Foto por Bruno Carachesti
No início de Novembro, mais precisamente nos dias 01, 02 e 03, aconteceu a décima terceira edição do tradicionalíssimo Festival Se Rasgum, em Belém do Pará.
O evento organizado pela produtora que também o batiza já se tornou não apenas referência de festival na belíssima cidade que o abriga e no Norte do Brasil, como também no país todo, tendo seus organizadores falando a respeito em palestras e conferências das mais diversas regiões.
Por falar em palestras e conferências, em 2018 o TMDQA! foi convidado para acompanhar o festival que também conta com debates sobre a música, movimentando a cena local e levando gente de todos os cantos do país para conversar na simpática loja Ná Figueredo, que tem desde culinária e cervejas locais até discos de vinil e serve também como casa de shows em uma região central da cidade.
Por lá, esse que vos escreve, fundador e editor-chefe do TMDQA!, Tony Aiex, participou de um painel sobre a música em novos canais da Internet ao lado de Pedro Antunes (Tem Um Gato Na Minha Vitrola) e Carol Pascoal (Trovoa Comunicação).
Na programação da Music On The Table, ainda tivemos debates sobre discos de vinil, editais e otimização de performance em serviços de streaming com representantes do Spotify, em oportunidades incríveis para quem vive o rolê da música.
À noite tivemos, é claro, o festival em si, e é sobre ele que falaremos agora.
Festival Se Rasgum 2018
Em 2018 o Se Rasgum se mudou para o Insano Marina Club, local que tem uma estrutura para eventos e conta com um deck que fica às margens da Baía do Guajará onde foi montado o palco principal do festival, com uma vibe incrível.
Ao seu redor, ativações de patrocinadores do evento e até uma espécie de camarote liberado onde artistas plásticos locais fizeram uma belíssima exposição permitiam que as pessoas assistissem aos shows, comprassem suas bebidas e ainda aproveitassem a atmosfera de uma configuração tão particular para o layout de um festival.
Não dá pra ignorar também a tradicional aparelhagem, característica da região, que dava as caras por ali através da Carreta Tezão Turbinado, que tocava antes e depois dos shows e proporcionava momentos maravilhosos com mashups de sons como carimbó e System Of A Down (!).
Além do palco principal o Se Rasgum também tinha outro, menor, e os shows que começaram com atraso no primeiro dia se revezavam entre eles, com apresentações dos artistas e dos patrocinadores antes de cada um, em uma troca que funcionou bem já que a distância entre os locais dos shows era bem pequena e bastava andar alguns metros após o término de uma apresentação para ir até a outra.
Resistência
O lema do Se Rasgum esse ano foi a Resistência, e isso era mostrado a todo momento nos telões dos shows e nas redes sociais do festival.
Não é preciso explicar que vivemos um momento político e social dos mais conturbados, e o Pará foi um dos estados que escolheu Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, como Presidente do Brasil nas últimas eleições, indo contra a maioria do país que acabou elegendo Jair Bolsonaro.
A resistência, natural no meio da cultura tão criticado pelo presidente eleito em sua campanha, tornou-se ainda maior no palco do Se Rasgum, e não dúvida nenhuma ao afirmar que ela é forte, poderosa e cada vez mais feminina.
Os palcos do Se Rasgum 2018 viram shows impactantes e talvez pelo ambiente mais próximo, foi o palco Oi, menor, que teve as melhores apresentações das três noites.
O show da Letrux foi uma verdadeira catarse, uma experiência de outro planeta onde centenas de fãs ensandecidos cantavam cada letra e cada palavra que a cantora propagava através de seu microfone.
Com a banda toda de vermelho, seguindo a identidade visual do disco Em Noite de Climão, Letícia Novaes finalmente fez o primeiro show da carreira em Belém, e sua força no palco era equivalente aos gritos e aplausos que vinham como ondas da plateia em sua direção.
Além de apresentar canções de um dos melhores discos nacionais de 2017, Letrux ainda comentou sobre como ali no Pará era “Haddad Sim” e deixou uma indireta bastante clara a “certas cantoras” que não se posicionaram politicamente porque “não queriam perder um contratinho com o supermercado ou com um produto de cabelo”.
