes dessa cidade infinita.
É incrível a sensação de abandonar o nervosismo e conversar por horas com um ídolo de igual pra igual, como amigos mesmo. Algo que eu nunca tinha sentido antes. Superar o espanto que me dominava desde a primeira vez que conversamos e enxergar a Lucy como uma pessoa maravilhosa, gentil, mas tão passageira desse barco incerto quanto a gente. Mesmo que seus mega hits “Middle of the Bed” e “Our Eyes” se revezassem na minha cabeça desde a segunda feira, servindo de trilha pra esses momentos surreais. Todos ali com a mesma idade e dispostos demais a aprender uns com os outros.
Depois de um rápido passeio por alguns pontos do Centro, uma viagem colada no vidro do primeiro vagão da Linha Amarela e de volta a Pinheiros encontrando o melhor coquinho caramelizado do universo (eles simplesmente surtaram com o coquinho), veio a despedida chorosa que parecia um final de Sessão da Tarde. E Lucy disse a “moral da história” definitiva que continua ressoando em mim até agora:
“Quando a gente percebe o quanto estamos no controle de como escolhemos viver, a gente vive muito mais do que vivia antes”.
Longe de estar ensaiado, esse discurso parece ter muito a ver com o quanto essa viagem modificou Lucy e Will, e tem modificado e melhorado vários fãs no caminho. E pra ter uma ideia da visão da Lucy sobre tudo e de como essa turnê tem realmente mudado vidas, fica a dica de ler o diário dela sobre a passagem pelo Brasil e ler também os dos outros países. E que venham mais artistas pra esses lados nesse mesmo esquema! Tem casa, comida e roupa lavada pra todo mundo!
Lucy Rose lançou o segundo álbum solo, Work It Out, em julho de 2015. Já o Falso Coral, banda do Luis, lançou Folia, o EP de estreia, em fevereiro deste ano.