Nos dias 26 e 27 de agosto acontece em São Paulo mais uma edição do Oxigênio Hardcore Fest, que reúne quase 30 bandas independentes, de diferentes perfis e tempo de estrada. Considerando que muito se discute sobre a frequência de eventos desse estilo, relevância das novas bandas e os caminhos do underground nacional, conversamos com artistas, produção e público para debater o papel de cada um e entender o atual cenário do hardcore no país.
A primeira parte desse especial aborda a questão estrutural dos festivais independentes, apoio e comparecimento do público, além da famosa discussão: o underground atual está enfraquecido?
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As novas formas de consumo
Há anos ouvimos o discurso de que o underground vai mal das pernas, o rock morreu e o hardcore não produz mais nada de relevante. Entretanto, ao mesmo tempo vemos ótimas bandas sempre surgindo e muita gente movimentando a cena e fazendo acontecer.
“As coisas mudaram mais por conta da internet e a segmentação que já existe há muitos anos”, aponta Rodrigo Lima, vocalista da banda Dead Fish. Ele afirma que em em quase 30 anos envolvido com punk e hardcore nunca viu tantas bandas produzindo coisas relevantes e criativas como hoje em dia. “Acredito que a quantidade de bandas aumentou, mas a relevância dos cenários locais diminuiu. Aí surge esse sentimento de que nada está acontecendo, é curioso”, completa.
Já Ricardo Galano, guitarrista do Não Há Mais Volta, acredita que sim, o cenário como um todo enfraqueceu: “isso vai desde a falta de interesse das pessoas pelo rock, por em ir aos shows ou conhecer algo novo – a não ser que seja no conforto do seu celular ou computador – até pelo excesso de bandas, às vezes muitas iguais”.
É inegável que as gerações mudam, os hábitos e formas de consumo também. Com isso, ao mesmo tempo que as informações chegam de maneira mais rápida, elas também se perdem mais facilmente.
O tecnólogo em logística, Edson Xavier, é frequentador assíduo de shows e eventos independentes há cerca de 20 anos. Para ele, as novas tecnologias acabaram criando um certo comodismo: “lembro de quando nos reuníamos pra ouvir um disco, o encarte ia passando de mão em mão, lia-se os agradecimentos, participações, quem produziu. Uma coisa sempre leva a outra, conheci muitas bandas citadas em agradecimento. Um emprestando, indicando disco pro outro, quase furando de tanto ouvir”.
Rafael Pelegrino (Piu), produtor de shows e um dos responsáveis pelo Oxigênio Hardcore Fest, garante que a cena do rock no Brasil nunca precisou e nunca teve estabilidade. De acordo com ele, ainda existe uma grande movimentação acontecendo, porém a internet e as redes sociais fazem com que as pessoas saiam menos de casa para consumir ou falar sobre música. “Antigamente a gente trocava ideia sobre banda enquanto tomava uma cerveja ou enquanto estava em algum rolê, show. Hoje em dia, usamos o Whatsapp, Messenger, e ficamos ali, dentro de casa”.
Há quase 30 anos envolvida com o underground, a jornalista Deise Santos também aponta a facilidade da comunicação como um fator importante para toda essa mudança: “antes as pessoas iam aos shows pela experiência de ver a banda ao vivo, mas também para adquirir material. Hoje está tudo tão líquido que há uma geração que se contenta em ver uma transmissão ao vivo na página da banda”.
O Novo x O Velho
Assim como a relação com a música mudou, as reclamações e questionamentos também. No começo dos anos 2000 a discussão era outra. Bandas do underground começaram a atingir o mainstream e se tornaram populares. Festivais e eventos aconteciam regularmente em espaços lotados. E, então, as bandas passaram a ser acusadas de estragar a cena.
“Isso não é rock” era uma frase muito ouvida. De fato, muita coisa descartável surgiu nesse período, mas a questão é que sempre vai ter alguma queixa sobre o que está sendo produzido e a falsa impressão de que o underground está sempre indo ladeira abaixo.
“Quando a cena estava bem mais movimentada as reclamações eram outras, e tinha aquele discurso de ‘saudades da época em que eu colava… aquilo que era bom’”, lembra o baterista do Bullet Bane, Renan Garcia, que completa: “o que importa mesmo é pra quem tá dentro”.
A respeito das mudanças, Rodrigo diz não achar que antes tudo era melhor. “Hoje é melhor para 80% das coisas, menos pra criação de um senso de pertencimento verdadeiro. Nenhum golpista vai cair com postagem no Instagram e nenhuma banda vai se tornar realmente conhecida se não tocar ao vivo”.
Quanto aos shows, Galano destaca que tem mais bandas tocando para um público muito reduzido do que para bastante gente. “No mesmo final de semana, têm diversas bandas do mesmo estilo que tocam em diferentes lugares da cidade. O público acaba se dividindo e isso também não fortalece a cena”.
Galano fala ainda sobre o fato das bandas nacionais não estarem mais no rádio e na TV. “Querendo ou não, ainda são dois meios de comunicação com forte apelo em nossa sociedade”, afirma. Deborah Babilônia, vocalista da Deb And The Mentals, concorda que a cena enfraqueceu quanto ao apoio das rádios e à mudança de foco da MTV, por exemplo, mas garante: “temos ótimas bandas atualmente, nesse quesito estamos bem fortes!”
André Dea, baterista do Sugar Kane, também acredita que apesar das mudanças o cenário segue firme. “A força que as bandas tinham em 2004, 2005 não é exatamente a mesma. É diferente, mas ainda assim muito impactante”, conclui.
