No próximo final de semana será realizado o Oxigênio Hardcore Fest, que nessa edição contará com dois dias de shows e atividades diversas. Pensando na variedade de atrações e relevância de eventos como esse, nós conversamos com artistas, produção e público para uma matéria especial sobre o hardcore nacional e a estrutura no underground como um todo.
A primeira parte do especial falou sobre a força das bandas independentes e as mudanças na forma de consumo musical ao longo dos anos, além do papel do público e dos festivais quanto ao fortalecimento da cena.
Agora, a abordagem é a respeito dos novos rumos e o que precisa ser feito para melhorar em termos de estrutura e comparecimento. Dedicamos também um espaço para o debate em torno do machismo e a falta de oportunidades para as mulheres.
Ainda é possível encontrar ingressos para o Oxigênio Hardcore Festival clicando aqui.
Bandas e casas encerrando as atividades
Há alguns anos acompanhamos bandas relevantes anunciando o fim das suas atividades, seja apenas um hiato ou de modo definitivo. A surpresa veio quando casas de shows tradicionais do underground também passaram a fechar, como o Inferno Club e o Hangar 110, que funcionará apenas até o final deste ano.
Para Rafael Pelegrino (Piu), produtor de shows e um dos responsáveis pelo Oxigênio Hardcore Fest, esses ciclos fazem parte da vida. “Acho que tudo que acaba abre mil possibilidades de novos acontecimentos, novos projetos. Acredito que o Hangar 110 cumpriu seu papel, como todas as bandas que pararam,” defende.
André Dea, baterista do Sugar Kane, compartilha da mesma opinião e acrescenta: “De certa forma, isso muda a maneira como os artistas mais novos irão trabalhar pra desenvolver seu som e crescer. É uma pena que novas grandes bandas que ainda vão surgir nunca terão a chance de tocar num lugar como o Hangar 110. Por outro lado, tudo o que o Hangar construiu e representou sempre estará lá, intacto, e vai servir como inspiração e exemplo.”
“Acho normal bandas acabarem, mas não acho justo lugares como o Hangar 110 acabarem,” declara Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish, que tem uma visão mais pessimista sobre os fechamentos. “As cenas mudam, estilos ficam mais relevantes, mas casas de shows fecharem são portas que se fecham pra todos, em todos os estilos musicais. Casas, selos e gravadoras que desaparecem são como jogar a gente de volta na dependência das mídias de massa, nos jabás da vida,” completa.
Se por um lado os motivos pelos quais as bandas decidem parar variam bastante, por outro, o fechamento de casas geralmente está ligado às dificuldades de se manter. Em seu comunicado oficial, o Hangar 110 cita, por exemplo, a falta de interesse do público como um fator importante. Tornou-se recorrente a casa estar completamente cheia para apresentações de bandas renomadas, porém vazia em eventos menores.
Frequentador assíduo de shows independentes há cerca de 20 anos, o tecnólogo em logística Edson Xavier fala sobre o Hangar, casa que mais frequentou, e de como as coisas realmente mudaram. “Antes do anúncio do fechamento cheguei a ver shows com menos de 50 pessoas ali, gosto de lembrar do Hangar sempre cheio,” conta ao dizer que o ciclo precisou ser encerrado.
Deborah Babilônia, vocalista da Deb And The Mentals, lembra ainda que os altos custos também devem ser levados em conta. “Giuliano [baterista da banda], me contou que ia muito aos shows em São Paulo pagando R$10 reais em lugar que hoje é R$35. Isso influencia bastante, a galera para de frequentar, sendo assim as bandas param de curtir fazer show (dentre outros milhões de perrengues que bandas passam, né?!). Preço de cerveja, água… também influenciam. Então, tem uma série de fatores com relação às casas, acredito eu.”
Apesar de todas as dificuldades, Deise Santos, jornalista envolvida com o underground há quase 30 anos, mantém uma perspectiva confiante: “assim como bandas e casas estão encerrando suas atividades, muitas outras estão surgindo – e falo dos dois casos. Espaços menores têm surgido e as iniciativas estão por todos os lados”.
Os desafios na realização dos eventos
Hoje em dias temos equipamentos de forma mais acessível, o que possibilita que eventos e festivais independentes tenham uma melhor estrutura e suporte técnico. Ao comparar com antigamente, Rodrigo afirma: “os PAs são muito melhores, existe uma rede de trabalho no entorno que não existia no começo, como roadies, produtores, catering e técnicos de som, que acredito que existam porque festivais independentes se consolidaram”.
