Passava das 4h da manhã, e uma pequena multidão extasiada dançava embalada por um grupo egípcio à beira do Mediterrâneo. Pouco antes disso, um produtor alemão de eletrônico tocou a íntegra do álbum que lançou dias antes, observado por uma plateia atenta, que tinha acabado de sair extasiada da catarse punk de um artista californiano. Previamente, o grupo islandês mais famoso da terra fez milhares de pessoas flutuarem sem saírem do lugar, logo após uma performance ritualística da cantora inglesa mais influente da cena alternativa. E isso só nas horas finais do Primavera Sound Festival 2016, certamente o conjunto mais imponente de shows que eu outras 200 mil pessoas tiveram a chance de ver na semana passada, diretamente de Barcelona.
Se havia dúvidas de que o Primavera Sound é um dos melhores festivais do planeta, a edição deste ano do evento fez questão de eliminá-las. Sediado em Barcelona há 16 anos, o festival catalão fez em 2016 a sua edição mais celebrada, um sucesso de público e crítica que consolida o Primavera Sound entre as grandes franquias internacionais de música.
Se em eventos como o Burning Man ou o Tomorrowland a música muitas vezes é reduzida a trilha sonora de uma experiência mais ampla, no Primavera a organização se dedica à música e à oferta de uma boa estrutura ao público. O segundo quesito falha às vezes, como em todo evento desse porte, mas nunca a ponto de prejudicar a vivência do festival. O maior trunfo do Primavera é mesmo a curadoria do line-up, tradicionalmente baseado em grandes nomes da vanguarda artística e revelações do cenário mundial recente. Este ano, Radiohead, LCD Soundsystem, PJ Harvey, Sigur Rós e Tame Impala figuraram entre os headliners, apenas uma pequena parcela da programação gigantesca distribuída em nove palcos diferentes – sem contar com os eventos paralelos promovidos pelo festival, que integram centros culturais e casas de shows espalhadas pela cidade.
As atrações de 2016, somadas, viraram uma representação generosa da produção musical contemporânea. Da fúria à tranquilidade, do saudosismo ao futurismo, artistas de diversos tempos, origens e estilos passaram por lá, desde bastiões como Radiohead e Brian Wilson, a artistas novos, semi-desconhecidos, de países como Israel, Japão, Congo e o próprio Brasil. É uma troca de experiências sem paralelo no circuito global de festivais, o ambiente perfeito para que fãs, artistas e produtores ampliem horizontes, referências e entendam o que está por vir no universo musical daqui pra frente.
O futuro é eletrônico, mas analógico também
Nesta edição, minha segunda consecutiva, vi quase trinta shows, entre performances completas e passagens rápidas pelos palcos entre uma parada ou outra. Logo no primeiro dia, uma excelente surpresa: enquanto fazia hora para um outro show, acabei no show do Beak>, um dos projetos paralelos de Geoff Barrow, do Portishead. Um show despretensiosamente poderoso, com timbres afiados, e que ditou a tônica de boa parte do som do (meu) Primavera Sound 2016: uma fusão ajambrada entre universos cada vez mais próximos, o eletrônico e o analógico. Seja em instrumentos reprocessados digitalmente ou na música eletrônica criada com a liberdade do improviso, esses dois universos se relacionam há décadas, mas parecem cada vez mais conectados com o avanço da tecnologia. Ao longo dos três dias de festival, essa mistura ressurgiu diversas vezes, como no excelente live do Floating Points – projeto do produtor Sam Shepherd, dessa vez muito bem acompanhado por músicos de alto calibre – e na catarse espiritual do Sigur Rós, que abriu o show com “Óveður”, faixa inédita em que a banda mergulha de vez no universo eletrônico. Outros destaques nesse sentido, como é de se imaginar, foram os shows do LCD Soundsystem, que transformou a área do palco principal na pista de dança que todos queríamos, e o do Radiohead, que tornou-se a banda mais relevante dos últimos tempos justamente por colidir aspectos eletrônicos e orgânicos em um mundo só.
