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Faixa Título: Mount Eerie, a morte, e a intimidade perfurante do luto

A experiência ao vivo do luto de Phil Elverum (Mount Eerie) em A Crow Looked at Me, um dos discos mais aclamados do ano, é ainda mais intensa e angustiante.

Mount Eerie

Em pé, no limiar de um pequeno altar adaptado como palco, Phil Elverum diz não acreditar em fantasmas ou coisa do tipo. No centro da Christ Church Cathedral, localizada no centro de Vancouver, no Canadá, o cantor e compositor conhecido pelo pseudônimo Mount Eerie canta com pouca expressão sobre um dedilhado mântrico, diante de 400 ou 500 pessoas em absoluto silêncio.

Nos 10 minutos seguintes, Elverum discorreu sobre as impressões que tem da morte desde a infância, quando passou a acreditar no nada após a morte, até hoje, viúvo recente e desde então pai único de uma filha que ainda não tem dois anos de idade.

Presenciei a cena há pouco mais de dez dias, durante uma passagem breve por Vancouver. Um pouco antes, descobri que Elverum tocaria na tal igreja durante minha estadia, e comprei um ingresso mais por curiosidade do que por qualquer outra coisa, confesso. E mesmo tendo uma noção do que esperar, nada poderia me preparar para o que aconteceu.

Em fevereiro, Phil lançou A Crow Looked at Me, seu oitavo álbum como Mount Eerie, alardeado como um dos grandes lançamentos de 2017 pela mídia norte-americana. Sobre instrumental minimalista, às vezes reduzido apenas a acordes lânguidos no violão, Phil discorre em melodias quase faladas sobre a morte precoce da esposa dele, a artista plástica e também musicista Geneviève Castrée, em julho de 2016, vítima de um violento câncer no pâncreas.

A Crow Looked at Me é tocante pela honestidade brutal. Como o próprio autor descreve no encarte do disco, a proposta era simplesmente relatar os acontecimentos “sem tentar parecer sábio ou chegar a grandes conclusões”, inspirado em obras semelhantes como Benji (2014), clássico recente do Sun Kil Moon, e a série literária Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård.

O resultado é um disco cortante de tão cru, praticamente sem eufemismos ou metáforas sobre a morte. Um disco que chega, sem hesitar, onde a maioria de nós sequer tem coragem de ir.

A primeira música do álbum, “Real Death”, dá o tom da obra com o verso inicial “a morte é real / alguém está lá e aí não está mais”. Ao longo das faixas seguintes, Elverum narra a ausência da parceira em versos tão diretos quanto esse, indo de descrições simples e dolorosas sobre a rotina no luto (“When I Take Out the Garbage at Night”) a elocubrações profundas sobre o futuro da filha do casal (“Crow”).

Por treze anos, Phil e Geneviève dividiram uma relação, uma vida, e por parte desse tempo, uma casa. E foi nessa casa, no quarto onde Geneviève morreu, que Phil gravou A Crow Looked at Me em 3 meses e alguns dias. Também no encarte, Phil conta que A Crow Looked at Me foi composto e gravado com “quase somente os instrumentos dela, a guitarra dela, o baixo dela, a palheta dela, o amplificador dela, o acordeão da família dela, escrevendo os versos nos papeis dela, olhando para a mesma janela [que ela olhava quando morreu]”.

Ouvi o disco quando ele saiu, atraído pelas elogiosas resenhas. Mas não consegui mergulhar com a atenção que ele exige, sempre afastado pela melancolia magnética do disco, uma das obras mais tristes que já experimentei. Uma audição difícil demais.

Com a chance de ver o show, decidi finalmente experimentar o disco ao vivo, diante do artista, no encontro transparente entre criador, obra e audiência.

Depois de um simpático show de abertura de Nicholas Krgovich, também dedicado a Geneviève, Phil entrou sozinho no palco com um violão, e só. Lentamente, enquanto o público percebia a presença dele, as vozes se calaram e as últimas tosses reverberaram no salão alto. No lugar de “Real Death”, ele abriu o show com “Distortion”, a música citada nos primeiros parágrafos, e que não está em A Crow Looked at Me.