O papel do público
Se por um lado as bandas seguem a todo vapor produzindo material, o público já não é tão presente. Eventos de maior porte continuam atraindo muitas pessoas, mas o mesmo não acontece com eventos menores, onde a maioria dos presentes são os próprios integrantes das bandas que estão tocando.
“Acredito que falte mais apoio às produções com bandas nacionais e aí falo de um público que se empolga mais em pagar caro em um show internacional, mas no domingo à tarde não vai a um show de menor porte, com bandas locais, que acontece a duas quadras da sua casa”, critica Deise.
Mais do que isso, é fácil observar que eventos que não contam com uma banda consagrada dificilmente irão lotar, fazendo com que Dead Fish e Garage Fuzz, por exemplo, sejam praticamente presenças obrigatórias como headliners em festivais.
O próprio Oxigênio levou mais gente em 2015, com bandas mais antigas, do que em 2016, com bandas relativamente mais novas. De acordo com Piu, a preocupação nunca foi a quantidade de público, mas a mensagem transmitida. “A edição de 2015 precisava ter as bandas mais velhas, justamente para ascender o fósforo. O segundo já mostrou bandas mais novas e a chama já estava acesa”.
Piu lembra também que isso é normal em todo lugar e nicho, os “dinossauros do rock” carregam muita gente com eles: “Imagine que em um show lotado do Dead Fish, pelo menos uma ou duas bandas se formam. Eu já presenciei isso, já vivi isso. Daqui alguns anos, podem fazer isso ao assistir o show do Chuva Negra, ou do Never too Late. Quem sabe?”
Para Deborah isso também envolve uma certa nostalgia, por serem bandas que fizeram parte da história de uma geração. “Dead fish e o Garage Fuzz são como o NOFX, Bad Religion para a gente aqui. Eles são os precursores desse tipo de som no Brasil”.
André compartilha da mesma opinião, ao dizer que Dead Fish e Garage Fuzz são o que nosso hardcore produziu de melhor. “Essas bandas estarem tocando fortalece não só o evento, mas também as bandas mais novas, que terão a possibilidade de tocar para um público que ainda não teve contato com elas e está lá principalmente por causa das bandas maiores”, completa.
Ainda assim, nem todo mundo que comparece a eventos e festivais assiste às bandas de abertura. É comum as primeiras atrações do line-up tocarem para um público bastante reduzido em um local que horas mais tarde estará lotado para as atrações principais.
Rodrigo diz que não sente um peso pelo fato do Dead Fish ser uma das poucas bandas de hardcore que realmente levam um público grande aos shows, entretanto afirma: “já ouvi de algumas pessoas que em festivais do gênero temos que tocar”. Para ele, pode ser que exista um certo conservadorismo e falta de abertura para o novo, mas também pode ser que exista uma dificuldade devido às novas plataformas de consumo musical. “Não deve ser nada fácil uma banda de rock no seu primeiro disco rivalizar com o catálogo inteiro do AC/DC disponível no Spotfy”.
O papel dos festivais
Diferente das edições anteriores, agora o Oxigênio Fest será realizado em dois dias, em um espaço maior, com palcos simultâneos e atividades diversas, indo além da música.
O objetivo, segundo Piu, é proporcionar um espaço que traga de volta o espírito de ir até um lugar pra um encontro hardcore. “Ver as novidades, conhecer gente nova, mostrar a cara. Se não curtir a banda, vai ver a outra, reclama, xinga, pula, corre. Mas ali, trocando energia com o cara do lado. Longe de casa, sem tela do computador”.
“Não é um evento apenas musical, mas artístico. Você terá exposição de arte, skate, a chance de ver a sua banda favorita e ainda conhecer novos artistas que estão atrás do seu lugar ao sol. É uma oportunidade de juntar e fortalecer não só a cena do punk rock ou hardcore, mas do rock em geral”, explica Galano.
Para Renan, são festivais como esse que constroem o futuro da música independente. “Quando era muito jovem fui em festivais assim e isso fez com que eu tivesse mais certeza do que amo fazer e do que quero pra vida”. E esse é o mesmo pensamento de Rodrigo, que afirma que “festivais pontuam o que está acontecendo e o que vai acontecer, são termômetro de um cenário”.
O público tem a oportunidade de ver seus artistas favoritos, viver novas experiências, se inspirar e conhecer coisas novas. Ao mesmo tempo, bandas que estão começando ganham a oportunidade de expandirem seu som e conquistar mais espaço.
“Hoje em dia está difícil marcar shows. Pessoas que levantam e movimentam festivais como esse são aquelas que querem que a cena não acabe. É algo trabalhoso e o retorno não é garantido”, conta Deborah.
É difícil arriscar em coisas novas, é difícil apostar em um evento grande, é difícil ganhar o apoio do público. O desafio é imenso, mas ainda tem muita gente que acredita em tudo o que está sendo realizado, ainda tem muita gente disposta a fazer dar certo. A nova edição do Oxigênio Fest é mais um passo importante.
“Mostra-se que é possível nadar contra a corrente, que é possível fazer acontecer”, define Edson, além de destacar a importância da necessidade de mais patrocinadores e produtores engajados em ampliar esses eventos, com mais frequência e em outras cidades e estados.
Deise fala ainda que é preciso enxergar que o hardcore é parte de algo maior e eventos devem dialogar com outras formas de arte e entretenimento. “Isso ajuda a renovar e fidelizar o público, o que acho primordial nos tempos atuais”, finaliza.