"Eu sinto muita raiva": Falamos com Rodrigo Lima (Dead Fish) sobre o disco "Ponto Cego"

Conversamos com Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish, sobre o novo álbum da banda, o pesado "Ponto Cego", e a sua necessidade diante do Brasil de 2019.

Dead Fish
Foto: Marcelo Marafante

Lembra de quando falamos no nosso podcast sobre o comportamento da cena musical em relação aos recentes acontecimentos político-sociais do Brasil? Dissemos que ela viria com força este ano, e está cumprindo a palavra.

Com críticas direcionadas, mensagens de proatividade e discurso de resistência, já tivemos vários artistas e bandas mostrando seus posicionamentos este ano. Só nesses cinco primeiros meses, tivemos lançamentos de nomes como BaianaSystem, Djonga, Francisco, el Hombre e mais. Todos com discursos ótimos de reivindicações sociais e afirmações de existência.

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Mas podemos assegurar a vocês que nenhum é tão direto quanto Ponto Cego, novo álbum do Dead Fish. Entre os versos afiados e raivosos que sempre foram característica da banda, fica claro o combustível de tanta raiva: a situação política e social do país.

 

“Eu sinto muita raiva de tudo que a gente viveu nos últimos 3, 4 anos”

A respeito do novo álbum, conversamos com Rodrigo Lima, o vocalista da banda. Os assuntos variaram desde a volta para a gravadora Deck até o polêmico vizinho de Rodrigo, passando por toda uma análise da atual situação do Brasil.

Confira abaixo.

TMDQA!: Ponto Cego marca a volta da banda para a Deck, após Vitória ter sido lançado como um disco independente. O que levou vocês a voltarem para a gravadora?

Rodrigo Lima: Cara, o Rick [Mastria, guitarrista] e o Marco Antônio [Melloni, baterista] nunca tinham tido a experiência de imergir uma gravação, de entrar em um estúdio e viver isso 24 horas por dia. Quando a gente fez o Vitória [2015], a gente tinha grana e tudo, mas estava todo mundo em locais fixos, com emprego regulado. Eles queriam ter essa experiência. A gente não tinha grana e muito menos vontade de voltar. O Alyand ainda estava na banda quando falou “Bicho, a Deck está sempre oferecendo alguma coisa boa pra gente”, e aí eles entraram nessa pira. Eu falei “Nem fodendo, já passei dessa fase”, só que os valores para a gente gravar um disco do jeito que a gente queria eram muito altos, exorbitantes.

No meio da história toda, o Alyand saiu da banda e eu fui conversar com o Rafael Ramos para ver aquele contrato que eles mandam. O contrato não era dos mais feios, porque eles nos deram garantias muito boas. O Rafael fez um trampo de produção que eu não trocaria para esse disco. Fora que, no final, ele nos ouviu de forma bonita e categórica, e deu uma coisa muito boa para o disco. No final das contas, eu perdi, muito a contragosto e sofrendo uma pressão monstra, mas, sinceramente, não me arrependo. Acho que o trampo de produção para o álbum foi muito bom.

TMDQA!: “Sangue Nas Mãos”, o single lançado como prévia do álbum, está incrível! A mix deixou a voz lá em cima, começa falando “Sim, foi golpe!”. Não tem como desviar do assunto. Como foi a construção disso tudo?

Rodrigo: O começo da construção do verbo do álbum foi eu e o Alvaro Dutra (Protons, Pulso). A gente veio conversando sobre a estrutura, sobre como poderíamos contar uma história. Queríamos fazer um disco que fosse, para nós, muito importante. Eu sinto muita raiva, sabe? Eu sinto muita raiva de tudo que a gente viveu nos últimos 3, 4 anos, e não queria passar essa raiva de uma forma “motherfucker”, de xingar o tempo inteiro. Eu queria dar uma certa lapidada, uma certa classe para falar no disco. E aí ficamos discutindo o que e como iríamos falar. A gente tentou até fazer todas as músicas sem sujeito. Não sei se você percebeu, mas acho que até o meio do disco são letras com músicas sem sujeito. Isso foi intencional. Depois, mais para o meio do disco, a gente se permitiu voltar para a primeira e a terceira pessoa.

Eu lembro que da primeira vez que a gente sentou para conversar, aqui em um café perto de casa, a gente decidiu falar sobre o sentimento em uma bolha, em uma micro realidade sobre o macro. E aí a gente olhou em volta e escreveu um bando de coisa em um caderno. Ele desenhou um prédio com várias janelas e chegou à conclusão de que falaríamos de realidades em pedaços, mas que se conectam. As realidades do condomínio para dentro, as micro realidades do cidadão médio brasileiro. O Ponto Cego não tem esse nome à toa. A gente, pessoalmente, tem certeza de que trata-se de uma cegueira, misturada com elitismo. Não sei se as pessoas vão conseguir perceber isso, mas as músicas são conectadas. São pedaços de uma estrutura.

TMDQA!: O álbum tem a proposta de registrar um fragmento da história que vem sendo negado e apagado pelos novos narradores. É muito importante que alguém faça isso. 2019 não está sendo um ano fácil. Muito artista por aí vem fazendo críticas ao que está acontecendo, em termos sociais e políticos.