Entretanto, mesmo que as coisas tenham melhorado nesse sentido, ainda há muitos locais com estrutura precária. “Somos do terceiro mundo, né?! Onde pagamos impostos enormes em cima de tudo. Difícil exigir que todas as casas de shows tenham uma estrutura de primeira,” declara Renan Garcia, baterista do Bullet Bane.
Ele diz ainda que isso afasta o público, que acaba evitando locais com equipamentos e acústicas ruins. “Pra chegar em um nível onde boa parte dos shows tenham uma boa estrutura ainda é um objetivo e não uma realidade,” finaliza.
Piu afirma que realizar eventos independentes é difícil e cansativo, mas possível se bandas, casas e público se esforçarem. Especificamente sobre o Oxigênio Fest, ele conta que entre os principais desafios estão conseguir juntar todas as bandas em uma única data e bancar os altos custos. “Precisamos vender muitos ingressos para não ficar no vermelho. Dessa vez, a VANS e outros apoios que conseguimos têm ajudado nisso.”
Ricardo Galano, guitarrista do Não Há Mais Volta, também fala sobre a importância dos patrocínios. “Se grandes marcas de skate e surf, por exemplo, olharem pro underground, há um leque de possibilidades,” afirma ao mencionar que são esportes que andam ao lado do punk rock e do hardcore.
Ao falar sobre o fato de existir muitas pessoas competentes, mas que não possuem apoio e visibilidade, Galano completa: “se todos souberem trabalhar bem – isso inclui bandas, produtores, patrocinadores e casas de shows – já será um grande passo para a realização de mais eventos assim.”
A respeito da frequência de festivais independentes maiores, André acredita que por não ser algo recorrente é mais interessante. “O que faz a diferença no dia a dia das bandas são os eventos menores, em casas menores. O grande lance é o público também apoiar os eventos pequenos, que às vezes acontecem no seu bairro. É lá que as bandas novas surgem e começam a construir algo que pode ser duradouro e forte.”
Da mesma forma, Rodrigo fala sobre a importância do público e eventos de menor porte: “falta público, falta matinê a R$10, falta tirar a bunda da frente do Facebook. Durante cinco anos se existência do Dead Fish nós organizávamos nossos próprios shows, fazíamos a divulgação sem internet e tocávamos pros nossos 100 amigos”.
Somada à falta de comparecimento do público, que já foi abordada anteriormente, incluindo comodismo e falta de interesse pelo novo, há ainda uma certa falta de atratividade por parte de quem produz os eventos.
Deise aponta que às vezes falta pensar no público quanto a horários e opções de alimentação, além de uma falha na própria divulgação dos shows. “Não basta criar um evento no Facebook e compartilhar no Instagram se não há uma manutenção, lembrando e incentivando as pessoas a irem ao show,” declara ao frisar que flyer de papel ainda é importante. “Se produtores e bandas têm preguiça de ir às ruas divulgar, por que o público teria comprometimento em deixar suas casas para ir a um evento desses?”
O machismo na cena
Apesar da desigualdade de gênero e do machismo estarem presentes em todas as esferas da nossa sociedade, a luta das mulheres por espaço não deveria, teoricamente, ser tão difícil num meio que prega a igualdade e o não preconceito como é o punk e o hardcore.
“Como esse universo é bem masculino, infelizmente o acesso às bandas com meninas ainda é fraco e a vontade de escutá-las também,” diz Deborah. Ela conta que durante os shows acontece do público gritar coisas como “tira a roupa” e “gostosa”, mas não se intimida: “quando eu escuto, eu vou lá e encaro.”
Assim como em outras áreas, na música o machismo nem sempre é escancarado e muitas vezes parte das próprias mulheres. Pequenas atitudes e comentários que parecem inofensivos acabam contribuindo muito para que o preconceito se consolide. Deborah lembra que quando começou a cantar, distribuía CDs com bandas integradas por mulheres para as pessoas conhecerem. “Sei que alguns amigos meus ficavam com preguiça quando escutavam a voz de uma mulher, cheguei a ouvir de várias amigas ‘não gosto de bandas com menina’.”
Deborah explica que nossa educação é machista e a desconstrução precisa ser feita por todos. “Temos que dialogar muito, mostrarmos o que passamos, compartilharmos a dor, o preconceito e evitarmos discurso de ódio,” conclui.
O machismo é tão enraizado na nossa cultura, que a falta da presença de mulheres em posição de destaque acaba soando como algo natural para a maioria das pessoas. O próprio Oxigênio Fest 2017, a princípio, anunciou suas atrações sem incluir nenhuma representante feminina em seu line-up.
Após discussões na página oficial do evento, a organização acabou escalando as bandas Gritando HC, Deb And The Mentals e Toyshop, todas com mulheres no vocal. A respeito disso, Piu diz que assim que surgiram os questionamentos sobre a falta de espaço para as mulheres, a produção correu atrás de falar com as bandas.