“Distortion” (acima, em gravação de um outro show) é uma porrada na consciência. Foi de cara a música mais longa da apresentação, e começa com a afirmação sobre a descrença em fantasmas citada no primeiro parágrafo, seguida por um longo monólogo sobre o vazio, a paternidade e a relação com Geneviève. Na última estrofe, Elverum vislumbra o próprio legado após a morte, antes de descrever algo que parece uma antítese ao big bang, com o fim de tudo, e encerrar a música diante de uma plateia em choque, com algumas lágrimas discretas escorrendo por rostos inchados.

E aí veio “Real Death”, seguida de quase todo o restante do disco.

Em “Ravens”, Elverum compara a angústia de aguardar a morte iminente da esposa com a sensação de tê-la, hoje, presa a fotografias sem vida. As fotos retornam em “Toothbrush/Trash”, onde ele se mostra agoniado ao perceber que as imagens estão lentamente substituindo a lembrança que ele tinha de Geneviève, a sensação de saber que ela estava no quarto ao lado. E em “My Chasm”, ele questiona as razões de estar ali, fazendo aquilo, e se as pessoas ainda querem ouvi-lo falar (e cantar) sobre a esposa morta.

Há algo de hipnotizante em ouvir uma pessoa se abrir da forma como Elverum faz nas canções de A Crow Looked at Me. Dói. É uma experiência transcendental – um clichê tratando-se de um show em uma igreja, sim – em um nível que eu nunca imaginei ser possível em um show de voz e violão. Quando me dei conta, havia sido transportado para o núcleo de um vazio, de um luto que não era meu, mas parecia ser.

Era como revisitar uma sensação que todos nós, em algum momento, conhecemos ou conheceremos. Era como entrar em contato direto com a crueza da morte, da não-existência, de sabe lá o que há, se há algo, antes ou depois disso aqui.

Elverum fechou a primeira parte do show com “Crow”, música que também encerra o álbum. Após uma pergunta retórica sobre tocar ou não algumas músicas inéditas, ele abriu uma nova sequência de reflexões sobre a morte da esposa, como se guiasse a plateia através dos estágios do luto.

As músicas novas, que ainda não se sabe se vão virar um novo disco, são feridas menos expostas, mas mais complexas e tão difíceis quanto as de A Crow Looked at Me. É como se tivessem mais camadas de elaboração. É o que o próprio Phil Elverum chama, em um dos versos novos, de “calcificação do luto”.

Os relatos secos, mesmo presentes, são menos frequentes. No lugar deles, reflexões mais frias sobre “o péssimo 9 de Julho”  – em canção sem nome sobre o aniversário da morte de Genevieve – ou divagações sobre o que restou das cinzas da esposa, espalhadas em parte sobre uma cadeira instalada no topo de uma colina, virada para o pôr-do-sol.

Uma prova de que a nova leva de músicas é mais sóbria é que, mesmo sem alterar a ambiência ou o tema, uma delas fez a plateia gargalhar. A faixa, repleta de sarcasmo, narra a impressão de Elverum ao ser convidado para tocar em um festival em Phoenix (provavelmente o FORM Arcosanti, realizado em maio), onde ele cantou sobre a morte para “centenas de adolescentes drogados”, e ficou conversando sobre composição com Father John Misty e Weyes Blood após ser colocado em uma van com Skrillex e outros “white dudes”.

O lapso de alegria, claro, não durou muito. Em alguns minutos, Elverum encerraria o show com “Tintin in Tibet”, outra inédita, onde ele fala diretamente com Geneviève:

I sing to you
I sing to you, Geneviève
I sing to you
You don’t exist
I sing to you though

Ao fim do show, fui à banca de merch comprar um LP de A Crow Looked at Me. Enquanto aguardava o troco, fui surpreendido pela presença inesperada do próprio Phil Elverum, que me entregou o dinheiro faltante e uma cópia do disco em mãos.

Pensei em puxar um papo, em fazer qualquer pergunta, em sei lá, tentar uma entrevista.

Só consegui balbuciar um “thank you” mal pronunciado, respondido com um aceno de cabeça e um olhar distante.

Ao sair da igreja, confuso por estar em um lugar estranho, e com a cabeça cheia demais pra dar sentido a qualquer coisa, tentei responder a uma mensagem de áudio no meu telefone. A voz não saía. A sensação era a de ter um pedaço de espuma enfiado na garganta.

Instantes depois, chorei um choro rápido e velho, uma pequena explosão emocional que parecia estar guardada há muito, muito tempo. Sentei no metrô para ir embora e tentei entender o que havia acontecido. Ainda não consegui.