Jorge Drexler: "Não queria ser um surfista e sim um escafandrista", revela cantor sobre novo álbum

Multi-premiado cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler conversa com a gente sobre o processo de criação de seu novo álbum, Salvavidas de Hielo.

Jorge Drexler: "Não queria ser um surfista e sim um escafandrista", revela cantor sobre novo álbum

Entrevista e texto por Nathália Pandeló Corrêa

Quando conversamos com Jorge Drexler pela última vez, o cantor uruguaio lançava o álbum Bailar en la cueva.

O disco estampava suas cores da capa aos arranjos, culminando num clipe dançante como o da faixa-título. Até mesmo “Bolivia”, canção baseada na história real da imigração da família Drexler que fugia da Alemanha nazista, explorava sonoridades como a da cumbia, em uma integração perfeita entre as cordas e o ritmo percussivo (pra completar, ainda tinha um convidado de luxo: Caetano Veloso).

Jorge Drexler parece ter essa facilidade – de abordar temas pesados ao criar músicas cheias de cor e nuances. Uma carreira já sólida foi alçada à fama internacional com a ajuda do Oscar que ganhou por “Al otro lado del río”, música-tema do filme Diários de Motocicleta – portanto, o cantor não é estranho às mudanças repentinas. Uma delas veio ao ouvir Roberto Carlos, como contou na nossa última entrevista; depois, ao conhecer “Chega de Saudade”, de João Gilberto. Outra virada veio ao abandonar a medicina para se dedicar à música. E outro momento marcante foi conhecer o músico espanhol Joaquín Sabina, em uma noite que passaram indo de bar a bar em Montevidéu. Sabina aconselhou: “vá para Madri”, e foi lá onde Jorge Drexler construiu uma carreira que já soma 13 discos.

Foi também de lá que Drexler conversou com o Tenho Mais Discos Que Amigos sobre seu novo álbum, Salvavidas de Hielo, ao qual tivemos a oportunidade de ouvir com antecedência. Além dos singles já divulgados – “Telefonia”, “Silencio” e “Pongamos que hablo de Martínez” (este último, uma homenagem a Joaquín Sabina, de quem segue amigo) -, o álbum gravado entre México e Espanha traz ainda duetos com Julieta Venegas, Mon Laferte e Natalia Lafourcade.

Mas o mais impressionante deste novo trabalho é que não apenas traz um Drexler mais minimalista, como explora especificamente a capacidade percussiva do violão, que dá o tom das canções. Saem os metais que preenchiam os arranjos, as experimentações eletrônicas que vez ou outra apareciam, e entra em cena o protagonismo definitivo do Drexler letrista e em controle total das harmonias do álbum, mais do que nunca. O desafio, que poderia ser limitador, se mostra uma oportunidade de expandir para novos sons.

Conversamos com Drexler por telefone sobre este novo momento e sua antiga relação com a música brasileira. Confira abaixo:

​TMDQA!: ​Tive a oportunidade de ouvir o Salvavidas de Hielo, e devo dizer que em muitos momentos ele me lembrou músicas do ​Sea​​ ou do ​Eco​, porém com um gingado diferente. Especialmente após o ​Bailar en la cueva​​, que tem uma alma mais dançante, a sua visão rítmica mudou?

Jorge Drexler: Acho que sim. Essa é uma boa pergunta… Depois de “Bailar en la cueva”, eu perdi o medo do ritmo. Me senti​​ com direito de entrar no ritmo das canções e também acontece que “Bailar en la cueva” é um disco de procura exterior, de muitas cores e instrumentos diferentes. Acaba que a cada trabalho, eu mudo para opostos. E neste eu faço uma procura interior, que foi muito diferente, com a percussão feita ao violão… Como dizer…? É uma procura para dentro, ao oposto de uma busca exterior.

