Por Nathália Pandeló Corrêa
Foto por Beto Assem
Não precisa ir a um show do Bixiga 70 pra entender que a banda cresce ao vivo. Não que ela já não seja grandinha – são 10 integrantes pra dar forma à sonoridade que mescla música brasileira, latina e africana ao jazz. É que tal como uma boa big band, o Bixiga vai além do que aquilo que sintetiza em disco. E agora eles têm o cartão de visitas ideal pra mostrar do que são capazes: o grupo paulistano acaba de lançar “Sessões Selo Sesc #5: Bixiga 70”, um registro ao vivo de um show realizado em janeiro deste ano no Sesc 24 de Maio, em São Paulo.
Gravar ao vivo já faz parte do DNA da banda, que registrou seus primeiros álbuns – I (2011), II (2013) e III (2015) exatamente assim – só que em estúdio e sem público. Já Quebra-Cabeça trouxe a parceria com o produtor Gustavo Lenza, com quem o grupo focou em ampliar as possibilidades sonoras, captando cada instrumento separadamente e lapidando suas camadas na pós-produção. Esse foi o resultado de muitas andanças do Bixiga 70, que embarcou por uma turnê internacional na onda de seu terceiro disco, com o qual se apresentou em palcos como Glastonbury (Reino Unido), SXSW (EUA), North Sea Jazz Festival (Holanda) e Roskilde (Dinamarca) e passando por eventos e festivais renomados na França, Bélgica, Alemanha, Suécia, EUA, Marrocos, Índia, Nova Zelândia e Austrália.
Dá pra dizer que o palco é o habitat natural do Bixiga 70 – até porque a banda surgiu do encontro de músicos que acompanhavam shows de artistas como Anelis Assumpção, Emicida, Rodrigo Campos e outros. A ideia era fundir e dobrar os limites do instrumental brasileiro, latino, africano. Amalgamar, desconstruir e reconstruir.
Agora, a banda tem um registro que resume bem sua potência sonora, formada por Cris Scabello (guitarra), Cuca Ferreira (saxofone barítono e flauta), Daniel Nogueira (saxofone tenor e flauta), Daniel Gralha (trompete), Décio 7 (bateria), Douglas Antunes (trombone), Marcelo Dworecki (baixo), Mauricio Fleury (teclados e guitarra) e Rômulo Nardes (percussão). O Tenho Mais Discos Que Amigos conversou por telefone com o guitarrista Cris Scabello sobre o atual momento do Bixiga 70. Confira:
TMDQA!: O Bixiga tem uma sonzeira nos discos, mas me parece que isso cresce ao vivo – foi a impressão que tive da gravação do show, porque eu particularmente não tive a oportunidade de ver um show de vocês. Por mais que vocês caprichem nos arranjos e tudo mais, tem coisa que só dá pra executar, pra mostrar ao vivo e a cores?
Cris Scabello: Com certeza. A gente é uma banda de show, de baile. Nós já estávamos nos reinventando, o show tem bastante improviso e é algo que acontece assim, só na hora mesmo. Acho que o disco captou bem esse momento que a gente está, de estarmos bem entrosados enquanto banda.
TMDQA!: Vocês estão juntos há quanto tempo mesmo?
Cris: Acho que vai fazer 10 anos… A gente se juntou em 2010.
TMDQA!: É, digamos que já deu tempo de dar uma azeitada!
Cris: Sim! (risos)
TMDQA!: Eu imagino que vocês causem uma boa impressão ao vivo, porque eu assino os podcasts de música da NPR e na época do SXSW eles falaram demais do Bixiga 70! Você acha que a música não ter letra torna ela mais universal, de alguma forma?
Cris: Com certeza, o instrumental não tem a barreira da língua, facilita bastante o nosso trânsito no mercado internacional. A gente já tem uma carreira bem consolidada na Europa e EUA, nas turnês que já fizemos por lá. E a experiência que a música instrumental proporciona, a apresentação, a expressão artística, facilita com certeza a nossa conexão com públicos de fora do Brasil.
TMDQA!: Agora, falando em viajar, pensando na parte prática mesmo… como faz pra viajar com essa banda grande? Eu só consigo imaginar que o equipamento de vocês é gigantesco e que os contratos pra show já preveem compensação por excesso de bagagem!
Cris: Ainda mais agora, com a mudança nas regras pra bagagens, vai ser complicado (risos). Mas a gente é um elefante na estrada, é sempre uma gangue andando na rua, por onde passa, causa. É muita gente, bastante bagagem, mas a gente se vira e preza bastante por usar os nosso equipamentos sempre que possível pra garantir a qualidade do som mesmo, do que queremos apresentar ao público. Mas é importante dizer que temos uma equipe muito boa, a produção da Marcia Godoy, roadies, engenheiros de som, técnicos… Tudo isso facilita pra que a gente consiga fazer o que fazemos na hora do play.
TMDQA!: Eu lembro que quando vocês surgiram com o primeiro disco, foi algo diferente porque houve um crossover pra mídia mainstream de música, “apesar” – entre aspas mesmo – de serem uma banda instrumental. Claro que o Brasil sempre teve excelentes grupos instrumentais, mas parece que vocês ajudaram a escancarar as portas pra um ressurgimento do instrumental ser viável comercialmente de novo. Estão esgotando shows, tocam na Europa, EUA, esse ano a gente teve a primeira banda instrumental tocando no Lollapalooza Brasil, que foi E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante.