“VOLTA A FAZER ARTE, PARA DE FAZER PRODUTO,” gritou Letrux antes de fazer uma cover de “Ray Of Light”, clássico da cantora Madonna que, mesmo não estando aqui no Brasil, se posicionou contra Jair Bolsonaro nas eleições.
Na mesma noite, poucas horas antes e no mesmo palco, o Metá Metá também fazia seu primeiro show em Belém e liderado por Juçara Marçal transformou o Se Rasgum em uma festa intensa de mais resistência.
As complexas estruturas das canções da banda e suas guitarras afiadíssimas são coroadas por vocais poderosos e dos mais calmos, daqueles que estão no controle a todo momento e sabem muito bem disso, regendo uma concentração tão bombástica de energia como poucas pessoas sabem fazê-lo.
Do lado oposto do espectro, mas no mesmo palco, horas antes foi a vez da lendária banda punk Os Replicantes tocar ali e trazer mais catarse, mais explosão, mais fúria, novamente com uma mulher, a vocalista Julia Barth, e uma mistura de clássicos como “Surfista Calhorda” e “Festa Punk” com músicas do disco Libertà, lançado pelo grupo em 2018.
Esse disco, inclusive, deveria ser a cartilha para a adolescente ou o adolescente que quer pegar uma guitarra esse ano e se manifestar através da música: questões como feminismo, fascismo e capitalismo foram expostas no álbum, lá no começo do ano, muito antes de todo esse turbilhão político tomar conta do país.
Ali no palco, Julia tomava conta da plateia com sangue nos olhos, vocais precisos, uma identidade própria que incorporou as músicas antigas da banda e lhes deu um sopro de ar, junto com as novas que são tão poderosas quanto.
Foi de arrepiar ver tanta gente se emocionando ali; tinha marmanjo quase chorando com o poder do Punk Rock e fã d’Os Replicantes que cantou junto quando Julia ofereceu o microfone e, quando isso não aconteceu, chegou a pegar o pedestal vazio em frente ao palco e gritar nele, como se estivesse lavando a alma na frente de todo mundo que estava por ali.
Mais uma força da natureza que passou pelo Palco Oi do Festival Se Rasgum foi Getúlio Abelha, do Ceará, que é definitivamente um nome a ficar no seu radar para os próximos shows e festivais Brasil afora. Se ele for confirmado em algum evento perto da sua casa, vá.
Getúlio é uma espécie de Bowie do sertão, misturando pop, rock e música tradicional do seu estado, e a performance dele no palco é surreal. Tem coreografia, dança, bicicleta e até um momento em que ele é colocado de ponta cabeça no ar pelos seus companheiros de palco e continua cantando sem oscilar ou errar uma nota sequer.
Definitivamente foi uma das gratas surpresas do Se Rasgum e talvez o melhor show do primeiro dia, empolgando o público presente como poucos.
Outra surpresa veio através de nomes locais como o rapper Pelé Do Manifesto, que fez um showzão no Palco Natura, o principal, e entre suas canções apoiadas em uma banda das mais orgânicas com guitarra, baixo e bateria tinha momentos certeiros onde rimava sobre suas origens, preconceito, racismo e mais. Um tiro certeiro que deve dar muito o que falar nos próximos anos quando o assunto é hip hop brasileiro.
Liège, cantora local que já tem uma história bonita na música também alegrou e emocionou quando falou, entre outras coisas, sobre como foi desmotivada pela própria família a respeito da carreira na música. Também falou sobre política e disse que assim como ela pagou o preço de não se calar, mesmo sendo “derrotada” nas eleições, as pessoas também deveriam pagar o preço de não ficarem quietas e deixarem suas posições claras ao mundo. Foi um belo espetáculo.
Mais um belo espetáculo se deu no último dia de festival com o trio curitibano Tuyo, que viajou de muito longe para encantar o palco do Se Rasgum sobre o deck.
Era o primeiro show da banda em Belém e o nervosismo das meninas (e do cara) passou rapidamente quando o público começou a entoar suas canções que representam algo do que há de melhor acontecendo na música brasileira hoje em dia.
