Dentro do imenso (mesmo!) e tradicionalíssimo carnaval de Recife, acontece o Festival Rec-Beat. Há 22 anos o evento é um oásis para quem se interessa por música independente ou apenas quer conhecer novos sons dentro daquela habitual folia.
O festival se destaca como uma iniciativa de muita importância na valorização da “música fora do eixo”. Teve para todo gosto: rap, cumbia, rock, free jazz e mais um monte de estilos. Foram 23 atrações no palco principal e mais o Recbitinho, que eram ações diurnas voltadas ao público infantil.
Não dá para deixar de abrir um parêntese para elogiar a plateia pernambucana. Mesmo quem não era exatamente o público de gêneros musicais de acesso mais difícil, estava lá aberto a o que era oferecido. Isso faz uma diferença enorme tanto para a curadoria quanto para os próprios artistas.
Quem começou a festa foi a The Baggios. Com toda a sua energia, a dupla apresentou o show da turnê de Brutown, seu disco mais recente. Os pontos altos da apresentação ficaram para “Saruê”, canção que conta com a participação de Jorge Du Peixe, e a ótima versão que fizeram para “Vou Danado pra Catende”, de Alceu Valença.
Seu Pereira e o Coletivo 401 é uma banda da Paraíba que chamou muita atenção em seu show no Rec-Beat. Eles aproveitaram a oportunidade do festival e de seu público atento para apresentar a faixa inédita “Eu Não Sou Boa Influência”, que estará no próximo álbum do grupo. Ao tocarem “Cabidela”, uma música com uma forte mensagem política, o vocalista lembrou que a compôs nos anos 90, na época de FHC e quando as pessoas ainda morriam de fome no Nordeste.
É importante ressaltar que esse ar de reivindicação política esteve presente durante todos os dias do evento. “Fora Temer” com certeza foi a frase mais usada naquele palco e respondida prontamente pelo público. Ainda bem.
Fantasiados para o carnaval, O Terno trouxe pela primeira vez ao Recife o show da turnê Melhor do Que Parece. Faixas como “Culpa”, “Ai Ai Como Eu me Iludo”, “Eu Confesso”, “Zé, Assassino Compulsivo”, “Lua Cheia”, “66” e muitas outras completaram o setlist da excelente apresentação.
Sem dúvidas, um dos melhores shows da edição de 2017 foi o da ÀTTØØXXÁ. O grupo baiano encerrou a primeira noite do evento com sua música urbana característica da periferia de Salvador. A mistura de pagode, axé e elementos eletrônicos transformou o Cais da Alfândega em uma espécie de micareta. O público respondeu à altura e até se empenhou nos passos de swingueira.
Craca e Dani Nega, de São Paulo, levaram ao Rec-Beat sua mistura de arte e política em música de resiliência de alta qualidade. As canções apresentadas mostraram a força do discurso de valorização das minorias. A excelente “Papo Reto” foi dedicada às mulheres que sofrem diariamente com o machismo e teve notório apoio do público.
Quem também se destacou foram os chilenos da Negros de Harvar. A banda combina ritmos latinos com rap e rock e isso resulta numa música urbana contemporânea bastante cativante. Uma mistura que agrada ao público e evoca o espírito do carnaval de swing, suor, cerveja e dança.
Vitor Araújo é a prova que santo de casa faz milagre sim. E dos fortes! Em sua apresentação o músico pernambucano colocou a percussão, piano e elementos eletrônicos em sua composições com uma destreza admirável. O menino é um geniozinho bem talentoso e tem um magnetismo que prendeu o público inteiro em suas canções instrumentais e experimentais. Se Thom Yorke tivesse nascido no nordeste talvez fizesse algo bem parecido com isso. O TMDQA! recomenda o rapaz.
Olhando rapidamente para La Dame Blanche no palco do festival o primeiro pensamento que se tem é “que presença!”. Mas ela é bem mais que isso. A cantora cubana mistura cumbia, reggae, hip hop com uma habilidade que nem dá para acreditar. Com muito carisma, simpatia e uma baita combinação de elementos eletrônicos e ritmos latinos, a artista logo colocou toda a plateia pra dançar.
Logo em seguida, veio o soco no estômago. As Bahias e a Cozinha Mineira talvez nem ofereça o que a gente quer, mas sem dúvida alguma nos dá o que a gente precisa. Na hora exata. Raquel Virgínia e Assussena Assussena são como duas forças da natureza confabulando entre si. É o tipo de música urgente, necessária e providencial. Canções que falam sobre questões de gênero e nos lembram do peso do machismo e homofobia. Além disso, ainda fizeram covers incríveis de “Na Hora do Almoço”, de Belchior, e talvez a melhor versão que já tenhamos ouvido do clássico “Pagu”. Se essa banda passar pela tua cidade, se faça um favor e veja esse show.
Quem finalizou o Rec-Beat foi ninguém menos que o icônico Jards Macalé. São 50 anos de carreira e participação enorme na história da música popular brasileira. O artista parecia muito feliz de estar ali naquele palco também histórico. E nem os pequenos problemas de som tiraram esse sorriso. Faixas como “Revendo Amigos”, “Negra Melodia”, “Hotel das Estrelas”, “Soluços” e o clássico “Vapor Barato” eram cantadas a plenos pulmões por todo o público. A surpresa maior ficou por conta de uma participação especialíssima de Marcelo Jeneci. O músico dividiu os vocais de “Eu Só Quero Um Xodó” com Macalé. A apresentação foi finalizada com um medley de marchinhas de carnaval e todo mundo dançando na chuva. Nada mais apropriado.
Mais do que apenas um festival e, mais importante, uma alternativa, o Rec-Beat é um evento com personalidade. Que vende sem ser vendido e continua acreditando em suas escolhas. É muito bonito ver que mesmo em uma festa tão popular, há espaço para se divertir caso você não curta tanto o mais comum. Há sempre espaço, basta querer e se esforçar para tanto.
O TMDQA! viajou e se hospedou em Recife a convite da produção do festival para cobrir o evento.