Foto de Chris Cornell via Shutterstock
Quase nada parece mais desonesto no jornalismo do que repercutir a morte de um grande ídolo. É essencial, claro, que noticiemos, que ofereçamos informação e contexto aos leitores. Há informação a ser repassada, há interesse do público, e voilá; a equação está pronta. Mas mesmo quando tudo acontece como deve acontecer, algo parece errado nessas situações.
O problema está no outro lado de uma linha fina. Na repercussão interna dos números, dos cliques, da audiência exorbitante que esse tipo de acontecimento às vezes traz. A frieza com que invariavelmente se trata a morte não só de um ícone, mas de um ser humano que, seja uma celebridade repleta de parentes e amigos ou um ermitão há décadas no anonimato, merece respeito e privacidade.
Ontem foi um dia muito estranho, nebuloso. Enquanto o sistema político brasileiro repetia e ampliava as convulsões que assistimos há meses (vaza, Temer!), Chris Cornell morreu. Do nada.
Fez um show, voltou para o hotel, e amanheceu sem vida.
Oficialmente, um suicídio sem alardes. Já fala-se em suicídio acidental, motivado pela consciência alterada após uma dose grande de ansiolíticos. De qualquer forma, uma morte precoce que ninguém imaginava.
Meu primeiro impulso ao receber a notícia foi ouvir a voz dele outra vez. De todos os projetos que Cornell liderou, sempre preferi a sombra do Soundgarden. Mas caí antes no Temple of the Dog, projeto que ele criou com integrantes do que se tornaria o Pearl Jam para gravar composições dele em tributo ao amigo Andrew Love Wood.
Andrew, ou Andy, era uma figura perturbada e carismática da cena de Seattle. Vocalista da Mother Love Bone, morreu aos 24 anos após uma overdose de heroína. A ele, Cornell dedicou “Say Hello 2 Heaven”, a primeira música do primeiro e único disco do Temple of the Dog. E a música que escutei ontem, de cara.
“Please, mother of mercy
Take me from this place
and the long winded curses
I keep here in my head.”
Era impossível não relacionar a morte de Cornell, então não confirmada como suicídio, a versos que confrontam a morte com tanta afronta. Angustiado e preso às notícias, aos artigos, aos tweets, aos retweets, às primeiras homenagens, fui, enfim, para o Soundgarden. Comecei pela minha favorita desde sempre, “Blow Up the Outside World”, do maravilhoso Down on the Upside, de 1996:
“Nothing seems to kill me, no matter how hard I try
Nothing is closing my eyes
Nothing can beat me down for your pain or delight
And nothing seems to break me
No matter how hard I fall, nothing can break me at all
Not one for giving up, though not invincible, I know.”
Depois de alguns instantes incomodado pela combinação mórbida de versos, me atentei para o quanto eu estava sendo ridículo ao elocubrar hipóteses e suposições sobre um homem que nunca conheci. Nem a família de Cornell conseguiu entender o que aconteceu. E, do lado justo da imprensa, li uma boa entrevista dele à Rolling Stone, em 1994, onde ele critica justamente quem buscava entrelinhas mórbidas nas letras de Andy Wood, Kurt Cobain e nas dele para justificar qualquer tipo de tragédia.
Ao longo do dia, senti vontade de escrever aqui no Faixa Título sobre Cornell. De revisitar todos os seus projetos, quem o influenciou e quem ele influenciou em retorno. Discorrer sobre “a falta que ele fará”. Esse tipo de clichê.
Mas fui perdendo a vontade ao longo do dia, meio chocado com opiniões manifestadas não em prol não da informação ou da homenagem, mas de todo tipo de suposição, fofoca e teorias conspiratórias.
A inclusão de um trecho de “In My Time of Dying”, do Led Zeppelin, durante “Slaves & Bulldozers”, a última música cantada pelo vocalista, ainda motiva posts cheios de convicção nas redes por aí.
Se intencional, uma escolha macabra. Se acidental, uma coincidência macabra.
Sinceramente, e daí? Não interessa.
Se foi intencional, que Cornell esteja em paz agora.
Se não foi, que também esteja em paz.
Cornell impactou a minha vida e a de milhões de outras pessoas ao redor do mundo. O disco do Temple of the Dog e canções diversas do Soundgarden estão fielmente atreladas à minha história pessoal. A música dele mudou meu rumo. Rumo que me levou a, como fã e profissional, a cobrir a primeira, última e única passagem do Soundgarden pelo Brasil, no Lollapalooza 2014.
Foi uma hora e meia de um inesquecível choque de mundos, onde o adolescente idealista em mim revisitava, ao som de uma de suas trilhas sonoras recorrentes, o jovem adulto incerto das próprias escolhas que o levaram até ali.
Mas isso não me dá liberdade de fantasiar sobre ele. Assim como eu, há inúmeras outras histórias de vida transformadas por Chris Cornell. Muitas e muitas delas, inclusive, mais íntimas e passionais. E assim como houve Cornell, houve tantos outros e outras, tantas palavras cantadas em versos que mudam completamente nossos caminhos. Que nos aproximam de novas histórias, de novas pessoas, da gente mesmo.
Ontem, no meio de toda a confusão, portais americanos repercutiram uma declaração asquerosa sobre morte de Chris Cornell. Franz Stahl, ex-guitarrista do Foo Fighters e do Scream, postou que Cornell era “egoísta” por ter se matado. Eis que Stephanie Hahne, redatora do TMDQA!, brilhantemente transformou o que seria apenas um texto-fofoca de péssimo gosto em um artigo sobre como deve-se respeitar, acima de tudo, quem escolheu, pelo motivo que for, não estar mais aqui.
Da ofensa, o cuidado. O respeito. E, quem sabe, caminhos mudados, renovados por novas histórias, com novas pessoas, dentro de cada um que passou por ali. Como o que a música faz pela gente. No fim, foi por isso que escrevi este post. Por gratidão pelos caminhos que a música de Cornell me fez trilhar. Um agradecimento vazio que nunca chegará a seu destino.
Obrigado, Chris Cornell.