Conversamos com Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) sobre os 20 anos do grupo

Inventividade na música brasileira e a indústria de hoje foram alguns dos assuntos do nosso papo com Lirinha, vocalista do grupo Cordel do Fogo Encantado.

Cordel do Fogo Encantado
Foto: Divulgação

Existe uma linha muito tênue entre música e poesia. Isso porque, muitas vezes, a letra de uma canção consegue se destacar em relação à base instrumental. São palavras que ficam na cabeça. Muitas vezes viram tatuagens, citações em redes sociais e até mesmo livros.

Um dos grupos que ganhou destaque ao misturar o ênfase nas duas expressões artísticas é o grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado. Em meio a um quente e rico cenário proposto pela ascensão do movimento manguebeat no final da década de 90, o Cordel se destacou pelo poder de sua poesia. A estreia se deu no Festival Rec-Beat, em 1999, e desde então o grupo só cresceu e chamou cada vez mais atenção.

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A banda já passou por muitos momentos, incluindo uma pausa em 2010, por opção dos integrantes. Oito anos depois, no entanto, o Cordel voltou com tudo com o lançamento do quarto álbum de estúdio Viagem ao Coração do Sol.

Cordel no Circo Voador

Parte da comemoração do grupo inclui um show no Circo Voador neste sábado (19/01). É a segunda passagem do Cordel no Rio de Janeiro durante a turnê do Viagem ao Coração do Sol.

Em uma noite onde as palavras vão ser a grande estrela, a abertura ficará por conta da banda carioca Canto Cego. O grupo mistura a essência do rock com a delicadeza da poesia, tem um álbum de estúdio lançado. Além disso, foi confirmado como a primeira atração do Espaço Favela, área inédita para a próxima edição do Rock in Rio.

Os ingressos ainda estão à venda, e podem ser comprados clicando aqui.

“Nos deparamos com um novo mundo”, conta Lirinha

Na época do álbum já havíamos batido um bom papo com o vocalista Lirinha. Agora, no ano em que a épica apresentação no Rec-Beat completa 20 anos, voltamos a conversar com o músico/poeta sobre a trajetória do grupo. Falamos sobre as mudanças na forma de se produzir e de se distribuir música nos dias de hoje.

Em nossa nova conversa, Lirinha nos contou alguns detalhes da trajetória do grupo. Falou sobre a volta e sobre como foi adaptar-se aos novos padrões da indústria da música. Falamos também sobre inventividade e sobre a experiência de um show do Cordel do Fogo Encantado.

Confira abaixo:

Crédito: Tiago Calazans

TMDQA!: Eu queria conversar com você sobre o aniversário da banda e sobre a experiência do novo álbum.

Lirinha: Isso tudo veio junto agora. Inclusive uma coisa influenciou a outra. Nesse momento de 20 anos de surgimento do grupo, desde a nossa estreia no festival Rec-Beat, durante o Carnaval de Recife. Conforme se aproximava essa data, decidimos que esse retorno deveria acontecer com uma nova mensagem, com um novo disco. É um disco muito importante, porque ativou a nossa criação e nos colocou também nessa comunicação de agora. Então, estamos felizes de estar comemorando uma data ligada ao passada com um disco que se comunica com o agora.

TMDQA!: Para você, como é ter uma banda com 20 anos de estrada, vários sucessos lançados, um peso musical grande na cena em relação a bandas mais recentes? Como é sobreviver 20 anos em um mundo onde as coisas são muito efêmeras, onde a fama normalmente dura pouco e o volume de músicas torna a singularidade de uma obra cada vez mais substituível?

Lirinha: Nós fomos entendendo o que significava o Cordel do Fogo Encantado e a importância da nossa presença na música, na poesia… Entendemos muito disso durante a pausa que demos, que foi muito importante para nós. A ideia é fazermos uma música que é fruto da reunião desses integrantes, com questões ligadas a uma ideia que construímos de poesia, e que é muito importante se expressar. Então, acho que fazemos parte de uma memória também, de uma construção de um lugar. Há certas coisas na vida que são assim, que vão nos acompanhando e agregando valor, mesmo sendo um mundo rápido, em que as coisas aparecem e desaparecem. Acredito que a banda tenha essa função de presença histórica na história do nosso país, e é importante estar ativa na criação, estar dialogando com essas novas gerações. A importância que eu acho é a originalidade estética em relação aos outros grupos, porque aí nós agregamos e construímos novos capítulos de uma música inventiva feita no nosso país.

TMDQA!: Você citou a questão estética do grupo. Vocês têm uma relação muito íntima com a poesia em suas obras. Como você vê essa questão poética carregada pelo Cordel na música hoje em dia?

