Durante a segunda edição do Vento Festival, que aconteceu entre os dias 9 e 12 de Junho na Praia do Perequê, em Ilhabela, litoral norte de São Paulo, o TMDQA! bateu um papo com a Salada das Frutas, projeto musical que une a cantora Liniker e a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, sempre com algum convidado especial: na ocasião foi o rapper Rico Dalasam.
O “supergrupo” se apresentou na segunda noite do evento, no mesmo palco por onde passaram Jaloo, Aldo, The Band e o Bonde do Rolê (veja tudo que rolou clicando aqui e aqui). Liniker despontou no cenário nacional com seu soul contemporâneo após o lançamento do EP Cru, em Outubro do ano passado, e vem encantando o público com músicas como “Zero”, “Caeu” e “Louise du Brésil”. A artista lançou recentemente sua campanha de financiamento coletivo no Catarse para o lançamento do primeiro álbum, Remonta.
Já As Bahias e a Cozinha Mineira surgiram em 2014 com uma sonoridade que bebe profundamente na Tropicália e no Clube da Esquina. O grupo, liderado pelas vocalistas travestis Assucena Assucena e Raquel Virgínia, lançou seu belíssimo álbum de estreia Mulher no ano passado. Algumas horas antes do show, Liniker, Assucena e Raquel nos receberam para uma entrevista, onde falaram sobre o novo projeto, música, militância e política. O resultado você lê na íntegra a seguir:
TMDQA!: Olá gente, obrigado por me receberem e parabéns pelo som de vocês. Primeiro, me contem, como surgiu o projeto da Salada das Frutas?
Raquel Virgínia: A Salada das Frutas, a gente já tinha uma ligação no sentido… A gente já tinha se conhecido e a imprensa vinha associando bastante.
Assucena Assucena: Foi depois da [matéria da] Rolling Stone. A gente lembra que uma amiga que produziu a gente, a Mayara, chegou pra mim e falou que conhecia Liniker, e ela queria fazer uma coisa com a gente. Ela estava combinando e acabou que não deu certo continuar. Mas aí os nossos empresários se conheciam e perceberam que existia uma cena ali colocada. A gente acabou se conhecendo antes e pegamos uma amizade também, começamos a nos ouvir, a nos conhecer.
Liniker: Muito veio disso, acho que desse encontro. É necessário ter As Bahias, ter Liniker, ter Tássia [Reis], ter Rico juntos, ter [Mc] Linn [da Quebrada]. É muito importante, porque mostrar que a gente tá aí e que representatividade importa, quanto mais junto a gente tiver, mais fortes e prontas vamos estar. Prontas pra lutar mesmo juntas, sabe? Eu sinto que é um projeto muito importante, para mostrar que independente de todos os nossos trabalhos, a gente tá junto e acaba virando uma força coletiva muito forte.
Raquel: E aí os nossos trabalhos tem levado a gente a ficar. Foi até uma coisa que eu disse ali fora. Esse trabalho tem aproximado bastante a gente, e a gente tem ficado cada vez mais íntimo.
Assucena: De forma natural, né?
Raquel: De forma natural, a nossa ligação está se tornando uma amizade mesmo, entre todo mundo. E isso é ótimo, porque a resistência com amizade fica mais forte ainda, né. É aquela coisa: todos juntos, todos irmãos.
Assucena: Eu tenho muita admiração pelo trabalho de Liniker, de Mc Linn da Quebrada, de Tássia Reis, de Rico [Dalasam], da própria Raquel que é minha companheira da mesma banda. Eu tive essa sorte de conhecer artistas da minha época e de comungar uma admiração assim.
Raquel: Isso é difícil.
Assucena: É difícil. E eu tenho mesmo essa admiração. A primeira vez que Liniker apareceu, não é à toa que ela apareceu e todo mundo mudou de vida, bagunçou a gente (risos). Porque é de fato muito bonito, quando eu ouvi Tássia pela primeira vez eu fiquei assim, fascinada. […] Tanto que quando eu sai de uma apresentação de Mc Linn da Quebrada eu fiquei assim também, atordoada, cheguei e falei pra todo mundo. Foi uma relação ao mesmo tempo de admiração, e eu acho que existia ali uma intersecção de linguagem. Embora esteticamente fosse tudo muito diferente. Quando digo estética não é o visual, é a estética artística, a estética do ponto de vista filosófico-artístico. Embora esteticamente fosse totalmente diferente, Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira, a própria Raquel de mim e eu da Raquel. Existe uma linguagem que intersecciona a gente. Embora eu não seja rapper e eu não seja soul como Liniker e, enfim…
Liniker: A gente acaba sendo.
Asscuena: É, a gente acaba sendo.
Raquel: Nossa, eu nitidamente já sou afetada pelo trabalho de todos assim. Me afeta profundamente a voz de Liniker, até porque é uma voz grave e eu também tenho uma voz grave. Eu sei lá, tenho ganhado mais força no canto por conta da voz dele que é absolutamente fantástica e forte. O rap do Rico me fez, assim como o da Tássia, inclusive passar a compor numa pegada de rap.
Liniker: Eu gravei um single com a Tássia que a gente canta rap e eu nunca cantei rap na minha vida.