​TMDQA!: Exato, nesse disco você fez as percussões apenas com o violão. O que inspirou essa vontade de embasar as musicas apenas nas cordas? Isso significa que você só precisa de sua guitarra y vos?​ (Risos) Desculpe, não podia perder essa oportunidade!

Drexler: (Risos) A ideia é… Bem, a gente vive num mundo em que temos acesso a tudo. Está a um clique de distância, na palma da sua mão, em uma máquina que consegue acesso a uma biblioteca universal. Temos mais filmes que podemos ver, mais livros que jamais leremos, mais música que a gente não alcança ouvir mesmo em mil vidas. Então acaba que… A limitação e restrição de meios é um exercício necessário nesse tempo em que vivemos. Eu queria ter a sensação de que estava escolhendo um instrumento e o utilizando a fundo. Porque toda mensagem que a sociedade manda é: você não precisa escolher, você pode tudo. Não ouça um disco só, ouça todos ao mesmo tempo! (Risos) O limite para mim virou uma necessidade criativa, pois eu precisava sentir que me aprofundava em algo. Não queria ser um surfista e sim um escafandrista, mergulhando fundo. E foi isso que fiz com o violão, que é um instrumento que eu achava que conhecia, mas depois concluí que não conhecia tanto assim. Depois desse álbum, eu posso dizer que explorei muito mais possibilidades com o violão do que sabia que existiam quando comecei esse processo.

​TMDQA!: Fico me perguntando como isso vai funcionar ao vivo, pois você faz shows em vários formatos diferentes. Eu mesma tive a oportunidade de estar em dois shows seus completamente distintos, com menos de 1 ano de diferença. A leitura inicial desse álbum ao vivo seria um formato acústico, talvez, mas você acha que em algum momento essas m​ú​sicas podem ganhar uma banda mais completa ou serem reimaginadas de outras formas?

​Drexler: ​Você tem razão. Na verdade o disco é uma experiência de laboratório. Os discos, em geral, são. Do mesmo jeito que você trabalha no laboratório, quando você traduz isso fora dele, as coisas mudam. Acabo de finalizar 8 dias de ensaios com a banda, muito intensos. Isso que você fala foi a principal encruzilhada que tivemos. Porque o disco, feliz ou infelizmente, é irreproduzível (risos)! A gravação foi uma experiência de alteração das dinâmicas acústicas que não é possível reproduzir ao vivo porque foram muito únicas, cada batida foi feita individualmente. Ao vivo isso se torna artificial. Então o que buscamos foi um equilíbrio, usando o violão como instrumento de percussão em algumas músicas, mas a gente também botou bateria e baixo de verdade. Acho que dessa forma, as músicas perdem em originalidade sonora, que foi o objetivo da gravação, mas ganham em força e impacto ao vivo. Vai ser um​ show​ íntimo…

TMDQA: Imagino que sim…

Drexler: Espere. Não, não será um show íntimo (risos). Teremos as músicas baseadas no violão e na guitarra, no início e no fim, mas teremos momentos de muita expansão também. Não teremos os sopros, mas haverá uma banda completa.

TMDQA: Olha, imagino que seu baterista tenha ficado aliviado em saber que teria um emprego!

Drexler: ​Foi exatamente isso que aconteceu (risos)! Meu baterista me ligou há uma semana. Disse, “Jorge, não sei se posso fazer isso”. Ele é um poeta da música, não é um percussionista mecânico, mas sabe, a mão do baterista é feita pra tocar de um jeito, a mão do violonista também… Se não houver uma integração real, nem o violão e nem a percussão resistem o show inteiro, não funcionam. Mas ele me disse “Jorge, estou tentando, mas não sei como vamos fazer isso” (risos). Tem uma frase do Igor Stravinsky que eu gosto muito, que fala algo como “quanto mais me limito, mas me liberto”. Eu gosto do limite como gerador de mudança e de procura, de novas visões. Nosso processo começava do zero a cada vez que um dos cinco percussionistas com quem trabalho no álbum pensava no ritmo das músicas. Eles ficam desconcertados, e eu dizia sempre, “vamos tentar mais um pouco, vamos fazer de outra forma”. E ficávamos surpresos com como a música é holográfica em conceito.