Lirinha: A poesia foi a origem da gente. Todo artista tem uma escola. O título da banda, inclusive, tem muito a ver com isso. A palavra “cordel” surgiu de um recital de poesias. Então, a ideia inicial era a poesia. Então, começamos a criar a base musical para podermos contar nossa poesia. Assim, estávamos começando as canções, que é a união de uma letra e uma melodia. Começamos assim. Nosso primeiro espetáculo, por exemplo, teve 40 minutos de poesia e meia hora de música. Fomos descobrindo a composição dentro do grupo. Não dava para nos basearmos em outros grupos, já que a nossa sonoridade era muito diferente. Continuamos até hoje com percussão e um apenas um instrumento harmônico, o violão. Então, começamos a criar música do nosso próprio jeito, aprimorando cada vez mais o nosso repertório e, de repente, nos vimos assumindo que éramos uma banda, incluídos em uma nova fase do movimento mangue. Quando vimos, estávamos fazendo turnês imensas por vários festivais. Foi algo que sequer tínhamos projetado exatamente, mas entendemos e aceitamos. Foi o que nos incentivou a adotar esse caminho de uma banda musical brasileira.

TMDQA!: 20 anos são bastante tempo. Quando você pensa na trajetória no grupo, em tudo que vocês vivenciaram de 1999 até hoje, existe algum momento específico que tenha marcado a carreira da banda ou alguma lição que vocês aprenderam?

Lirinha: Algumas pessoas que cruzaram o caminho da banda foram inesquecíveis para nós e agregaram muito à nossa vivência. Uma dessas pessoas foi Naná Vasconcelos. Ele produziu o nosso primeiro disco, e não só produziu. Antes de gravarmos o disco, fizemos uma turnê, com ele abrindo para nós. Ele nos apresentava nos palcos, e isso era muito forte para a banda, pois se tratava de um grande nome da percussão de invenção, que nos influenciou muito. As primeiras turnês que fizemos fora do país também nos ensinaram muito.

A abertura do Pan-Americano, que foi feita no Maracanã, foi uma das últimas apresentações lá antes da reforma. Foi marcante, porque foram momentos importantes para nós. Carlos Eduardo Miranda também foi outro grande nome que passou pela nossa vida. Ele produziu o nosso penúltimo disco antes da pausa. E também foi para mim uma relação muito intensa, muito forte. Foi mais um capítulo importante na história da banda.

TMDQA!: Vocês voltaram e voltaram com tudo neste novo disco. Por exemplo, a canção “Liberdade, a Filha do Vento”, é uma canção que me seduz muito. O clipe dela foi algo bem interessante e moderno, com a questão da tecnologia 360°. Vocês também divulgaram uma espécie de mixer da música, em que você pode alterar os volumes dos instrumentos separados e criar sua própria versão. Isso foi algo muito legal e interativo que, em 2006, na época do disco anterior, talvez não fosse tão fácil ou importante de ser feito. Como foi para vocês, depois desse tempo, se habituar com esses novos métodos de divulgação, focados mais na internet do que na questão física da indústria?

Lirinha: Uma grande viagem (risos)! Foi uma das coisas mais interessantes desse nosso retorno. A banda anunciou a pausa em 2010 e, se pararmos para pensar, a internet naquela época ainda estava se instalando no país. Já existia, mas era pouco explorada e tinha em pouquíssimas casas. Eu lembro que em Arcoverde, nossa cidade natal no sertão de Pernambuco, pouquíssimas pessoas tinham acesso à internet. Mas lembro que tínhamos grandes comunidades no Orkut na época em que anunciamos a pausa.

Nesta volta, nos deparamos com um novo mundo. A gente brinca com isso em “O Sonho Acabou”, poesia que abre o disco. De uma forma ficcional, falamos exatamente disso. “O mundo agora é esse!”, “Saímos do fundo da Terra em direção ao Sol”… Com alterações muito grandes nas formas de distribuição e reprodução das músicas, tivemos que vivenciar tudo isso. E tem sido muito interessante. Para o clipe, por exemplo, exploramos o 360 porque criava uma relação com a letra da música, com a questão da liberdade e da visão. É para olhar para o lado que quiser, do ângulo que quiser. O mesmo serve para a questão do áudio no mixer. A ideia é mexer de acordo com a sua curiosidade e perspectiva. Promovemos mais interação nesse sentido, porque são coisas que potencializam a nossa mensagem e a nossa arte.

TMDQA!: Para a composição do novo álbum, na época em que vocês começaram a bolar arranjos e letras, o que passava na cabeça de vocês em termos musicais? O cenário era um em 2006, e atualmente muita coisa mudou. Vivemos a ascensão de alguns gêneros em detrimento da queda de popularidade de alguns. De onde tiraram inspiração?

