Na semana passada se deu o início da sétima edição do maior festival que este país já viu, o Rock in Rio.
Entretanto, nomes como Lady Gaga, 5 Seconds to Summer, Pet Shop Boys e Ivete Sangalo não soam tão rock n’ roll assim. A primeira inclusive cancelou sua participação às vésperas — fibromialgia seria o motivo. Mas não estamos aqui para discutir as implicações de quem se enquadra ou não neste evento — o assunto já foi amplamente debatido em edições anteriores e um consenso está longe de ser alcançado. O que precisa ser dito é que, nesta quinta-feira (21), a verdadeira onda de rock invadirá os palcos cariocas — e nem mesmo o mérito desta afirmação está isento de novas discussões.
A Cidade do Rock receberá atrações renomadas, como Aerosmith, Def Leppard, Alice Cooper e Arthur Brown. Também não podemos deixar de lado nossos representantes nacionais, como o Scalene e Ana Cañas, que têm feito um belo trabalho por aqui. No entanto, dentre tantos artistas de peso, um deles se espreme timidamente como talvez o mais despercebido do dia, o The Kills. Mas a banda não é nenhuma novata. “The Kills? Só conheço The Killers,” é um insulto corriqueiro e grotesco que perturba os fãs de uma das duplas que talvez seja a mais sexy que a música já viu.
Para quem ainda não os conhece, eles têm mais de 16 anos de estrada e cinco álbuns lançados. É formado pela americana Alison Mosshart, que contribui com seus estonteantes e nervosos vocais, e pelo londrino Jamie Hince, responsável pelas guitarras nada convencionais do grupo e pela programação de uma bateria eletrônica que forneceu à banda sua estética minimalista lo-fi durante mais de dez anos. Hoje contam com músicos de apoio em seus shows, mas pode-se dizer que é praticamente impossível desviar o olhar da dupla de protagonistas. É como assistir a uma explosão prestes a acontecer.
Mesmo com toda essa inegável intimidade, os músicos não cresceram juntos e nem se quer eram vizinhos ou conhecidos. Na verdade eram completos estranhos, separados pelo oceano Atlântico. Seu primeiro encontro veio de uma forma inusitada, em 1999, quando Alison foi da Flórida para Londres com sua banda de punk rock Discount. Durante essa turnê, ficou num quarto onde conseguia ouvir sons distorcidos vindos do quarto acima, onde vivia Jamie. “Era a minha guitarra dos sonhos, com um som bem bizarro, quebrado e estranho.” Quando se encontraram, descobriram que estavam lendo o mesmo livro (uma biografia de Edie Sedgwick, uma das musas de Andy Warhol) e que compartilhavam um estranho amor por tecnologia ultrapassada. “Nós sentávamos por horas, conversando e consertando uns gravadores antigos,” lembra Jamie. Foi então que a acanhada Alison insistiu para que formassem uma banda juntos:
Quando eu o conheci, eu lhe disse ‘Eu quero estar numa banda com você,’ e ele achou que eu estava louca, mas eu persisti bastante e eventualmente nós começamos a compor e ele me encorajou. Ele me emprestou um gravador de quatro canais e me disse ‘Você deveria compor suas próprias músicas, não só letras, você deveria fazer uns barulhos.’ Eu levei o gravador comigo quando estava em turnê pela Europa e eu me sentava em closets no meio da noite, enquanto o resto da minha banda já estava dormindo, para entender como gravar e criar toda essa música insana. Depois eu corri de volta para Londres com as fitas e foi assim que o The Kills começou.
A Discount logo chegou ao fim e Mosshart se deparou com um dilema: ficar nos Estados Unidos ou dar um salto no escuro em direção a Londres e um mundo de “rock, arte, máquinas de escrever, poemas beat, skinny jeans e estilo.” A cantora evidentemente escolheu a última opção e logo se viu junta de Jamie, compondo músicas minimalistas com o auxílio de uma bateria eletrônica inspiradas em Velvet Underground, PJ Harvey, Patti Smith, Suicide e outros. Nascia então o The Kills, uma entidade em que as composições, imagem e atitude são tão fundamentais quanto a própria música. Sobre o nome, Hince garante que “soa como uma banda que poderia existir em qualquer década. Poderia ser um grupo de rockabilly dos anos 50 ou uma banda psicodélica dos anos 60”.
Ambos somos bem introvertidos – Alison, particularmente, é extremamente tímida. Mas nós descobrimos que podíamos nos comunicar pela música. Ela já estava em uma banda e eu estava impressionado com toda a transformação de alguém que se sentava num canto com seu caderninho de anotações e ficava toda vermelha se você falasse com ela, para essa artista incrível quando subia ao palco. Nós então formamos um grupo social de duas pessoas que envolvia de tudo.
