Existem alguns artistas cujas obras parecem terem sido criadas para se ouvir com aquele ruído da agulha cortando o vinil junto, e Tim Maia certamente é um deles.
Mas como a adaptação para os meios digitais se faz mais do que necessária, a Universal Music anunciou na última semana de Setembro a inserção parcial da discografia do “Pai do Soul brasileiro” nos serviços de streaming.
Estão inclusos nos catálogos digitais os clássicos Tim Maia (1970), Tim Maia (1971), Tim Maia (1972), Tim Maia (1973), Tim Maia (1976), Tim Maia (1980), Descobridor dos Sete Mares (1983) e Sufocante (1984).
O timing para o retorno de Tim aos catálogos digitais é devido ao marco de 20 anos da morte do cantor carioca, que faleceu em 1998 aos 55 anos, devido à uma infecção decorrente de um edema pulmonar e uma crise hipertensiva.
Entre os hits agora inclusos nos serviços de streaming se encontram clássicos como “Primavera”, “Azul da Cor do Mar”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Réu Confesso” e “Gostava Tanto de Você”.
Sebastião Rodrigues Maia
Popularmente conhecido pelo seu nome artístico de Tim Maia, Sebastião nasceu em 1942 no Rio de Janeiro. Foi um homem de diversos talentos, pois além de cantor também era compositor, maestro, produtor musical, instrumentista e empresário. Tim foi responsável pela introdução do soul e do funk na música popular brasileira e acabou se tornando reconhecido como um dos maiores ícones musicais do Brasil.
Antes de se tornar conhecido com músicas como “Primavera” e “Azul da Cor do Mar”, presentes no seu disco de estreia, Tim Maia chegou a integrar um projeto chamado The Sputniks, onde cantou juntamente com Roberto Carlos. O cantor teve maior contato com a música soul durante sua aventura pelos Estados Unidos em 1959, onde acabou sendo deportado do país pelo porte e consumo de maconha.
Sorte dos brasileiros, que tiveram sua bela voz repatriada e foram presenteados com o seu disco de estreia anos depois. Confira a seguir uma breve análise dos primeiros álbuns da discografia de uma das maiores vozes que já pisaram em um palco no nosso país.
Tim Maia (1970)
Um dos melhores e mais bem-sucedidos LPs de estreia da história da MPB, Tim Maia é também um marco: muitas tinham sido as tentativas, mas pela primeira vez um músico brasileiro conseguia incorporar por inteiro em disco as inovações da soul music dos selos Motown e Stax, sem soar como uma cópia. Tim, o rebelde da Tijuca, o garoto que queria ser americano, mostrava que tinha razão em suas idiossincrasias, nesse álbum que abre nada menos do que com um baião, “Coroné Antonio Bento” (de Luiz Wanderley e João do Vale), vertido em boogaloo. Como numa boa sessão de discotecagem, o set list segue embalado com “Cristina”, parceria de Tim com o produtor Carlos Imperial, que inaugura o soul brasileiro com seu balanço e sua homenagem a uma mulher que o cantor tentara conquistar. Com as imortais “Primavera (Vai Chuva)” (de Cassiano e Silvio Rochael) e “Azul da Cor do Mar” (de Tim), Tim Maia conquistou as radios de imediato. Mas o conjunto de suas faixas teria lenha suficiente para queimar nos 40 anos seguintes, com “Eu Amo Você” (outra de Cassiano e Silvio), “Risos” (meio Burt Bacharach, de Fábio e Paulo Imperial), “Padre Cícero” e a invocada “Jurema” (com letra em inglês, apesar do título brasileiríssimo). Tim começava a fazer história.
Tim Maia (1971)
As sementes plantadas pelo LP de estreia frutificaram nesse segundo Tim Maia. O projeto Soul Brasil do cantor avançou a largos passos em dois clássicos: na dobradinha de guitarra e sanfona de “A Festa de Santo Reis” (de Márcio Leonardo, que abre o disco) e no baião boogaloo “Salve Nossa Senhora” (de Eduardo Araújo e Carlos Imperial). Entre as duas faixas, estava lá o soul “Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)”, que seria redescoberto pelos DJs no início dos anos 1990 e que, desde então, nunca mais deixou de fazer parte do repertório de qualquer festinha que se preze. Os dois grandes sucessos desse disco foram “Não Vou Ficar” (de Tim, que Roberto Carlos lançara alguns anos antes) e a balada romântica “Você” (também de Tim, que os Paralamas do Sucesso devolveram às paradas, 15 anos depois, numa regravação reggae). Composições em inglês também não faltaram nesse disco, caso de “I Don’t Know What To With Myself” (parceria com Hyldon, inspirada pela desilusão com a musa Janete, a mesma que levara Tim a compor “Azul da Cor do Mar”), da alegre “Broken Heart” e de “I Don’t Care”. E quem achava que o cantor nada tinha a ver com a bossa nova, deve dar uma sacada na interpretação emocionada de “Preciso Aprender a Ser Só”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle.
