Ao gritar “São Paulo!”, entre a segunda e a terceira música do show, Pete Townshend pronunciava suas primeiras palavras direcionadas ao público brasileiro. Em seguida, o lendário guitarrista do The Who disse “essa é a nossa primeira vez na América Latina e nós estamos muito felizes”, frase que seria repetida no fim do espetáculo.
E só. Depois disso, ao longo das 20 músicas que viriam na sequência, nem ele nem o vocalista Roger Daltrey fizeram nenhuma referência ao fato de que era um show histórico. Não precisava. A banda inglesa formada em 1964 e considerada uma das maiores de todos os tempos parecia estar focando as energias nas melodias e letras.
Os portões do Allianz Parque, estádio na zona oeste de São Paulo, se abriram às 16h e rapidamente a grade da pista e as arquibancadas laterais foram completamente tomadas. A pista premium, que ocupava um espaço bastante exagerado, ficou vazia por mais algumas horas.
Alter Bridge
Foi por volta das 18h30 que o público concentrou olhares no belo palco montado para a estreia do festival São Paulo Trip, com temática fortemente inspirada no Desert Trip, evento que aconteceu no ano passado, na Califórnia, e contou com alguns dos maiores nomes do rock, inclusive o The Who.
O Alter Bridge, formado pelos ex-integrantes do Creed, Mark Tremonti, Scott Phillips e Brian Marshall, e liderado pelo celebrado vocalista Myles Kennedy, subiu ao palco de forma discreta. Mas logo nas duas primeiras músicas, “Come To Life” e “Addicted to Pain”, os riffs melódicos de Tremonti e o carisma de galã de Kennedy conquistaram o público.
Como o guitarrista é o principal compositor dessa e de sua banda anterior, o metal progressivo do Alter Bridge lembra muito o som feito pelo Creed. Mas a potência vocal de Myles Kennedy, que ficou famoso por cantar na banda solo de Slash, impressiona a cada música. Sem falar nos solos de guitarra que ele protagoniza em alguns momentos.
No show de 11 músicas, “Broken Wings”, uma das mais famosas da banda, ficou de fora. No entanto, a tríade de hits “Open Your Eyes”, “Metalingus” e “Rise Today” encerrou a apresentação deixando felizes as muitas pessoas que estavam vestindo camisetas da banda. Já quem não conhecia o grupo certamente saiu impressionado.
The Cult
O São Paulo Trip organizou o lineup de forma que o intervalo entre os shows não fosse longo, o que foi ótimo. Às 19h45, cerca de 15 minutos após a saída de Myles Kennedy e companhia americana, foi a vez do inglês Ian Astbury, do The Cult, liderar os trabalhos. Embora o talento dos dois ao microfone seja comparável, há um abismo no quesito interação com a plateia.
O vocalista tem uma das vozes mais marcantes do rock, tanto que já substituiu Jim Morrison em uma breve reunião do The Doors. Desde 1983, ele, o guitarrista Billy Duffy e os demais companheiros vêm conquistando fãs no mundo todo com discos excelentes como Love, de 85. A banda esteve afastada por um tempo por causa de uma briga entre os dois, mas retornou no início dos anos 2000. Ano passado saiu o décimo álbum da carreira, o ótimo Hidden City.
O repertório do show passeou por toda a discografia, abrindo logo de cara com “Wild Flower” e “Rain”. Logo em seguida veio “Dark Energy”, a única do disco mais recente. Os três principais sucessos ficaram para o final, na forma de “She Sells Sanctuary”, “Fire Woman” e “Love Removal Machine”, quando a banda aproveitou para homenagear as estrelas da noite e tocou um trecho de “Love, Reign O’er Me”, do The Who.
Os pontos baixos foram quando Ian Astbury tentava inflamar o público de sua maneira torta. Dizia frases em inglês ininteligível, e quando não via reação por parte da plateia, ficava bravo e fazia caretas. Andava cuspindo pelo palco. Os fãs podem até ter gostado da “atitude rockstar”, mas não podem negar que a apresentação do The Cult pesou no clima até então alegre do festival.
