Por Carol Pascoal
No começo do ano, os Racionais MC’s anunciaram uma pausa na carreira. Mas o período não se arrastou por muito tempo. O grupo retornou aos palcos no último sábado (24), quando se apresentou no Citibank Hall, na zona sul de São Paulo.
Em uma noite de muitas ideias e poucas palavras, talvez Edi Rock tenha resumido o motivo da volta em um dos raros momentos de diálogo com o público: “Temos uma missão: dar continuidade à mensagem de paz, à mensagem de amor e à mensagem de respeito (…) Ele declarou guerra, então fica esperto. Você tem os seus direitos, grite por ele e brigue por ele em voz alta”. Não há maneira mais Racionais MC’s ou maneira mais “Diário de um Detento” (“conseguir paz de forma violenta”) de anunciar que vai haver resistência ao governo eleito e aos seus desdobramentos. Na verdade, o grupo mais importante do país (para além do rap) ou “os quarto pretos mais perigosos do Brasil” nunca deixaram de ser resistência.
Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay marcaram essa nova reunião com um show no esquema “não entendeu ou quer que eu desenhe?”. Optaram por um roteiro que seguiu a ordem cronológica da carreira do grupo. O período de tempo sempre anunciado por Mano Brown ao microfone. Não bastaram nem duas músicas para (re)lembrar o quanto as letras ainda são retrato do hoje e do agora. No caso, “Pânico na zona sul” e “Tempos Difíceis”, que serviram de ponto de partida de 1989. Seguidas por 1991/1992, com “Voz Ativa” e “Beco sem Saída”, e 1994/1995, com “Mano na Porta do Bar” e “Homem na Estrada”.
O próximo (e mais extenso) bloco do show foi o de 1997, em que Sobrevivendo no Inferno – disco máximo do rap nacional (e mais uma vez, para além do rap) – emprestou seis de suas faixas ao repertório. E é importante que se abra um parênteses neste momento: em 2018, foi anunciado que o álbum, que vendeu mais de 1,5 milhão de cópias, se tornou obra obrigatória no vestibular da Unicamp a partir de 2020. Quando essa notícia saiu, KL Jay comentou que o álbum “é um ótimo livro de história”. E, de fato, esse trecho do show é uma surra necessária de realidade e contextualização. Tendo como início “Jorge da Capadócia”.
De volta ao Citibank Hall. Ao vivo, tal história ganhou uma trilha com contornos ainda mais vibrantes e intensos. A presença ali dos quatro já tornaria qualquer experiência de show impactante, mas a noite foi potencializada por uma banda de 11 integrantes que recriava os beats daquelas músicas históricas diante de um público de 7.000 pessoas. Haja estudo de samples originais de Tim Maia, Curtis Mayfield, James Brown, entre outros. Destes músicos, cinco são da banda Boogie Naipe, projeto-solo de Mano Brown. Isso só reforça como o passeio de Brown pela soul music e até mesmo o (breve) hiato dos Racionais arejou e tornou a apresentação atual ainda mais potente. São eles: Lino Krizz, que imprimiu vocais e agiu como maestro, Duani (guitarra), Bocão (percussão), Rael (baixo) e Kleber Tristão (teclado). A apresentação contou ainda com um DJ extra, que é AJAMU, irmão e braço direito de KL Jay. Somaram também nessa big band Edy Trombone, Natan Oliveira (trompete), Décio Romero da Costa (saxofone), Willian da Costa (guitarra), Sérgio Machado (bateria) e Rodrigo Tavares (teclado).
Pós-“Jorge da Capadócia” (de Jorge Ben) e de um aviso do Brown dizendo que “vai ter luta!”, vieram “Mágico de Oz”, “Rapaz Comum” e “To Ouvindo Alguém me Chamar”. Para então emendar e culminar em “Diário de um Detento” e “Capítulo 4, Versículo 3”. Esta última, inclusive, com a participação de Seu Jorge. A este ponto é como se o “gritar pelos seus direitos” do começo do texto tivesse sido colocado em prática pelo público de forma extasiada. Eis o ápice.
Rumando para a reta final do show, o quarteto entrou nos anos 2000, sendo 2002 o ano de foco. Após “A Vida É Desafio”, o público ainda estava inflamado pela dobradinha final do bloco anterior, então veio “Negro Drama”. Pow.
O disco mais recente dos Racionais, Cores & Valores (2014), só teve duas faixas nesse roteiro: “O Mau e o Bem” e “Quanto Vale o Show”. Teve mais peso a presença da ode a Carlos Marighella, com “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” – alguém que veiculou uma mensagem revolucionária chamando o povo à luta contra o regime. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.
“Vida Loka Parte 2” encerrou o show que marcou o retorno dos Racionais MC’s aos palcos. Por mais que este tenha sido anunciado como “única apresentação”, já existe um projeto para que o Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue, KL Jay e banda saiam em turnê nacional em 2019, tendo como mote os 30 anos de carreira do grupo.
Como consta na contracapa do livro Sobrevivendo no Inferno, que acaba de sair pela Companhia das Letras, reunindo uma introdução do professor de literatura Acauam Silvério de Oliveira, fotos e letras do disco: “os raps dos Racionais são a imagem mais bem-acabada de uma sociedade que se tornou humanamente inviável, e uma tentativa radical, esteticamente brilhante, de sobreviver à ela”. Quem tiver a oportunidade de ver esse show e deixar passar batido, certamente vai estar moscando…