O disco Continuidade da Máquina, lançado pelo Sugar Kane em 2003, é indiscutivelmente um clássico do hardcore nacional. Com algumas das faixas mais marcantes da carreira da banda, ele consolidou de vez o grupo dentro da cena.
Em 2013, aconteceu no Hangar 110 o show comemorativo de dez anos desse trabalho. Na última sexta-feira (9), foi a vez da banda se reunir novamente, agora para celebrar os 15 anos — no mesmo local, que agora passou a se chamar The House. Mudou o nome, mas continua (quase) tudo igual. Foi mais uma noite histórica do grupo em um dos locais mais simbólicos da cena underground.
Antes, a banda Dínamo, de Curitiba, entrou em cena para aquecer o público, que aos poucos ia chegando ao The House. Deléo (vocal), Karacol (guitarra), Dudu (baixo) e Biano (bateria) fizeram uma apresentação consistente e bem hardcore, com músicas que retratam temas bem atuais.
O grupo lançou recentemente o disco Origens e tem mostrado um lado mais maduro, que se refletiu no palco. Com mensagens políticas, participações especiais e convocando a plateia para cantar junto, o Dínamo foi um ótimo aquecimento e teve uma boa receptividade da galera.
Não muito tempo depois, foi a vez de Caique Fermentão (vocal e guitarra), Felipe Dantas (guitarra), Murilo Benites (baixo) e Antonio Fermentão (bateria) darem início ao show do Corona Kings. Em noite de bandas paranaenses, o grupo de Maringá mostrou o porquê de ser um dos nomes de destaque da cena atual e fez uma apresentação intensa, com rapidez e riffs muito bem trabalhados.
No setlist, faixas do seu disco mais recente, Death Rides a Crazy Horse, que saiu há um ano, incluindo “Boyhood” e “Death Proof”. Assim como em 2017, abrindo para o show de 20 anos do Sugar Kane, o Corona Kings ganhou o público logo de cara. A banda tem muita força ao vivo, e a pegada stoner funciona perfeitamente com o clima experimental no palco.
Em meio a mensagens de respeito e resistência, além de crítica aos eleitores do Bolsonaro, a banda conduziu os presentes com maestria. Ainda que o clima na pista fosse tranquilo, todos estavam muito conectados ao som. Com uma performance de respeito e um público bastante satisfeito, o Corona Kings saiu de cena para dar lugar à atração principal da noite.
Quando o Sugar Kane subiu ao palco, a pista se transformou. Em questão de segundos, um ambiente que estava calmo e espaçoso deu lugar a um caos coletivo que duraria todo o resto da noite. E que noite!
Além de tocar o disco Continuidade da Máquina na íntegra, o show contou com uma formação especial: Alexandre Capilé (vocal e guitarra), Vini Zampieri (guitarra), Flávio Guarnieri (baixo) e André Dea (bateria). Esse era o Sugar Kane em 2009 — ano em que Flávio entrou para a banda e Vini saiu, poucos meses depois. Flávio ficou até 2013, e acredito que a maioria ali nunca tinha tido a oportunidade de ver na íntegra uma apresentação desse quarteto, que gravou o disco A Máquina Que Sonha Colorido.
Seguindo a ordem do Continuidade da Máquina, “Janeiro”, “Estou Cansado” e “Por Vir” abriram o set. Início catártico, com os fãs cantando aos berros e se acabando no mosh. O repertório foi dividido em blocos de três faixas, intercalando trios do disco comemorativo da noite com trios de outras fases da banda.
Assim, o show seguiu com “Vital” e “Fui Eu”, músicas do último trabalho lançado pelo Sugar Kane — Ignorância Pluralística (2014) — e “Será Viver”, única faixa do disco Elementar (2005) a ser tocada. É incrível o fato de tanto as canções mais antigas quanto as mais recentes terem o mesmo efeito no público, soando com a mesma força e sendo muito atemporais.
Voltando ao Continuidade, Capilé anunciou “uma das primeiras músicas do disco a ser ensaiada”, de quando o Renê Bernuncia assumiu a bateria do Sugar Kane e criou o groove inicial clássico de “Velocidade”. Essa música é daquelas unanimidades entre os fãs e sempre resulta em um dos pontos alto das apresentações ao vivo.
O set seguiu com “Abraço” e “Correr ou Lutar”, que foi cantada pelo Vini porque Capilé não lembrava da letra. E, então, o vocalista falou sobre a formação alternativa que estava ali, já que Rick (guitarra) toca com o Dead Fish e Moderno (baixo) também precisou estar com a banda capixaba naquela noite.
Integrantes de 2009, músicas de 2009: “A Máquina Que Sonha Colorido”, “Todos Nós Vamos Morrer” e “Revolução”. Capilé costuma brincar que sempre erra a letra de “Revolução”, e eu realmente acho que em todos esse anos eu nunca o vi acertar. Nesse show, não poderia ser diferente — assim como o coro e participação do público, intensos como se tivesse sido ensaiado. E esse foi o tom de toda a apresentação. Em meio a um hiato meio indefinido, as oportunidades de ver o Sugar Kane ao vivo são raras, e cada vez mais especiais.
E se o Sugar Kane sempre teve um posicionamento político firme, em tempos tão sombrios o discurso se torna ainda mais acentuado. “A gente é muito maior que essa porra. A gente não tá sozinho. A gente é foda!”, disse o vocalista ao falar sobre o momento de ser resistência. Isso foi a deixa para “A Máquina”, que gerou mais pancadaria na roda e muitos stage dives (ainda que muitas pessoas acabassem mesmo caindo direto no chão), seguida de “Minha Liberdade”.
Depois, outro momento especial veio com “Meus Amigos”, que estava sendo tocada ao vivo pela segunda vez na carreira do Sugar Kane — a primeira havia sido recentemente, no show comemorativo em Curitiba. Essa foi a única faixa que ficou de fora do show de 10 anos do Continuidade, e foi uma grata surpresa ela ter sido incluída dessa vez. Ainda por questões de não lembrar a letra, Capilé pediu que Vini a cantasse, mas quem assumiu o microfone pouco depois foi uma fã, que subiu ao palco e mandou muito bem!
O vocalista agradeceu muito ao público pela presença e pelo suporte à banda: “não tem nada que faça a gente estar aqui, a não ser vocês”. Em seguida, relembrando as músicas do Por Nossa Paz (2001), a banda mandou “Medo”, uma das faixas mais icônicas do Sugar Kane, além de “Vamos Seguir” e “Me Façam Entender”.
A entrega era total, e Capilé confessou que o momento político atual despertou a vontade de compor um novo disco. “Falta convencer o resto da banda”, brincou, para empolgação dos fãs. A vibe era sensacional, mas o show ia caminhando para o fim.
“Reviver” abriu caminho para “Harmonizar”, que encerra o Continuidade, mas aqui rolou uma inversão, porque nada mais apropriado do que a apresentação ser finalizada com “Despedida”. Antes, como de costume, Vini cantou um trecho de “Detalhes”, do Roberto Carlos, sempre acompanhado pelas vozes da galera.
Foi um show lindo e digno de celebração em grande estilo. Mas, acima de tudo, foi um show necessário. Se o apanhado de algumas das principais faixas da banda nos traz uma nostalgia e felicidade, o tom engajado nos dá a sensação de pertencimento e união. Que venha um novo disco! E, se não vier, que ainda assim a gente possa curtir mais noites memoráveis como essa.