The Who
Quem estava sentado foi se levantando. Os espaços que antes eram ocupados por uma pessoa foram sendo tomados por três, quatro. Nas arquibancadas, os celulares foram sacados. Pontualmente às 21h30, Roger Daltrey, 73 anos, e Pete Townshend, 72, pisaram em um palco brasileiro pela primeira vez na história. Depois de um breve aceno, o guitarrista girou com energia o braço direito em seu movimento característico e soaram os acordes da introdução de “I Can’t Explain”.
O clássico do disco My Generation, de 1965, é a música perfeita pra abrir um show. Quem começou a pular nessa hora só foi parar depois de “The Seeker”, a segunda do setlist. Na primeira vinda à América Latina, você acha que eles deixariam os hits de lado? Logo na sequência veio “Who Are You”, primeira oportunidade para Daltrey se aproximar do público, convidando-os a cantar, e para Townshend demonstrar porque é considerado um dos maiores guitarristas de todos os tempos, na parte calma e quase que totalmente improvisada da canção.
O destaque da noite ficou para a performance de “Love, Reign O’er Me”, curiosamente a mesma que o The Cult tinha tocado mais cedo. A música não está entre as mais populares do The Who, mas é nela que Roger Daltrey pode provar que sua voz continua impecável. Limpa, forte e segura. Mais do que os quesitos técnicos: mágica. Ouvir o vocalista alcançar aquelas notas altas depois de tanto tempo é como ver o poder da música diante dos olhos.
Durante todo o show, o telão revezava entre três temas: explosões de cores em imagens psicodélicas, vídeos de cenas histórias da política britânica e fotos de Keith Moon, baterista original da banda que morreu em 1978, e John Entwistle, baixista falecido em 2002. Desde a morte desse último, dois músicos já passaram pelo posto. Já a bateria é ocupada pela mesma pessoa desde 1996, quando a banda se reuniu.
Zak Starkey merece um parágrafo só pra ele. O filho de Ringo Starr já está com 52 anos e tem no currículo colaborações com Oasis, Johnny Marr e até o próprio John Entwistle. No The Who, ele parece encarnar o estilo enérgico de Keith Moon. Starkey reproduz perfeitamente as composições do baterista original e ainda se adapta muito bem aos arranjos novos que Townshend preparou pra algumas delas. Os dois, aliás, são o motor da banda ao vivo. Starkey mantém os olhos grudados no guitarrista durante todo o show e só começa a contagem de baquetas para a próxima canção quando Pete autoriza.
As duas músicas escolhidas pra encerrar o show foram talvez os dois maiores sucessos do The Who. “Baba O’Riley” e “Won’t Get Fooled Again” são canções similares por suas introduções eletrônicas e também pela energia que carregam através de público e banda. Foi apoteótico. Mas não era o fim. Depois de uma breve saída do palco, Roger apareceu novamente e chamou os companheiros com a mão, como se pedisse um bis ele mesmo. Pete, como se tivesse sido convencido, liderou a banda através de “5:15”, música do disco Quadrophenia, e “Substitute”, mais um clássico dos primeiros anos do grupo.
A sensação que ficou em quem esteve presente é de que foi um sonho. Talvez a banda mais aguardada de todos os tempos pelos brasileiros chega, toca e vai. Qualquer momento que você olhasse ao redor dava pra ver idosos, adultos, jovens e crianças com olhos fixos no palco. Gerações e espíritos unidos. Todos vendo o The Who pela primeira vez. E, pra quem não vai no Rock in Rio no dia 23, provavelmente a última.
Setlist do The Who no São Paulo Trip, 21/9/2017
- I Can’t Explain
- The Seeker
- Who Are You
- The Kids Are Alright
- I Can See for Miles
- My Generation (com trecho de Cry If You Want)
- Bargain
- Behind Blue Eyes
- Join Together
- You Better You Bet
- I’m One
- The Rock
- Love, Reign O’er Me
- Eminence Front
- Amazing Journey
- Sparks
- Pinball Wizard
- See Me, Feel Me
- Baba O’Riley
- Won’t Get Fooled Again
- 5:15 (bis)
- Substitute (bis)