Cris: Curioso que no SXSW, tenho a impressão que a gente foi a única banda de instrumental do festival inteiro… Pelo menos quando a gente buscava pelo aplicativo as atrações, dentro da categoria instrumental, só tinha o Bixiga. É algo que vale checar, mas achei surpreendente. [Na verdade, a programação tinha vários outros grupos instrumentais – a checagem foi feita após a entrevista] Mas qual era sua pergunta mesmo?
TMDQA!: Bom, o Brasil já teve grandes grupos instrumentais, de choro, de jazz. Eu queria saber se você sente que a gente tá vivendo uma nova fase do instrumental brasileiro e o que você acha que vai diferenciar esse ciclo dos demais?
Cris: O tempo dirá. A gente fez parte no começo de um grande inconsciente coletivo que tava rolando, dos músicos se juntando pra fazer música instrumental, independente, alternativa. A gente fez parte de um comboio todo maior, e certamente também abriu bastante porta. Nós reconhecemos esse lugar, que talvez tenhamos sido instrumentais nesse cenário, mas sem defender nenhum pioneirismo. A gente vive num período que a música e a cultura estão correndo sérios riscos, por diversas questões. É um tempo de guerrilha, de fortalecimento de redes, de troca. A gente tem feito muito show com bandas parceiras, é importante buscar mais formas autênticas, criativas, autorais de música e acho que estamos caminhando pra esse lado, de entender melhor quem nós somos e o que podemos oferecer.
TMDQA!: Vocês sempre falaram que são mais uma banda de palco do que de estúdio. Eu acho que o Quebra-Cabeça foi gravado assim, vocês tocando juntos. Ou estou enganada?
Cris: Na verdade, foi o contrário. Os primeiros nós gravamos ao vivo em estúdio, e o último foi diferente, destrinchando tudo. Trabalhamos com um produtor, o Gustavo Lenza, que trabalha com Céu, Nação, etc. E fomos usando mais overdubs e tudo mais.
TMDQA!: Ah sim, me confundi então! Mesmo assim, já tendo essa experiência, de gravar o disco ao vivo em estúdio, vocês se sentiram mais à vontade pra gravar um show a veras? Foi uma progressão natural pra vocês?
Cris: Não sei… Por incrível que pareça, a gente nunca tinha pensado em gravar um disco de show ao vivo. Sempre gravamos ao vivo em estúdio, mas quando rolou a proposta do selo Sesc, a gente achou que seria uma boa oportunidade. Porque também sentimos a diferença da nossa apresentação ao vivo e o que a gente registra em estúdio.
TMDQA!: Mas isso é natural, não? O show ter mais impacto, não ser igual ao disco…
Cris: Sim, mas o pessoal às vezes vem falar com a gente após os shows, até em certo tom de reclamação, “ah, o disco não chega onde vocês chegam ao vivo” (risos). Mas é aquela coisa: treino é treino, jogo é jogo. Em estúdio você tem uma série de recursos pra fazer uma produção mais bem acabada, e no ao vivo tá a veras. No fim das contas, a gente acha que ficou um registro bem legal do que somos ao vivo.
TMDQA!: Vocês estão lançando esse disco pelo selo Sesc, e a gente vive numa era em que o Sistema S tá na mira dos cortes orçamentários e ideológicos que acontecem hoje no Brasil. Vocês são uma banda que lota todos os Sescs onde passam e agora têm a oportunidade de lançar o primeiro registro ao vivo. Como você vê esse panorama de agora pra frente? Quais são os desafios e as possibilidades de não deixar morrer esse momento rico da música brasileira que a gente tá vivendo agora?
Cris: Putz, são tempos difíceis, antes de mais nada. Em tempos como esse, a gente tem que achar formas alternativas, autênticas, independentes, sólidas, coletivas. Tem que olhar por esse lado, e lutar pela garantia mínima de direitos, do que é feito com o nosso imposto, com relação a todos os cortes, a tudo que tá acontecendo por aí e deixando essa situação preocupante, pra dizer o mínimo.
TMDQA!: Vocês têm uma visão bem pop da música, no sentido de não seguirem uma linha específica, de remixarem influências de todo canto, de fazerem algo dançante. Mas o instrumental é visto muitas vezes como algo elitista, complexo. Você acha que o caminho pra desmistificar isso e tornar mais acessível para o público geral passa por ocupar esses espaços – da música brasileira, da música negra americana – onde haveria tradicionalmente um vocal?
Cris: Pode ser visto dessa maneira sim. O Bixiga não é uma banda de músicos extremamente virtuosos, não é o caminho que a gente segue. Somos o pique de banda, de tocar, de groovar, de fazer um som com os amigos. Naturalmente, a gente caminhou nesse sentido, não foi algo pensado. Sempre tocamos de forma menos virtuosa, numa linguagem mais pop como você colocou, pra ser mais acessível, agregar mais público. E talvez um caminho seja esse mesmo, de entrar nos espaços onde tem menos música instrumental.