Faixa Título: Kamasi Washington é um fenômeno, com todos os motivos para isso

Em noite brilhante no Rio de Janeiro, Kamasi Washington alia técnica e destreza emocional para tentar justificar o hype em torno de si.

Kamasi Washington no Rio

Kamasi Washington é grande, corpulento. Um homem enorme, largo, um vazio no palco durante as breves ausências. Sob pálpebras retas, o olhar dele foca um ponto misterioso no fundo da plateia. Nada o distrai. Com sopro firme, comanda o suingue de uma banda composta por outros nove integrantes, durante duas horas de uma viagem espiritual às profundezas da música negra, do afrobeat ao hip-hop, com pinceladas de reggae, soul e gospel e toques de free jazz amarrados na técnica e na virtuose do jazz fusion. Uma força da natureza.

O saxofonista tocou pela primeira vez no Brasil ontem à noite (quarta, 05), no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e segue para dois shows no estado de São Paulo nos próximos dias. A base do repertório foi The Epic (2015), disco de estreia do saxofonista, e que representa muito bem a que veio e para onde vai Kamasi Washington: um disco ambicioso, com quase três horas de duração total e todos os ingredientes musicais citados no parágrafo anterior.

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Ao vivo, Kamasi é fenomenal. Comanda com ares de maestro uma banda coesa e fluida, auxiliado pelo tecladista Brandon Coleman, o braço direito do saxofonista no grupo. Ao fundo, dois bateristas cercam o baixista Kris Funn, adição recente à banda de Washington, dono de uma destreza ímpar entre os baixistas da atualidade. À frente de Funn, o carismático percussionista Leon Mobley e a vocalista Patrice Quinn roubam a cena ocasionalmente, quando o centro das atenções não são os dinâmicos solos de Kamasi ou a simpática presença tímida da flauta e do sax soprano do pai dele, Rickey Washington.

O show é emocional, intenso. Além de convocar a presença do pai, Kamasi dedica uma canção à avó-matriarca (“Henrietta Our Hero”) e guia quase todas as músicas a um encerramento catártico e explosivo, mesmo baladas como “The Rhythm Changes”, que encerra o disco um de The Epic. Dono de uma calma alegre ao falar, Kamasi agradeceu a recepção calorosa da plateia carioca com um bonito improviso inspirado nas harmonias da bossa nova, que começou com um desnecessário som sampleado de pássaros e culminou em um ataque triplo de baterias e percussão.

Foi meu terceiro show de Kamasi Washington, e certamente o melhor dos três. O primeiro, registrado aqui no Faixa Título, foi no Primavera Sound do ano passado, mas a apresentação de Kamasi perdeu o brilho entre outros trocentos shows geniais. No fim de dezembro, o assisti novamente em um boliche no Brooklyn, Nova Iorque, em um show mais técnico que visceral. Ontem, Kamasi arriscou menos diante de uma plateia desacostumada a ver jazz, e acertou. Nos poupou de 15 minutos de um enfadonho duelo de bateria, por exemplo, para dar mais destaque aos melhores momentos de The Epic.

Os ingressos se esgotaram rapidamente, e nos últimos dias o Facebook virou feira de procura por ingressos de última hora. Fui algumas vezes ao Municipal desde que mudei pro Rio, mas nunca o vi tão cheio, tão disputado. Nem quando a Orquestra Sinfônica Brasileira tocou a suíte Norwegian Wood, de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. É motivo de comemoração, claro, mas me trouxe a pergunta: por que o impacto de Kamasi Washington não reverbera em outros nomes do jazz? Por que o público se interessa tanto por ele, mas ignora solenemente tantos outros artistas?

Fruto da virtuosa cena do jazz californiano, Kamasi foi convidado por Steven Ellison, o homem que conhecemos como Flying Lotus, para lançar um disco pelo selo de Ellison, o Brainfeeder. Isso no início da década, quando o Brainfeeder ainda começava a flertar com o jazz. Kamasi topou, com uma condição: que Ellison o permitisse criar o álbum que quisesse, sem limites ou amarras. Depois de anos, veio The Epic, uma epopeia digna do nome de batismo.

The Epic tinha todos os motivos para dar errado. Quem liga para o jazz no século XXI, a não ser para falar com nostalgia de um tempo que não viveu? Quem ouve álbuns com mais de meia hora de duração, quiçá três horas? Na era das playlists, quem ouve álbuns?

Ainda assim, The Epic deu certo. E muito. Impulsionado ao estrelato pela associação com o Brainfeeder e a participação de Kamasi em To Pimp a Butterfly (2015), disco célebre de Kendrick Lamar, The Epic foi louvado por Pitchfork’s e afins e virou queridinho tanto de hipsters de gosto oco quanto de gente bem-intencionada em se atualizar no universo do jazz, além dos intelectuais que acompanham a cena com mais vigor. Kamasi virou porta-estandarte do jazz contemporâneo, querendo ou não.

O sucesso de Kamasi é, em parte, fruto do efeito hipster, da citação recorrente ao nome de Kamasi nos círculos cool. Algo similar ao que aconteceu a Donny McCaslin, saxofonista pouco conhecido até capitanear a banda que gravou Blackstar, o último álbum de David Bowie. E, a exemplo de McCaslin, isso tudo poderia ser um problema não fosse o segundo motivo: a qualidade de The Epic, infinitamente superior a outros  pares contemporâneos por conseguir ir além do lugar-comum da virtuose maçante do jazz fusion. Na dúvida, basta compará-lo a Uprising e Planetary Prince, discos recentes de integrantes da banda que gravou The Epic, mas muito, muito inferiores ao disco-mãe.

Ou seja: apesar de ser fruto do hype, Kamasi justifica o auê em torno de si ao traduzir infinitas frentes musicais, de diversos tempos e origens, em um trabalho sem pares na atualidade.

Um fenômeno com toda razão de ser.

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