A seguir separamos 10 músicas essenciais que melhor representam a trajetória da banda desde o álbum de estreia, Keep On Your Mean Side (2003), ao atual Ash & Ice (2016). Depois é só esperar para encontrá-los às 18h no palco Sunset, na próxima quinta-feira (21) no Rock in Rio.
10) “Black Rooster”
Oitava faixa do primeiro disco da banda, Keep On Your Mean Side, “Black Rooster” também é a música que emprestou o nome ao primeiro EP da dupla, lançado poucos meses depois do primeiro show da banda (14 de Fevereiro de 2002) pela Domino Records (selo que mais tarde encontraria seu sucesso financeiro com os então garotos do Arctic Monkeys). Embora intensamente comparados ao The White Stripes pela mídia, o The Kills não cedeu à pressão externa e deixou bem claro desde o início que veio para ficar: “I’m not coming home again.”
9) “Kissy Kissy”
“Nós não sabíamos como iríamos soar. Eu achei que seríamos uma banda acústica (…) porque nós nunca havíamos tocado alto antes,” lembra Jamie. “Tocado amplificado, na verdade. Nunca tivemos onde plugar nossos instrumentos e ser ‘altos’, então não tínhamos ideia,” corrige Alison. Tudo mudou quando um vizinho, David Brenton, morreu e sua esposa jogou todos os seus equipamentos musicais fora. “Foi incrível. Era basicamente como uma loja de música. Ele certamente nos salvou.” Se até então a banda não sabia como soaria, é certo dizer que “Kissy Kissy”, uma das composições mais antigas (e que nem se quer se tornou um single), é também a que melhor representa a centelha do que o The Kills se tornaria. Nas palavras de Mosshart, “Eu não quero fazer um show em que essa música não esteja presente. Ela tem alguma coisa, algum tipo de magia.”
8) “No Wow”
“You’re gonna have to step over my dead body/Before you walk out that door.” É assim que começa “No Wow”, a primeira faixa do segundo disco da banda, No Wow (2005) – e talvez a que melhor o representa. Na época, a dupla tentava fugir do rótulo de garage rock que lhe fora atribuído pela NME. Para isso, optaram por gravar um álbum que não contasse com nenhum reverb, visto que, para Jamie, era este o fator que lhe fizeram cair nessa “terrível categoria”. “Tem muito do cheiro do Hotel Chelsea neste disco. Eu me lembro quando o terminamos e Laurence Bell [fundador da Domino Records] veio para ouvi-lo e nós estávamos todos sentados na minha cama, no quarto 105 do Hotel Chelsea, e o tocamos num pequeno aparelho de som. Ele disse ‘soa como LL Cool J e eu fiquei tipo ‘Isso! Não somos uma banda de garage rock!’ É por isso que assinamos com a Domino,” recorda Hince.
7) “The Good Ones”
De vez em quando é preciso queimar os lábios para se manter vivo – ou algo assim. “The Good Ones” é direta ao ponto, uma súplica a drogas, pílulas e festas. “Did you get the real good ones?/Did you get me the good ones?” Seu videoclipe retrata muito bem essa premissa e vai além. Apresenta aquilo que até então só aqueles que presenciaram uma performance ao vivo poderiam ter: a incrível química entre Jamie e Alison. Os olhares são tão íntimos, os movimentos são hipnotizantes e a proximidade é tanta que parece que ambos irão colidir em algo sexual a qualquer instante. Embora ambos sempre neguem que exista algo entre eles, é impossível negar a intimidade e cumplicidade desta dupla quando estão juntos num palco.
6) “Cheap and Cheerful”
Três anos após No Wow, veio o terceiro disco do The Kills, Midnight Boom (2008) – numa clara referência ao período de meia noite às seis da manhã, em que a banda alcançava seu pico criativo para as composições do álbum. É nítido o afastamento de suas raízes mais minimalistas, com a adição de batidas mais puxadas ao hip hop. Seu segundo single, a provocativa “Cheap and Cheerful”, que convida o ouvinte a deixar de ser são e entediante, é um claro exemplo disto. Com uma batida mais dançante que o normal, já impressiona nos primeiros versos: “I’m bored of cheap and cheerful/I want expensive sadness.” É notório o amadurecimento das composições do grupo, que, com Midnight Boom, chegariam pela primeira vez à parada da Billboard, alcançando a 133ª posição.