TMDQA​!​: Em que sentido?

Drexler: Bem, o conceito de uma fotografia holográfica… Imagine que você pega uma paisagem, que tem um gramado e uma casa. Se você corta o pezinho inferior da grama, do lado direito e você olha perto dele, esse pedaço separado​ pode te mostrar a imagem inteira. Ou seja, a parte contém o todo. E no som isso também pode acontecer. Em uma só parte do som, em um só instrumento, você consegue ​ouvir muitos outros, basta ouvir com cuidado. É como se eu pegasse uma lupa. Esse álbum foi todo construído com um ampliador sobre o violão.

​TMDQA!: Bem, agora falando mais sobre as letras… ​Suas músicas muitas vezes abordam momentos sombrios do mundo – “El Pianista del gueto de Varsóvia”, “Milonga del moro judio”, “Bolivia”… São memórias, de certa forma, pois sei que você se inspira em histórias de sua família. Mas esse novo álbum tem muitos momentos solares. Seria uma forma de contrapor a essa sensação de caos que vivemos hoje?

​Drexler: Sabe… Eu não conheço o disco, também estou conhecendo agora. Se você faz uma escuta superficial do disco, talvez pareça que as músicas são tristes. As pessoas veem a palavra “gelo” e logo pensam em algo mais solitário, não sei. Alguns jornalistas falam comigo e dizem, “A melancolia percorre o disco inteiro”, mas eu tenho uma visão contrária. Não acho que seja alegre, muito festivo, mas se eu tivesse de definir, há sempre uma melancolia luminosa. Tem momentos em que até o que é triste é visto por outro prisma. Você ouviu “Despedir a los glaciares”?

TMDQA: Ouvi sim.

Drexler: Então, eu diria que essa é uma das canções mais duras que já escrevi. Porque ela fala sobre uma coisa que já não tem uma solução, sobre o que vai embora e o que vai se derreter. Quando você perde algo ou uma pessoa, é preciso dizer adeus, e não deixar que o medo e a dor façam você esquecer de que também é importante se despedir. Mas há muitos sentimentos ali. “Pongamos que hablo de Martínez” já é mais sobre gratidão. E “Movimiento” se aproxima do caos que você comentou, porque aborda essa questão da imigração, que é tão complexa… Mas até ela ​é feita com uma espécie de empatia antropológica, olha para o ser humano sem dramatismo, sem amargura. Há uma visão de fazer entrar luz dentro das situações difíceis. Tem uma frase do Leonard Cohen que eu gosto muito. Em inglês é “There’s a crack in everything, that’s how the light gets in” [verso da música “Anthem”]. Ou seja, tudo tem uma falha em algum ponto, mas é por aí que a luz entra. Uma ideia negativa, como uma ruptura na continuidade de uma parede, pode ser por onde a luz vai entrar. Adorei esse conceito e tentei trazer isso para as músicas.

​TMDQA!: ​É conhecida a sua relação com a música brasileira. Você colaborou com muitos dos nossos artistas e teve Caetano em seu último álbum. Agora, você gravou o novo disco entre México e Madri e teve nomes da música mexicana nestas novas canções. De que forma o México lhe inspirou para este trabalho? Existe um motivo especial por estar colaborando com mulheres em suas últimas parcerias?