Raquel: Nem eu.
Liniker: É essa influência, assim, tipo, essa coisa de quanto mais íntimo a gente fica e os nossos trabalhos começam a focar mais, que a gente começa a colocar no nosso trabalho.
TMDQA!: E os trabalhos de vocês, As Bahias, o seu trabalho Liniker solo, como fica agora pra conciliar com a turnê da Salada das Frutas?
Raquel: Isso tá acontecendo naturalmente, porque as carreiras todas de alguma forma estão começando.
Liniker: E todas também estão em um fluxo muito grande de movimento, de estar tocando bastante. Então a gente segue a turnê e o nosso trabalho continua.
TMDQA!: A gente tem visto muitos artistas questionando gênero na música e até se fala em uma “cena queer”. Como é que vocês se colocam dentro disso tudo, se é que se colocam?
Assucena: Eu acho que sempre tentam rotular, às vezes não é nem por mal, é pra tentar entender um fenômeno que acontece e onde existe um certo traço fisionômico de uma época. Eu não me considero nem “geração tombamento”, como se tem falado, e nem uma cena queer, por identidade mesmo.
Raquel: O que é queer?
Assucena: Queer é um conceito tipo gay, bicha…
TMDQA: É questionamento de gêneros, né, não binarismo de gênero…
Raquel: Entendi.
Likiner: Às vezes parece que precisam mastigar a gente pra ficar mais fácil de entender o que é aquilo. Então, ah, eu vou rotular: As Bahias são MPB clássica, a Liniker é a cantora queer do show. Acho que é muito pelo contrário assim, somos artistas. Eu pelo menos fujo de todos os rótulos, não gosto de rótulos. Acho que nós artistas estamos colocando o que a gente sente no nosso trabalho, as nossas vivências. Que nem eu tava falando ali, o que eu canto é o que eu faço no meu dia a dia, então não sei se sou de uma geração queer.
TMDQA: Talvez seja algo que está tomando muito espaço agora por conta do momento que o Brasil está vivendo. Vocês acham que tem a ver o fato de existir uma onda conservadora muito grande de um lado, enquanto de outro, uma atenção muito especial, principalmente para as questões LGBT, que existe uma reação?
Assucena: A onda conservadora sempre existiu, o reacionarismo sempre esteve aí. O que não estava eram os nossos direitos, o que não estava eram as nossas conquistas civis mesmo. Na medida em que a gente começou a conquistar direitos civis, essa onda reacionária… É, Bolsonaro sempre esteve ali no lugar dele, agora na medida que a gente conseguiu conquistar direitos, aí aparecem reivindicando, e com uma reação violenta e tentando estuprar os nossos direitos. E assim, não existe só o direto das travestis, dos homossexuais, das lésbicas, tem uma questão da mulher aí que é muito profunda e que interfere em todos esses meios. Eu acho que o feminismo foi uma das grandes revoluções que tomou conta do século XX.
Raquel: E tem uma questão racial também que não compreende todos nós artistas negros, a gente têm discutido isso, tanto internamente quanto expondo isso pra imprensa. Uma das minhas preocupações, justamente de não deixar que enfiem a gente tão facilmente em certos rótulos, é não apagar certas batalhas. Então, acho que são coisas sérias que se for pra gente discutir mesmo em termos de militância…. Artisticamente isso aparece também no nosso trabalho, todas essas questões, mas existem muitas, para além das LGBT que nos circulam, entende?
TMDQA!: Só pra não encerrarmos sem a nossa pergunta clássica, vocês também tem mais discos que amigos?
Assucena: A pergunta mais legal de hoje, né. (risos)
Raquel: Se eu tenho mais discos que amigos? (risos)
Assucena: Ah, tem!
Raquel: Eu tô aprendendo agora a mexer no Spotify e nesses outros lugares porque eu não costumo ouvir música quantitativamente, eu não tenho uma relação quantitativa, tanto que às vezes as pessoas me falam de artistas que eu não conheço e eu não tenho vergonha nenhuma de reconhecer. Porque eu passo às vezes ouvindo um disco, por exemplo, o disco do Emicida eu ouvi por, tipo, cinco meses.
TMDQA: Certo. Liniker, só conta pra gente sobre o projeto de financiamento coletivo pro seu álbum de estreia, o Remonta?
Liniker: Ah, sim, a gente abriu a campanha de financiamento coletivo do álbum, escolhemos também isso. No meio disso tudo, desse alcance que a gente teve de visibilidade, acho que não é nem uma coisa tipo ego, é um espaço que a gente merece ocupar. E a gente fugindo de todas as gravadoras, querendo continuar nosso trampo independente, o trabalho dos nossos olhos, então a gente achou nada mais justo e importante abrir para as pessoas que ouvem a gente, que vão aos nossos shows, pras pessoas que a gente sabe que realmente estão conosco e que acreditam no nosso trabalho. E aí decidimos abrir a campanha do Catarse, faz dois dias e tá bombando já.
TMDQA!: Vai até quando?
Liniker: Vai até 22 de Julho, tem 41 dias.
Raquel: Remonta vem aí com tudo!