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Embalado pelo lançamento recente do delicado A Moon Shaped Pool (2016), o Radiohead fez um show perfeito para festivais, com equilíbrio entre hits (“Paranoid Android”, “Idioteque”, “Creep”), b-sides (“Talk Show Host”) e claro, novidades, com direito a seis músicas do novo álbum. Algumas, como o single “Burn the Witch”, perderam força ao vivo pela falta das orquestrações que protagonizam o novo trabalho. Por outro lado, “Ful Stop” revelou-se ainda mais forte que no álbum, a exemplo de “Lotus Flower” e “Bloom”, ambas de The King of Limbs (2011), repaginadas pelo quinteto que ao vivo tem o apoio de um segundo baterista.
Aliás, o que não faltou foi show com duas baterias. Radiohead, Thee Oh Sees, Boredoms, Islam Chipsy & EEK (sensacional, um dos shows mais divertidos do festival) e Kamasi Washington, só entre os que eu vi. Kamasi, figura central na minha lista de álbuns apara entender o novo jazz, é fenomenal ao vivo. Acompanhado por um sexteto, o saxofonista californiano distorce as barreiras do tempo com uma habilidade impressionante, seja ao guiar a banda em canções enormes, repletas de espaços dedicados ao improviso, ou em solos virtuosos e emocionalmente intensos. Do free jazz ao afrobeat e o fusion elétrico, com espaço para influência clara da cena hip-hop de Los Angeles, o grupo de Kamasi incorpora diversas escolas do jazz, em um show longo, mordaz e de difícil digestão, mas profundamente inspirador.
Enquanto Kamasi encontra a beleza no excesso, outros shows se destacaram justamente pela simplicidade primorosa. Foi o caso de Brian Wilson, que tocou a íntegra do clássico Pet Sounds (1966) do Beach Boys com maestria e despretensão, fazendo piada da óbvia incapacidade de cantar como nos tempos dourados. Houve também o excelente show do Savages, uma exaltação feminista urgente e raivosa, e os dois shows do Ty Segall, um dentro do festival e outro na tradicional festa de encerramento do Primavera, realizada na belíssima sala Apolo. Em ambos, Ty exibiu uma cruza furiosa entre o hard rock e a psicodelia garageira, acompanhado pela excelente banda de apoio batizada de The Muggers. No primeiro, Ty promoveu o caos e chegou a trocar de lugar com um fã alucinado, que roubou a cena ao assumir o microfone e elevar o nível de insanidade da performance. O segundo parecia uma sinfonia de puro fuzz coreografada por braços, pernas, cabeças e smartphones erguidos num contorcionismo hedônico, uma verdadeira celebração musical.
O Brasil no Primavera
A cena independente nacional também fez bonito no Primavera Sound em 2016. Water Rats, Inky, O Terno, Aldo The Band, Mahmed, Nuven e Quarto Negro representaram o país musicalmente, numa parceria entre o Primavera e representantes de selos e festivais brasileiros como Balaclava Records (SP), Bananada/A Construtora (GO) e o DoSol Festival (RN). Não foi a primeira vez que artistas brasileiros estiveram por lá – no ano passado, lembro de cabeça de bons shows de Camarones Orquestra Guitarrística, Jaloo, Terno Rei e Câmera. Mas este ano a cena brasileira roubou os holofotes, foi bonito de ver. Todos os shows que vi atraíram um bom público, com destaque para o Inky, que com nova formação – o baterista Luccas Vilela, um monstro nas baquetas, entrou recentemente – ganhou nova potência. Inclusive, vale ficar de olho: a banda atualmente produz um novo álbum, o primeiro desde Primal Swag (2014), com produção de Guilherme Kastrup, que assinou nada menos que A Mulher do Fim do Mundo (2015), o novo clássico de Elza Soares. Vem coisa boa por aí.
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O Faixa Título dá um tempo aqui pelas Europas porque semana que vem tô de volta a Barcelona para o Sónar. Nos falamos em breve.