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Faixa Título: a balada pulsante de Rita Lee, agora em livro

Entre pingos nos is e alguns pontos finais, Rita Lee disseca seu legado artístico e pessoal em Rita Lee: Uma Autobiografia

Rita Lee

Rita Lee nem sempre foi Rita. Rita Lee foi Lita, foi Regina Célia, foi Bruxa, foi Mutante, foi “hippie-comunista-com-um-pé-no-imperialismo-e-festeira-fútil”. Transitou entre o auge à decadência – não necessariamente nessa ordem – e passeou com destreza e um tanto de sorte pelas próprias definições de céu e inferno. E essa jornada, a vida e obra de uma das maiores e mais controversas estrelas do nosso tempo, é finalmente revisitada e esclarecida em Rita Lee: Uma Autobiografia, lançada recentemente pela Globo Livros.

Perto de outras autobiografias da cultura pop, Rita Lee: Uma Autobiografia é um passeio no parque. Não por oferecer histórias tediosas, que fique claro: a graça vem justamente da leveza com que tabus, encrencas e causos de quase-morte são relatadas por Rita, que destrinchou tudo sozinha, sem ajuda de um ghostwriter. As únicas intervenções, muito bem-vindas, são feitas por Guilherme Samora, jornalista, fã incondicional e amigo pessoal de Rita, que, em parágrafos onde assina como o “fantasminha”” Phantom, corrige os erros cometidos pela memória da cantora, e acrescenta dados e curiosidades à narrativa.

O livro começa no casarão paulistano onde Rita cresceu, filha mais nova de Chesa, a mãe descendente de italianos, e Charles, filho de imigrantes norte-americanos de quem Rita herdou o sobrenome Jones e de quem ganhou o famoso Lee, sobrenome acrescentado como homenagem a um general confederado. O início doce, quase na linha “era uma vez…”, é subitamente atropelado por um relato breve e perturbador de um abuso que Rita sofreu aos 6 anos. Se abusos são experiências traumáticas hoje, onde tentamos discutir o tema com mais liberdade, imagine em terra brasilis, no início dos resguardados anos 50.

Capricorniana pragmática, fruto de 31 dezembro, Rita não oferece ao leitor nenhum tipo de extensa análise auto-consciente do episódio, e pisa fundo rumo à rebeldia pré-adolescente, controvérsias familiares e, enfim, o início da carreira musical. Essa é, a todo tempo, a toada do livro, que dali pra frente relata com riqueza de detalhes a transformação da Rita caçula à Rita matriarca, passando pelos embates festeiros com o regime militar e a relação com ícones como Elis Regina, Ney Matogrosso, Raul Seixas, Hebe Camargo, Jorge Ben ou Mick Jagger, entre muitos e vários outros.

Tratando-se de música, o livro não apenas oferece um panorama até agora inédito de toda a obra de Rita, mas também faz jus à subestimada parceria dela com Roberto de Carvalho, aliança historicamente ofuscada pela produção de Rita com Os Mutantes. “Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”, escreve Rita em determinado momento. Juntos nos quartos, nos estúdios e nos palcos, Rita e Roberto foram responsáveis por alguns dos melhores momentos do cancioneiro pop nacional, e Rita não poupa parágrafos para destacar a predileção pela criação com o eterno namorado, mesmo ao ressaltar a falta de inspiração em discos como o errático Zona Zen, de 1988. Justo.

Ao abordar sua trajetória com os Mutantes, Rita oferece pontos de vista essenciais sobre a história do grupo ao longo do livro. Da misógina hierarquia do trio à mitificada relação com Arnaldo Baptista, Rita fala de absolutamente tudo, e detalha inclusive os conturbados reencontros com Arnaldo e Sérgio Baptista ao longo das últimas décadas. Em alguns trechos, Rita desabafa anos e anos de cobranças injustas feitas por fãs, jornalistas e pelos próprios irmãos Baptista. “O que eu acho de revivals? um bando de velhas raposas reunidas no que considero ‘como descolar uma graninha pra pagar nossos geriatras'”, vocifera. “Talvez não tenha sido mesmo o ‘cérebro por trás’ de nenhuma banda de rock da qual fiz parte. Modestamente, eu era a alma, quando uma banda morria, meu santo encarnava em outra”.

A única ausência notória é um relato mais profundo da prisão de Rita após show em Aracaju, em janeiro de 2012, no penúltimo show da carreira. Revoltada com o tratamento violento que parte do público recebeu da PM local, Rita revoltou-se contra os soldados e acabou processada por mais de 40 policiais (reveja a confusão acima). Os processos ainda correm na morosa burocracia judicial brasileira, e por isso os trechos referentes ao episódio foram cartunescamente riscados do livro. Uma pena.

Sedenta por descobrir o próprio destino, Rita viveu com uma intensidade ímpar. Decidida a se afastar dos holofotes, vive a aposentadoria artística com a tranquilidade de quem extraiu da vida o melhor dela, como Rita ou qualquer uma das incontáveis personalidades que adotou ao longo do caminho. Rita Lee em todas elas, todas elas em Rita Lee.