A mistura de folk com batidas eletrônicas e o uso de vocais poderosíssimos como um verdadeiro instrumento musical é pra lá de interessante, e quem não conhecia a Tuyo se surpreendeu positivamente com o som de Lay, Lio e Machado, indo inclusive até eles para mostrar toda sua admiração, fato que presenciei algumas vezes após o show.
Por uma questão de tempo, o grupo infelizmente não pôde apresentar a incrível “Solamento”, que seria a última música do show, mas o público não deixou passar batido e tanto pediu a música quanto cantou alguns de seus trechos. Já falamos por aqui mas não vamos nos cansar de repetir: fiquem de ouvidos abertos pra essa banda que acabou de lançar o disco Pra Curar.
Normalmente eu não gosto de me alongar nas resenhas e essa aqui já está quilométrica, mas é impossível não destacar tantos bons shows em um mesmo evento: a Plutão Já Foi Planeta divertiu o público que dançou em cima do deck, The Baggios fizeram blues/rock de primeira no palcão do evento e os locais do Molho Negro transformaram tudo em uma festa rock and roll absurda, com o vocalista e guitarrista João Lemos levando a banda para a plateia e finalizando o show por ali mesmo. A apresentação para divulgar o novo disco Normal está muito boa.
Os cariocas do Menores Atos fizeram todo mundo cantar seu post-hardcore e Maurício Pereira, lenda da música brasileira, emocionou os presentes com um show onde a atração se renova com cada canção, já que cada letra do cara é uma verdadeira obra de arte. A performance de “Trovoa”, com o público cantando tudo e sendo um verdadeiro backing vocal, dificilmente será esquecida tão cedo.
Com um set curto, a Carne Doce mostrou mais uma vez o poder de suas guitarras e a alternância de momentos caóticos e jams intermináveis com outros cheios de calma e sensualidade. A vocalista Salma Jô vai claramente ganhando mais confiança a cada show da turnê de Tônus e a performance como um todo ganha muito com isso.
Por fim, se os gringos do Se Rasgum poderiam parecer deslocados à primeira olhada no line-up, eles fizeram por merecer as boas posições de horário que ganharam.
Barbagallo, baterista do Tame Impala que está em carreira solo, fez um show incrível misturando folk e psicodelia, tudo cantado por ele em francês ao mesmo tempo em que comandava as baquetas. Ele fez questão de explicar sobre o que se tratava cada música e ainda reforçou a mensagem de que somos todos resistência, falando que o período pelo qual passamos aqui no Brasil se repete mundo afora e que estamos todos juntos. Quando gritos de “Ele Não” vieram da plateia, ele os seguiu com batidas na bateria.
Já a dupla AK/DK, da Inglaterra, se juntou aos locais do Uaná System para transformar o festival em uma festa sem fim. Com um quê de LCD Soundsystem, a dupla fez do Palco Oi uma pista de dança com duas baterias e a ajuda de elementos eletrônicos. Me surpreendeu bastante e foi daqueles shows para lamentar quando chegou ao fim.
O Se Rasgum 2018 ainda teve apresentações de Céu e Linn da Quebrada como headliners de dois dos seus dias, complementando a trinca com Letrux que era a atração principal do outro, e deixou em evidência algo que tem acontecido de forma natural e se mostrado uma realidade na música brasileira: as mulheres estão fazendo o que há de mais interessante nos palcos hoje em dia.
Das mais diversas formas, da leveza até a dureza necessária para enfrentar crises políticas e sociais, é o feminino que está trazendo novos ares aos nossos ouvidos e nos dá verdadeiros afagos e tantos socos na cara quando estamos assistindo aos seus shows.
Obrigado, Festival Se Rasgum, pelo convite, e parabéns pela realização de um evento como esse em um momento tão complexo. Foram dias inspiradores em Belém que guardaremos por muito tempo.
Playlist
Aproveitando o embalo, adicionamos músicas de atrações que curtimos no festival à nossa playlist oficial do TMDQA!, para que você conheça e dê uma boa sacada logo abaixo.
Divirta-se!