Drexler: É curioso… Eu tenho uma relação muito mais natural com o Brasil, sinceramente. Não é demérito dos outros países onde vou, é que minha relação com a música brasileira é muito longa. Acredito que quando historiadores no futuro forem olhar para a produção musical do século XX, vão ver grandes movimentos culturais como a música americana, ouvirão Cole Porter, George Gershwin e verão que o Brasil tinha algo no mesmo nível de compositores. Quando o tempo passar e a gente olhar para trás, diremos “olha, na mesma década estavam trabalhando ​Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, João Bosco… Muitas vezes, na mesma cidade (risos)! E isso não é algo frequente. Enfim, minha relação com a música brasileira é muito mais natural do que com a mexicana. Teria sido muito mais fácil pra mim ir ao Brasil fazer esse disco, eu já tenho as conexões naturais. Mas já faz muito tempo que tenho esse compromisso com o México, sabe? É um lugar que eu quero compreender melhor e é onde quero ser compreendido. O México é um mistério para mim. É um lugar que tem uma cultura pré-hispânica, e que está presente em todos os âmbitos da vida moderna, o que o torna um país único. Em muitos aspectos, podemos dizer que Brasil e Uruguai são muito parecidos, por exemplo. Se você olhar a comida de alguns lugares dos dois países, há muito em comum. No sul, então, é praticamente idêntica (risos). Mas a comida mexicana é outro mundo, não tem nenhuma relação com a nossa. E a música, então… Fui ao México mesmo com vontade de conhecer melhor. Falei com alguns amigos de lá e aconteceu de serem amigas, com a casualidade de estarem lá e aceitarem participar. Eu liguei para essas três mulheres porque queria ter força no disco. Pra mim, elas fazem parte do sexo forte (risos). Elas trouxeram mais que isso, pois têm força interpretativa e musical, mas também midiática, pois são muito populares. Não chegam a ser popstars, porém são artistas pop de muito sucesso. Gosto muito da combinação do quanto elas são conhecidas e muito competentes. Há ainda uma quarta participação no álbum de um músico mexicano, o David Aguilar, que é menos conhecido e não tão reconhecível nas músicas, mas o convidei para participar em “Abracadabras” e ele se faz presente em quase todas as músicas, foi muito importante pra esse disco. É um grande músico e eu diria que vocês podem gostar muito do estilo dele, tem muito a ver com a música brasileira e acredito que ainda vão ouvir falar dele.

​TMDQA!: Infelizmente nosso tempo está chegando ao fim! Só quero saber mais uma coisa. ​Nosso site se chama Tenho Mais Discos Que Amigos, e tem muito a ver com a relação que temos com os discos que mais importam para nós. Gostaria de saber se você tem um disco que carrega para a vida, aquele amigo que você pode trazer para perto, nas horas boas e ruins.

Drexler: Como estou falando com o Brasil, vamos com um disco brasileiro: “Chega de Saudade”. Ouvi pela primeira vez nos anos 80, eu já era um adolescente adulto… Tinha 19 anos no início dos anos 80 e recebi uma fita que tinha o disco inteiro. Antes disso eu estudava violão, mas era um mundo mais perto do Villa-Lobos do que do Caetano Veloso. E aí eu percebi, ao ouvir, que a canção e o violão têm uma potencialidade muito maior do que eu acreditava. Era possível fazer coisas mais sofisticadas do que eu conhecia, algo completamente novo pra mim. João Gilberto expandiu o mundo da música popular e do violão, produzindo com grande sofisticação e isso literalmente me arrastrou pra dentro da canção. Comecei a fazer canções por causa desse disco e ouço com reverência total. Esse é álbum que coloco para tocar para os meus filhos, desde que eles nasceram. Quero que eles conheçam essas canções.

TMDQA!: É sempre bom ver a sua relação com a nossa música. E com isso, esperamos que você retorne ao país com este novo show.

Drexler: Estaremos aí em abril!

TMDQA!: Em quais cidades?

Drexler: Acredito que em todas as que já toquei e alguma novas.

TMDQA!: Ótima notícia, vamos acompanhar aqui no site. Desde já, seja bem vindo de volta.

Drexler: Obrigado!

https://www.youtube.com/watch?v=8wSPUDBzZFc