5) “Black Balloon”
“I’ve stood in a thousand street scenes/Just around the corner from you/On the edge of a dream that you have/Has anybody ever told you it’s not coming true.” Midnight Boom mostrou que trocar a noite pelo dia fez muito bem à banda. Músicas como “Tape Song”, “U.RA. Fever”, “Last Day Of Magic”, “Goodnight Bad Morning” e “Sour Cherry” revelam toda a exuberância e graciosidade deste álbum. Contudo, é na sinistra “Black Balloon” que está um dos melhores momentos da banda. A música foi o quinto single do disco e ganhou até mesmo seu próprio EP. Em toda a sua tenebrosa doçura, a despedida ao balão negro simboliza a necessidade de seguir em frente perante uma perda. Seu vídeo, dirigido por Kenneth Cappello, exibe uma vampiresca Alison em prantos após tirar a vida de seu parceiro.
4) “Future Starts Slow”
“Esse é um dos meus favoritos. Foi a primeira vez que eu percebi que era possível gravar um disco estando feliz.” Essa é a lembrança que Jamie tem de Blood Pressures (2011), seu quarto e mais bem sucedido álbum. Não poderia ter sido diferente: três meses após seu lançamento, o guitarrista casou-se com a icônica modelo Kate Moss após um noivado em Amsterdam, ainda na cama e com um anel da década de 20 com valor estimado em mais de dez mil libras. O disco também marcou uma espécie de reencontro com Mosshart, que havia gravado dois discos com Jack White como o The Dead Weather – Horehound (2009) e Sea of Cowards (2010) –, curiosamente logo após o relacionamento de Hince e Moss vir à tona em 2008. “Future Starts Slow” é alta, distorcida e incrivelmente sexy. Talvez tenha dado um vislumbre de como estava a dinâmica da dupla frente à adição de uma terceira pessoa numa entidade até então intocada: “I’ll never give you up/If I ever give you up my heart will surely fail.”
3) “The Last Goodbye”
“I can’t survive on a half-hearted love that will never be whole,” é um dos versos mais pungentes da emocionante “The Last Goodbye”, o quarto e último single de Blood Pressures. É uma épica canção sobre ter o coração partido e se despedir de um amor que nunca será concretizado. Cada nota e cada trecho desta música deixam isso bem claro ao ouvinte e não permitem que ninguém fuja de toda a sua maestria. Seu videoclipe, numa abordagem elegantemente simples, exibe toda a intensidade da canção. Se passa numa antiga cabine fotográfica, onde Mosshart transmite, de uma forma intimista, todo um sofrimento acumulado. Marcou o aniversário de dez anos da banda e também o último lançamento do The Kills por alguns anos. “Suas músicas são como uma explosão de como ela se sente num determinado momento. Algumas te fazem querer chorar e outras são descartáveis. Ela não tem medo de mostrar tudo o que vem dela,” afirmou Hince sobre as composições da parceira.
2) “Siberian Nights”
Nos anos que seguiram o lançamento de Blood Pressures, vários eventos ditariam um novo rumo ao The Kills. Jamie sinistramente esmagou seu dedo médio com a porta de um carro (perdendo o movimento neste dedo e, consequentemente, sua habilidade de tocar guitarra como antes), passou por diversas cirurgias, um transplante de tendão, meses de fisioterapia, teve que reaprender a tocar e viu seu casamento com Kate Moss chegar ao fim. Enquanto isso, Alison mudou-se para Nashville, descobriu um novo interesse na pintura, apaixonou-se por carros velozes e lançou um terceiro álbum com o The Dead Weather, Dodge and Burn. Foi quando o guitarrista viu que precisava retomar de onde parou. Num frenesi de inspiração, embarcou num Expresso Transiberiano e cruzou diversos quilômetros e fusos horários. “Eu pensei que seria o ambiente perfeito para ficar sozinho e começar este disco numa página em branco. Trens aparecem bastante na literatura e no rock n’roll e eles podem ser uma louca metáfora para tantas coisas.” Nessa linha surgiu a aterrorizante “Siberian Nights” e o quinto disco da banda, Ash & Ice (2016). “Won’t you help me get through these Siberian nights?/You know it’s hard for me to be alone/Tomorrow we’ll go back to our sides/But tonight I need some warmth.”
1) “Doing It To Death”
Por fim chegamos a “Doing It To Death”, a primeira aposta de Ash & Ice, que também é uma bela e poderosa afirmação sobre a intenção de um grupo que até então deixava dúvidas sobre seu paradeiro e longevidade. A música abre espaço para um revigorante álbum – que mostra uma banda em claro processo de reinvenção, com reflexos do passado (“Impossible Tracks”) e belas nuances criadas pelas novas limitações físicas da banda (“Echo Home”, que ganhou seu próprio EP). Seu clipe mostra a dupla marchando junto de uma multidão de dançarinos num cemitério, porém a banda aparenta estar bem viva e pronta para trilhar o longo caminho que ainda tem pela frente. Fica evidente que Jamie e Alison continuarão tirando a sorte grande, noite após noite, e fazendo isso até a morte.