Lirinha: O Cordel ele tem uma estrutura instrumental que define muito o nosso caminho. Um grupo basicamente percussivo, então fomos compondo dentro desse reencontro. Estávamos nos reencontrando em estúdio. Fomos guiados principalmente pela força da banda, foi uma criação muito ligada ao fato de estarmos juntos novamente. Cada integrante trouxe pedaços de coisas que foram feitas nesse período de pausa, especialmente experiências de seus respectivos trabalhos solo. Foi um disco um pouco diferente dos outros, mas foi muito interessante. Gravamos violão de forma acústica, que nem no primeiro disco.

Não buscamos, em nenhum momento da história da banda, um movimento que nos identificasse, em termos de contexto. Quando fizemos O Palhaço do Circo sem Futuro, uma das críticas que saiu sobre a banda nos revelou um viés muito interessante. Publicada na Folha de São Paulo, o texto disse que éramos uma banda “anti-pop”. Não era exatamente um elogio, mas isso sempre me deixou curioso. Naná também falava um pouco sobre isso, sobre a ausência de certos elementos característicos dos sons presentes nos rádios, que são o contrabaixo, a guitarra, os teclados… Eu fui entendendo que o Cordel do Fogo Encantado, como integrante e como fã também do que fazemos, tinha uma musicalidade específica, em que a nossa grande força seria focar nessa diferença e deixa-la existir e comandar o nosso trabalho.

TMDQA!: Eu senti que muitas pessoas, talvez mais jovens, tiveram o primeiro contato com o Cordel através do Viagem. Vocês sentiram isso de certa forma na repercussão do disco, talvez em comentários de fãs em redes sociais ou em críticas especializadas?

Lirinha: Sim! Eu gosto muito dessas novas coisas. A gente, por exemplo, passa muito tempo criando uma sequência para as músicas dentro da história que estamos contando. Aí chega a nova geração e faz a sua própria playlist. Faz a sua própria história e subverte completamente o que pensamos (risos). Pegam quatro ou cinco canções que chamaram mais a atenção, e terminam fazendo uma história original de cada um. Eu vejo que algumas músicas do disco novo como mais tocadas, e isso para mim é muito instigante. Acho que, para o Fogo Encantado, faz muito sentido isso de desenvolver uma música, uma poesia, no Brasil de 2019. Voltar, por exemplo, para o Circo Voador. É tanta a história que temos, e é interessante contar essas novas histórias para um público cativante. Isso é muito bom!

TMDQA!: Vocês já fizeram história no Circo Voador, uma das casas de shows mais importantes da cultura brasileira. Vocês já apresentaram o álbum para o público dessa casa, e vão voltar no próximo sábado para mais uma apresentação.

Lirinha: O retorno da banda, no Rio, foi exatamente lá!

TMDQA!: Se você pudesse escolher uma palavra para definir o show do Cordel, qual seria? Para os que têm interesse mas nunca tiveram a oportunidade de contemplar uma apresentação da banda.

Lirinha: Acho que não vou conseguir (risos). São muitas as camadas, e não saberia resumir.

TMDQA!: Após este glorioso retorno, vocês já tem planos para o futuro? Já têm planos em gravar o quinto álbum de estúdio?

Lirinha: Sim! Vamos cumprir a atual turnê. Desde que retornamos, ainda não fizemos o Carnaval, por exemplo. Vamos até julho, e depois nos recolheremos, durante não muito tempo. A nossa programação inclui um recolhimento, mas é justamente para a composição de um novo álbum.

TMDQA!: Estamos ansiosos! Já possuem algum material novo finalizado ou algum rascunho?

Lirinha: Grande parte do nosso material é feito na estrada. A banda viajando, ônibus, os momentos em estúdio, passagens de som… Então, como voltamos à ativa por agora, voltamos também com o processo de composição.

TMDQA!: Baseado na experiência de vocês, com quatro de estúdio lançados e vinte anos de estrada, que conselhos você daria para músicos novos, que querem crescer no mundo da música?

Lirinha: Acredito sempre em uma mensagem que seja fundamental a ser dita: o que chamamos de verdade. Fazer da verdade, do coração, o nosso guia na caminhada. Descobrir o caminho do coração. Isto é fundamental. São muitas as escolhas no caminho da música: a questão visual, a questão da mensagem… Um grande conselho que dou é sempre seguir o que entendemos como a nossa verdade.

TMDQA!: Basicamente, é isto! Queria muito agradecer pelo papo. Alguma consideração final?

Lirinha: Eu fiquei mal por não ter te dado a palavra para descrever o nosso show. Talvez a palavra seja “indescritível” (risos). Eu acho que é isso mesmo. Eu não gosto de me achar, de dizer que o show é “foda”, entende? Eu acho difícil de descrever, mas acho que o show do Cordel é um show muito emocionante. Os fãs também apontam uma certa coisa “ritualística”, mas nunca aceitei levar o som da banda para o lado místico. Talvez a melhor palavra seja “indescritível” mesmo!

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