“É importante dizer que nunca escolhemos bandas por elas serem de negros, de brancos, de mulheres, de homens. As bandas são escolhidas por diversos fatores, como relevância, público, agenda, cachê, relacionamento, etc. Fiquei feliz por poder ter inserido algumas bandas com mulheres,” afirma, e garante que levará isso em consideração para os próximos eventos.
Mesmo sendo um processo lento, aos poucos é possível mudar esse cenário de desigualdade. “Sinto um crescimento constante, pois hoje em dia acabo vendo mais shows com mulheres no palco do que em anos atrás. Mas obviamente é pouco perto do que deveria ter,” diz Renan.
André fala sobre o desequilíbrio e de como as gerações mais novas estão mais conscientes, mas pondera: “ainda estamos muito longe do ideal, que é a igualdade, pura e simples. Isso acontece aos poucos, mas é preciso que seja incentivado.”
Uma boa forma de incentivo, de acordo com Piu, é as bandas maiores, com bastante público, inserirem atrações de abertura. “Vejo muita cobrança em cima de quem faz os shows, mas as bandas às vezes tem mais força na divulgação, na atitude.”
Se o apoio do público, das bandas e dos produtores ainda não é satisfatório, as mulheres acabam precisando de caminhos alternativos para expandir seus trabalhos. Segundo Deise, falta diálogo: “se não são convidadas a tocar, que convidem e apresentem suas propostas para bandas com homens, que têm um público masculino e que vão acabar entrando no universo, no ambiente das mulheres.”
Para Deborah, falta curiosidade e pesquisa, pois as pessoas acabam se prendendo sempre aos mesmos grupos e isso dificulta. ”Existem muitas bandas com meninas e bandas boas! Estou bem positiva quanto a isso, toda semana descubro uma banda nova,” finaliza.
As novas perspectivas
Com todas essas questões levantadas e muito a melhorar, como manter o otimismo em relação ao rumo do underground?
“Hoje os tempos são outros, as pequenas casas de shows se espalharam, as pessoas estão se fechando em seus mundos, não dando chance para bandas novas. Porém, sempre que tiver alguém com vontade, pode ter certeza que vai acontecer. Não é o fim.” defende Edson.
Despertar o interesse pelo novo não é uma tarefa fácil. Incluir bandas que estão começando ou bandas com figuras femininas só terá resultados se houver apoio e comparecimento do público. É a união entre todos os envolvidos que faz a diferença.
Da parte dos produtores, Deise aponta que é preciso não priorizar tanto os headliners e dar espaço para as bandas de abertura, “com releases mais expansivos, que fale de todas as bandas envolvidas no evento, assim como links nas páginas do evento e demais formas de divulgação, que incitem a curiosidade do público”. Ela completa ainda que confirmar as atrações de abertura com mais antecedência também gera mais interesse do público.
Já em relação ao público, Edson fala da importância de prestar mais atenção no que está sendo produzindo e não se preocupar em assistir apenas as bandas principais. “Apoiem, seja assistindo a um show, comprando um disco ou produto do merch”.
Se as bandas veteranas ajudam dando espaço e oportunidade para bandas novatas, as que estão começando tem um longo caminho pela frente. Os desafios existem e sempre haverá questionamentos sobre um possível declínio da cena, mas tem muita gente produzindo coisas boas e isso é o essencial.
“Talvez se a gente tivesse se importado com esse ‘declínio’ não estaríamos aqui hoje. Nunca acreditei tanto nisso. Você é do tamanho das coisas que você constrói. Fazemos isso porque amamos e pela enorme ligação que temos entre nós cinco. Isso que importa, isso que nos move, o resto é conseqüência”, define Renan.
Galano fala que uma das dificuldades das novas bandas é reverter os seguidores digitais em fãs cativos nos shows, mas mantém o otimismo: “se a sua música for de qualidade e seu trabalho honesto, em algum momento as portas se abrirão”.
Por fim, Rodrigo expõe seu desejo de ver mais festivais que tenham mais bandas e mais poder logístico para que exista uma rede de festivais pelo país. “Imagina um festival independente consolidado em todas as capitais do Brasil? Tipo um Dosol, mais uns 200 por cidades do interior e uma rede de transporte, divulgação, informação dialogando com metade do poder de mobilização popular desse lixo sertanejo de hoje? Imagina um festival independente enorme por ano mandando a Rede Globo enfiar o Rock in Rio no cu Impossível? Tá tudo ai, é só fazer. Se vai ser fácil é outro papo”.