Tim Maia (1972)
No terceiro de uma consistente sequência de discos, Tim Maia reúne um time instrumental de sonho (entre eles, alguns futuros integrantes da Banda Black Rio) para dar continuidade ao seu trabalho de nacionalização do soul. “Não precisa de dinheiro pra seu ouvir meu canto / Eu sou canário do reino e canto em qualquer lugar”, manda ele em “Canário do Reino” (de Carvalho e Zapatta), o baião boogaloo do disco. Em ritmo de bolero, Tim aproveita, mais à frente, para recriar sua “These Are The Songs (Está é a Canção)”, que havia sido lançada três anos antes em dueto com Elis Regina. E segue firme com as composições em inglês: “My Little Girl” e “Where Is My Other Half”, que lembram o melhor de Marvin Gaye. Das músicas em português do disco, destaca-se a balada “O Que Me Importa”, de Cury, que foi levada ao grande público 28 anos depois, numa regravação de Marisa Monte. O Tim Maia da dor-de-cotovelo, famoso a partir dos anos 80, começa a dar seus primeiros sinais nesse disco, com “Lamento” e o blues “Sofre” (este, com direito a uma daquelas suas dramáticas narrações). No fim das contas, porém, ainda havia “Razão Para Sambar” – uma quase vinheta, esperançosa, que joga um raio de luz sobre esse disco com belos momentos de desencanto.
Tim Maia (1973)
No que seria o último LP da primeira fase de sua carreira, Tim Maia chegou com uma novidade chamada samba-soul, nas faixas “Compadre”, “Réu Confesso” (ambas de sua autoria) e “Gostava Tanto de Você” – um grande sucesso do disco, composto por Edson Trindade, companheiro de Tim (ao lado de Roberto Carlos) nos Sputniks, grupo que fundaram ainda nos anos 1950. A levada Motown dos discos anteriores ainda dá as caras aqui, aperfeiçoada, em faixas como “Até Que Enfim Encontrei Você”, “Balanço” e “Amores” (que fecha o disco em clima de jam-session, na qual o cantor toca um bom contrabaixo). No departamento (indispensável, por sinal) das canções em inglês, o destaque vai para “Do Your Thing, Behave Yourself”, com seu refrão irresistível. Mas “New Love” (bossa soul que Tim compusera no período que passou nos Estados Unidos – e que cantara por lá com o grupo The Ideals) e o balanço “Over Again” também fazem bonito nesse disco, em que ele enfileira três boas baladas sentimentais: “Música no Ar”, “A Paz do Meu Mundo é Você” (de Mita) e “Preciso Ser Amado” (que Tim manda só na voz e no violão). Essas foram as últimas gravações antes da conversão à seita Universo em Desencanto, que daria em dois discos independentes Tim Maia Racional.
Tim Maia (1976)
Desencantado com a Cultura Racional, Tim Maia caiu com os dois pés na pista de dança em seu LP de 1976. Em dia com as evoluções do soul (que àquela altura era definitivamente funky e já começava entrar na era da discothèque), ele arregimentou uma banda que ensaiava com afinco e regularidade no estúdio que montara em casa. E saiu de lá com um disco caprichado, de execução afiada, com arranjos dos mestres Miguel Cidras e Arthur Verocai. Em faixas como “Márcio Leonardo e Telmo” (sobre seus dois filhos pequenos), “Sentimental” (“estou sofrendo / mas não largo o osso”) e “Batata Frita, o Ladrão de Bicicleta”, Tim incorporava o balanço funk da época, sem deixar nada a dever a nenhum James Brown. Na faixa de abertura, “Dance Enquanto é Tempo”, a pré-disco mostrava sua influência, numa sedutora conclamação à diversão sem limites. Já em “Rodésia”, Tim foi a outro extremo temático, encarnando a dureza refinada de um Curtis Mayfield para falar da situação complicada dos irmãos africanos – era sua mensagem em tempos de black power. O inglês, ele mais uma vez gastou à vontade, nas espirituais “Nobody Can Live Forever” e “Brother, Father, Sister and Mother”, além de em “The Dance is Over”, samba-soul em que alertava: “a dança acabou / encare a realidade”.
