Rotulados pela indústria fonográfica como “malditos”, alguns artistas da década de 70 e 80 flertavam com experimentações e linguagens pouco tragáveis para o que as rádios e a música popular como um todo estavam costumadas a reproduzir.
Esses artistas, apesar de não se relacionarem em gênero musical, contavam com muitas parcerias entre si e com grandes nomes da música brasileira, principalmente com membros do Tropicalismo (movimento artístico brasileiro que aconteceu no final da década de 60).
Muitos desses músicos tiveram um espaço muito breve em paradas de sucesso, mas não com uma aceitação contínua da grande massa, e então, seguiram suas carreiras sem a atenção da mídia tradicional e resolveram tocá-las por conta própria.
Diferente dos outros movimentos anteriores da música brasileira, como o próprio Tropicalismo e o Clube da Esquina, esse não foi localizado em uma região específica do Brasil. Então, separamos para essa matéria três lugares onde a proliferação dessa nomenclatura foi mais comum: Rio de Janeiro, São Paulo e Nordeste.
Para resumirmos, citaremos a trajetória de três artistas de cada uma dessas regiões para darmos a dimensão do movimento “maldito” dentro da nossa música brasileira.
Rio de Janeiro
Jorge Mautner
Escritor precoce, começou seu primeiro livro aos 15 anos. Político ativo desde 1962, cineasta e, lógico, um grande músico e compositor. Encontrou no violino a sua verdadeira forma de expressão e no final dos anos 60 se envolveu fortemente com o movimento Tropicalista, mas não teve o mesmo destaque dos grandes nomes que dali surgiram.
Mantendo amizade com Caetano e Gil, Jorge se auto-exilou junto aos baianos em Londres e continuou fazendo parcerias com eles durante toda a vida. Dentre as grandes obras do artista, ficaram mais conhecidas as interpretações de Caetano para a canção “Vampiro” no álbum Cinema Transcendental, e a versão de “Maracatu Atômico”, que virou hit 30 anos depois de sua composição, na voz de Chico Science e Nação Zumbi.
Jards Macalé
Cantor, músico e compositor, Jards Macalé foi um revolucionário dentro da música brasileira dos anos 70. Costumeiramente em parceria com Waly Salomão, o artista atuou como diretor e compositor do aclamado álbum ao vivo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor (1971) de Gal Costa. Além disso, também dirigiu o Banquete dos Mendigos (1973), um show-manifesto em homenagem aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que contou com Chico Buarque, Milton Nascimento e diversos grandes nomes da MPB.
Por se manifestar tão fortemente contra a ditadura no período, várias de suas obras foram negligenciadas pelo regime e o seu nome nunca teve grande destaque na mídia de massa.
Uma de suas grandes composições é “Vapor Barato”, principalmente pela interpretação de Gal, mas Macalé conta com várias outras belíssimas canções, como “Farinha do Desprezo”.
Luiz Melodia
Outro grande nome tido como “maldito” da MPB foi Luiz Melodia. Sua obra também ficou conhecida pela interpretação de Gal Costa, no clássico “Pérola Negra”, que também é o nome de seu primeiro e bem reconhecido disco. Apesar de ter tido uma fase bem-sucedida, fazendo parte de trilha sonora de novelas da Rede Globo, com “Juventude Transviada”, Melodia se desviava dos padrões radiofônicos, e então seu sucesso não se seguiu nos anos que se passaram.
São Paulo
Itamar Assumpção
Rejeitada pela indústria fonográfica, a Vanguarda Paulista dos anos 70 e 80 foi o berço dos malditos de São Paulo. Entre eles, Itamar Assumpção é um dos que se destaca. Com sua banda Isca de Polícia lançou em 1980 o seu primeiro álbum, o conceitual Beleléu, Leléu e Eu, que gerou certo reconhecimento na cena paulistana, principalmente por suas apresentações performáticas.
Depois disso, Itamar começou a fase da trilogia de álbuns chamada Bicho de Sete Cabeças com uma banda que contava unicamente com mulheres.
Entre diversos projetos, o artista ainda teve a oportunidade de gravar um álbum com o conceituado percussionista Naná Vasconcelos, o belíssimo Isso Vai Dar Repercussão.
Arrigo Barnabé
Amigo e de estética musical parecida com Itamar Assumpção, Arrigo já chegou a ser considerado o ‘Frank Zappa brasileiro’. Seu primeiro disco, Clara Crocodilo, foi recebido pela imprensa como a maior novidade na música brasileira desde a Tropicália. Seus álbuns eram sempre experimentais e envolviam diálogos que faziam diversas referências à linguagem popular em uma mistura de rock, música erudita e jazz.
Chegou a fazer um breve sucesso com canções do Clara Crocodilo e outras, como “Uga Uga”, mas a agressividade de sua música sempre teve rejeição radiofônica, o que também o coloca nesse título de maldito.
Walter Franco
Um dos precursores da Vanguarda Paulista, Walter Franco é de uma obra assustadoramente única. Influenciado pela poesia concreta e músico excepcional desde a década de 60, Walter nunca teve uma grande aprovação da mídia, mas teve a atenção de grandes artistas, tendo canções gravadas por nomes como Geraldo Vandré, Chico Buarque e até pelos Titãs. Seu primeiro álbum, Ou Não, é um marco do experimentalismo na música brasileira, mas seu registro mais reconhecido é o Revolver, de 1975, que conta com o clássico: “Feito Gente”.
Nordeste
Ave Sangria
Banda formada dos membros que acompanhavam Alceu Valença na turnê Vou Danado Pra Catende, a Ave Sangria teve apenas um álbum de estúdio, o homônimo Ave Sangria, de 1974 (e apenas em 2018 anunciaram seu retorno com inéditas!). Com um reconhecimento muito localizado em Pernambuco e região, o som da banda de rock psicodélico nunca teve um alcance nacional, o que acabou taxando a banda como mais um dos artistas malditos da década de 70.
Ednardo
Assim como na década de 60, nos anos 70 também teve uma grande migração de artistas do Nordeste para as regiões centro-oeste (Rio e São Paulo). Junto com Belchior e Fagner, Ednardo fez parte do movimento conhecido como Pessoal do Ceará, que entre artistas e filósofos construiu uma cena significativa no Nordeste e vieram então para o centro do Brasil.
Diferente dos demais citados, Ednardo teve uma aparição muito breve na cena nacional, o seu maior clássico “Pavão Mysteriozo”, foi trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo, mas depois disso, o músico acabou caindo no esquecimento da grande mídia, apesar de continuar seu trabalho com outras grandes obras.
Menção Honrosa
Sérgio Sampaio, “O mais maldito dos malditos”
Parceiro musical e amigo de Raul Seixas no começo da carreira, com destaque para o álbum da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, Sessão das 10 (1971), o capixaba Sérgio Sampaio se distanciou dos caminhos de Raulzito e em sua carreira solo teve pouco reconhecimento nacional. Conhecido como ‘O mais maldito dos malditos’, Sérgio chegou a ter um breve sucesso com o clássico “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” do álbum homônimo de 1973, mas o grande público não acompanhou a trajetória do artista depois disso, onde muito foi feito, mas quase nada teve a atenção merecida.
Conhecer a história dos malditos é se inteirar da importância sociopolítica da nossa música. Numa época onde a mídia era controlada por militares, a cultura foi enquadrada em um padrão estético, e o fato de que músicos tão incríveis não se encaixaram nele significa que poderiam agregar muito mais à nossa noção de MPB.