Não é incomum que um artista mude de direcionamento algumas vezes durante a sua carreira. Não é incomum, também, que essa mudança polarize opiniões sobre este — muitas vezes, abrem mão de agradar um público já fidelizado e ganham alguns novos ouvintes. Esse movimento é tradicional, famoso, e muitas vezes até esperado dentro de uma carreira longínqua. O Bon Iver, grupo americano que foi fundado em 2006 pelo vocalista e guitarrista Justin Vernon na pequena cidade de Eau Claire, Wisconsin, nos EUA é um dos melhores exemplos desse movimento natural do cenário musical.
Desde o primeiro disco, o quase-clássico For Emma, Forever Ago lançado em 2007 e que já continha o primeiro (e maior) hit da banda, a canção “Skinny Love”, uma das coisas que mais chama a atenção (e que é importante para o tópico desse texto) é a gravação feita em uma cabine de Justin no meio da floresta — bem antes do conceito de home studio se popularizar tanto como hoje em dia — e de ter sido produzido, mixado e masterizado pelo próprio Justin. Essa independência se manteve durante toda a carreira, inclusive no segundo álbum (Bon Iver, Bon Iver, de 2009), mas foi no terceiro trabalho que isso se mostrou um dos grandes diferenciais dos envolvidos no projeto. 22, a Million, lançado em 2016, levou ao extremo a capacidade de produção e explorou incansavelmente a liberdade que isso proporciona.
Uma das informações mais importantes a serem trazidas aqui é o fato de, no hiato entre o segundo e o terceiro disco (2011–2016), Justin ter convivido e trabalhado muito com o rapper e produtor Kanye West, considerado por muitos um dos maiores gênios da produção moderna. Foram várias colaborações nos discos My Beautiful Dark Twisted Fantasy e Yeezus e as influências desse convívio se traduziram da forma mais bela e irretocável no trabalho do Bon Iver. Além disso, e talvez o mais importante de tudo, foi a parceria com o engenheiro de som Chris Messina que desenvolveu uma espécie de sintetizador combinando hardwares e softwares — o qual foi apropriadamente nomeado The Messina.
É essa grande reunião de fatores que dá ao disco a sensação de resumir a música moderna — quiçá, o próprio mundo moderno. Um trabalho feito em um home studio (ainda que a April Base tenha se tornado um estúdio gigante), majoritariamente conduzido através de um misterioso aparelho que nada mais é do que uma série de coisas já existentes usadas de forma não-convencional, com uma temática lírica que vai do religioso ao nonsense em poucos segundos e com canções que em pequenos intervalos te fazem transitar entre algo intimista, como se Justin estivesse cantando dentro do seu quarto, e uma grandiosidade digna de Kanye West.
O disco é uma sequência incansável de quebras de convenção, como o uso da tecnologia do auto-tune tão comum ao hip hop em um disco de folk, juntamente com momentos reconfortantes em que o padrão é retomado. É essa constante inconstância, essa inquietude e essa busca por algo novo que tornaram o 22, a Million uma obra irreparável.
Além de tudo isso, a integração da obra musical com a obra estética (que vai desde o trabalho gráfico até os próprios títulos das músicas) promove uma quebra de padrão que parece um afago no meio de tanto conteúdo produzido irrestritamente e inconsequentemente. O uso de símbolos específicos para se referir a cada música, além de toda a simbologia usada na própria capa, é facilmente objeto de estudo. O cuidado com cada mínimo detalhe reforça o paradoxo de todo o processo do disco ter sido conduzido de forma caseira mas jamais casual. E, com tudo que o mundo moderno nos oferece atualmente, é indispensável ter esse cuidado para que as facilidades não se tornem dificuldades. Como o próprio Chris Messina diz, a tecnologia que ele desenvolveu é apenas uma plataforma, assim como tantas outras que estão a um clique de distância de qualquer um — é a forma de usá-la, a competência e o talento do compositor que irão definir o que será criado.
Dessa forma, Justin Vernon construiu o que parece ser a obra mais completa da música moderna até o momento. Ao mesmo tempo que encara e abraça todas as tendências, ele lembra e reforça suas raízes constantemente. Dentro de um catálogo artístico atual que parece oferecer cada vez mais obras egocêntricas e mercadológicas, é reconfortante ouvir um disco como o 22, a Million, que dialoga com o ouvinte não apenas pelo conteúdo lírico ou instrumental, mas pela função catártica e pelas conexões que a arte de forma geral há tempos não parecia oferecer tão bem quanto nessa obra-prima.