1959. Embalado pelos lançamentos de ‘Round About Midnight (1955), Miles Ahead (1957) e Milestones (1958), álbuns que o estabeleceram como um compositor de vanguarda naquela década, Miles Davis lançou Kind of Blue. Obra-prima daquele tempo e de qualquer outro, Kind of Blue transformou Miles, aprendiz de Charlie Parker e um bandleader criativo e autoritário, no incontestável rei do jazz, título que ele havia disputado com poucos desde o explosivo Birth of the Cool (1951).
Por um período breve, em meados dos anos 50, um dos candidatos ao mesmo trono foi Chet Baker, dono de voz mansa e linhas suaves de trompete. Musicalmente, eram quase opostos, ainda que tocassem o mesmo instrumento. Chet criava linhas doces e era tratado como novo James Dean. Chegou a ser eleito o trompetista do ano da conceituada revista Downbeat em 1954, vencendo o próprio Miles. Do outro lado do ringue, Miles era agressivo, combativo e ríspido, no trompete e fora dele. Miles não queria descobrir novas tendências, mas criá-las, inventar a música que ainda não existia – o que invariavelmente conseguia.
Naquele mesmo 1959, Baker lançou Chet, um disco totalmente instrumental – exceção na discografia dele – e morosamente lento, afogado pela percepção vagarosa de tempo que Chet sentia ao injetar heroína. Kind of Blue alçou a carreira de Miles a proporções inimagináveis. Fez sombra inclusive ao lançamento de Chet, que viria a se tornar o auge a preceder anos de decadência na carreira de Baker, revertidos parcialmente apenas décadas depois.
Dois gênios atormentados pelo vício, e de trajetórias diferentes, mas lotadas de intersecções até então. Dali pra frente, Chet caiu no ostracismo, e Miles se consolidou como um dos catalisadores da evolução musical no século XX. A comparação dos dois tornou-se difícil, improvável, impossível.
Em 2016, as duas histórias voltaram a se cruzar, agora no cinema. Miles e Chet ganharam tratamento hollywoodiano em biografias que chegaram aos cinemas americanos separadas por poucos meses. Miles Ahead, dirigido e protagonizado por Don Cheadle, é ousado e inventivo como o homem em quem é inspirado. Born to Be Blue, de Robert Budreau e protagonizado por Ethan Hawke, escolhe caminhos mais tradicionais, mas também romantizados, para contar um período turbulento na carreira de Chet Baker. Dois filmes essencialmente distantes, como os personagens reais em que se inspiram, mas integrantes de um mesmo universo.
Em Miles Ahead, Miles é herói e vilão em uma história de ficção inspirada e enfeitada por elementos da realidade. Cheadle se inspirou no período sabático de Miles, depois do lançamento de Agartha e Pangea em 1975. Emocionalmente frustrado e vítima de uma série de problemas de saúde, Miles se escondeu da vida pública, e só voltaria a lançar álbuns inéditos seis anos depois. Cheadle desenvolveu, a partir daí, uma história digna dos clássicos de blaxploitation: instigado por um (inventado) repórter da Rolling Stone, vivido por Ewan McGregor, Miles adota um comportamento digno de gângster para recuperar sessões inéditas, roubadas por executivos da Columbia Records, com direito a tiroteios e perseguições de carro.
O filme ainda rendeu uma excelente trilha sonora, que conta com versões tocadas pelo próprio Cheadle e um álbum inteiro de reinterpretações de clássicos de Miles produzidas por Robert Glasper, intitulada Everything’s Beautiful (imperdível, independentemente do filme).
Nem tudo é inventado em Miles Ahead. O filme “costura” o enredo com fatos reais, como a relação abusiva de Miles com a esposa Frances Taylor, que se transformou no eixo emocional do filme, ou a prisão de Miles em 59, quando ele foi espancado por um policial racista enquanto fumava na calçada em frente ao Birdland, durante curta temporada em que ele se apresentava com o mesmo quinteto que gravou Kind of Blue. Foi uma forma inteligente e ousada de contar parte da história de Miles sem apelar para a exaurida fórmula de cinebiografias musicais, onde costuma-se tentar resumir uma vida inteira em cerca de 90 minutos.
Por sua vez, Born to Be Blue também cria, inventa, aumenta e exagera, mas como o personagem em quem é inspirado, é menos ousado que Miles Ahead. O filme aborda os dramas e os desdobramentos da dependência química, guiados por uma relação intensa com uma personagem inspirada em várias namoradas, amantes e esposas de Baker na vida real, e que no filme é justamente uma atriz que interpreta várias namoradas, amantes e esposas em uma cinebiografia de Baker. Metalinguagem que pouco acrescenta, mas que, mais uma vez, resolve o dilema de contar um história tão ampla e complexa em apenas um filme.
Há de se reconhecer as qualidades da melancolia de Born to Be Blue, um retrato fiel dos fracassos de Baker. Mesmo sabendo o fim triste e trágico da vida de Baker, é impossível não torcer por uma reabilitação que nunca chega, ou não se emocionar com o duelo do trompetista com os demônios internos. No entanto, o filme peca ao transformar Miles Davis em uma espécie de algoz invejoso, que teme o retorno como uma ameaça à própria carreira. Na vida real, Baker nunca foi uma ameaça ao reconhecimento de Miles, apenas foi privilegiado pela pele branca em uma sociedade explicitamente racista, e ambos sabiam disso.
Para quem busca histórias mais próximas da realidade, é mais fácil encontrá-las em livros como Deep In a Dream, de James Gavin, que narra toda a vida de Chet Baker com uma prosa fluida e bem construída. Miles, por sua vez, contou a própria história em Miles: The Autobiography, que oferece um belo panorama de quem foi Miles Davis não pelas histórias contadas, mas pela forma como Miles escolhe distorcê-las.
Se encarados com leveza e despreocupação, Miles Ahead e Born to Be Blue são ótimas paráfrases de dois dos personagens mais polêmicos da história do jazz, e valem a audiência. Mas deixam claro, acima de tudo, que o maior legado de ambos, como pessoas ou artistas, são as obras musicais que construíram em décadas de vivências extremamente turbulentas.
Miles Ahead e Born to Be Blue não foram lançados no Brasil, mas seguem disponíveis nos clientes de torrents de sua confiança.