Tim Maia (1980)
Depois de mais um hiato, em que fez quatro discos (um deles, só com músicas em inglês), Tim Maiavoltou à Polydor/PolyGram, para seguir com seu balanço ao lado da dupla de produtores Robson Jorge e Lincoln Olivetti – mestres de um tipo de funk melodioso, rico em metais e teclados e muito burilado em estúdio, que dominou as paradas no começo dos anos 1980. O mais bem-sucedido resultado do encontro nesse disco seria “Você e Eu, Eu e Você (Juntinhos)”, canção em formato disco-funk que virou um dos perenes sucessos de show do cantor. “Não Vá” (de Robson e Lincoln) e “Tudo Vai Mudar” ainda seguiriam nessa onda. No entanto, um outro Tim Maia se solidificava de vez nesse LP: o baladeiro muito romântico, capaz de aquecer com seu vozeirão os corações atropelados pelos revezes da paixão. “Nossa História de Amor” (de Gastão Lamounier e Luiz Mendes Jr.), “Não Fique Triste” (do velho camarada Cassiano), “Doeu Mais Que Doer” (de Robson, Lincoln e Tim) e “Está Difícil Esquecer” (de Tim) fazem uma quadra perfeita para o cantor abrir o peito e se derramar. Mas para quem se liga mesmo é na faceta samba-soul de Tim, “Meu Samba” está lá para matar as saudades. Como o próprio canta: “Resolvi voltar / resolvi verificar / se todo mundo / se o mundo inteiro / gosta de sambar”.
Descobridor dos Sete Mares (1983)
Tim Maia e a Banda Vitória Régia: uma parceria que durou anos a fio e que teve nesse Descobridor dos Sete Mares um de seus pontos altos. A começar pela faixa-título, um funkão à la Earth, Wind & Fire que Tim pegou dos compositores de jingles Michel e Gilson Mendonça. Um sucesso imediato, que ajudou bastante nas vendagens do LP, junto com uma outra canção não composta por Tim: “Me Dê Motivo”, dos hitmakers Michael Sullivan e Paulo Massadas. Se “Descobridor” virou o grande esquenta dos shows do cantor, àquela balada romântica (que também foi muito bem nas rádios, com seu jeitão de fim-de-noite-FM) acabaria como o momento por excelência da dor-de-corno, com a clássica narração (“até que a mulher que a gente ama vacila e põe tudo a perder…”), que Tim podia estender ao infinito ao vivo. Mas Descobridor dos Sete Mares ainda tem outras faixas fortes, de grande potencial, como o funk “Terapêutica do Grito” (bastante executada nos shows), a balada “Neves e Parques” (outra de Michel e Gilson) e a jazzy “Rio Mon Amour”, que traz a marca da sofisticação de Cassiano. Em seu momento de recuperação comercial, o cantor mostrava que ainda tinha alguns trunfos – era só os graves, médios e agudos estarem todos em ordem na hora de gravar.
Sufocante (1984)
Restabelecido pelo disco anterior como uma das grandes vozes da música romântica brasileira, Tim Maia trouxe uma boa carga de bons baladões em Sufocante. Ouvidas hoje, a faixa-título (de Carlos Dafé e William) e “Venha Ser Minha Mulher” (de Cassiano e Tim) revelam como o cantor sabia expressar com categoria as dores do coração. Mas o grande sucesso do disco foi um outro petardo romântico, “Bons Momentos”, de Marquinhos e Michel, que dominou a programação das FMs em 1984. Primeiro grande encontro de Tim com as eletrônicas digitais, o LP reflete o som de sua época nos teclados e na bateria eletrônica usados para aditivar o baião-disco “Debaixo do Manacá” (de Gilson) e o soul “Quero Te Dar (Desejos)”, de Tim, que navega bonito nas mesmas águas de um “Sexual Healing”, de Marvin Gaye. Mas os velhos funks, para animar a pista, estão lá: o divertido “Ga-guejando” (de Gilson e Michel) e “Mama Super Mama”, no qual, sobre um groove de baixo sintetizado, Tim fala da mãe, Maria Imaculada (“Ela está comigo / em Paris ou Nova York / Minha mãe faz parte / do meu passaporte”). Já no samba-soul “Aquariar”, o cantor anunciava o início de uma nova fase astral. Que, por sinal, o levaria a tempos de antológicos shows com a banda Vitória Régia.
https://www.youtube.com/watch?v=ZD8LutCHI80