Rodrigo: Hoje me perguntaram: “você não preferia ter pegado mais leve para tentar agregar mais fãs?”. Eu falei que não. Eu preciso fazer um quadro, um desenho da realidade. Não é porque eu sou uma pessoa que tem um posicionamento mais progressista, mais inteligente, mais abrangente, mais bonito e mais ético que eu tenho que me submeter a uma nova narrativa, sabe? A essa coisa fantasiosa de que a eleição foi alguma coisa limpa. Eu estou te mostrando uma foto, uma pintura. Você vê e diz se gosta ou não. E se não quiser falar, não tem problema.

Eu não sei o que é pegar leve, porque todo mundo pode ser fascista, desgraçado, idiota, racista e eu não posso ter a minha postura política, ética, bonita, progressista, abrangente. Como assim? Eles que não pegam leve (risos).

TMDQA: Senti em Ponto Cego os mais diretos tipos de mensagem, sem poupar palavras. Diferentemente da maioria dos lançamentos que estamos vendo por aí, como vocês decidiram ir pelo caminho de jogar na cara ao invés de deixar nas entrelinhas?

Rodrigo: É a urgência do momento. A gente precisa falar sobre isso. Você quer respaldar a sua verdade de classe, um discurso elitista? Me fala! Seja honesto. Se você é neofascista, neodireitista, neoliberal, neoisso, neoaquilo, você não aceita que todos precisam ter direitos dentro de uma democracia. Você usa a palavra “meritocracia” como algo elitista, não como algo democrático, entendeu? E por aí vai! Essa é a intenção. Não há nenhum motivo para a gente fazer subjetividade em uma situação como essa. É preciso pontuar e dizer o óbvio. As pessoas não querem ouvir o óbvio. Elas estão interessadas em respaldar as verdades dos grupinhos de WhatsApp.

TMDQA!: O disco é uma mensagem direta a um determinado tipo de brasileiro. Como o Marcão disse em um dos teasers, é um disco “pra incomodar”. Em um vídeo divulgado pela banda, vocês até deixaram isso bem claro, que é uma mensagem para o brasileiro médio, branco, de condomínio. O mesmo pensamento condiz com o pensamento de muita gente, mas como vocês pretendem que essa mensagem atinja aqueles que vocês criticam?

Rodrigo: Na hora do teaser, eu falei que não quero dar nome aos bois até porque eu quero que muitas outras pessoas vistam essa carapuça. Daí o motivo de fazermos músicas sem sujeito. Quem vestir a carapuça, é porque está se sentindo incomodado e atingido. No final das contas, no entanto, sendo bem claro, o primeiro fiador do golpe não foram as elites bilionárias. Foi a classe média que deu essa corda. A classe média que se acha branca, que se acha rica, que se acha elitista, que se acha especial, ela foi a maior fiadora de toda essa cagada. Não só no Brasil, mas no mundo! Eu achei um pouco exagerado do Daniel Ferro [videomaker] ter editado eu dando nome ao meu vizinho fascista que xingava “Fora, nordestino” e “Dilma piranha”, mas eu precisava ter citado ele. Mas no final das contas é bastante identificável, se você escutar o disco.

Eu soube que existe agora uma mobilização nas redes sociais para boicotar o Dead Fish. Eu acho ótimo! É por aí mesmo: se você é desse jeito, provavelmente não queremos você perto da gente (risos). Se você quiser mudar de ideia, conversar a respeito, estamos aqui. Mas se você quiser manter esse discursinho e essa atitude, mantenha-se longe mim, cara. Foda-se.

Foto: Marcelo Marafante

Mas eu sinto que muita gente está se ligando agora que comprou a roupa errada. Esse discurso mais direto pode ajudar a galera a abrir os olhos e discutir sobre. Se a gente quiser dialogar, que as coisas estejam na mesa, que todos os fatos estejam expostos.

TMDQA!: A composição do disco não foi algo corrido, levando uns dois anos. É interessante e até bizarro ver o quão atual é o disco considerando as intensas movimentações políticas que tivemos nesse curto período de tempo. Você chegou a comentar que esses próximos 4 anos que viveremos no Brasil serão “uma bosta”. Os eventos mais recentes influenciaram mais vocês do que o que é chamado de golpe de 2016? Vocês alteraram alguma letra nesse tempo?

Rodrigo: A gente estava no meio da escrita quando o Bozo e o seu partido de neonazistas foi eleito. E isso influenciou diretamente. A gente não chegou a precisar mudar nada. A gente foi construindo a coisa, e acabou que desaguou nisso. Foi tragicamente natural. Foi o rumo do álbum também. Mesmo que ele não tivesse ganho, a gente continuaria com esse posicionamento. Isso tudo vem de antes da eleição dele, vem de anos antes. O Bolsonaro é uma gota de bosta na sopa de cocô, entendeu? A gente queria narrar o que veio antes também, e aí aconteceu o pior. Continuamos a nossa narrativa.

TMDQA!: O termo “Ponto Cego” não é o nome de alguma faixa específica do álbum, mas aparece em todas as músicas nos mais diferentes contextos. É quase um easter egg, só que mais explícito. De onde surgiu essa proposta, e essa metáfora tão importante para o álbum?

Rodrigo: Foi muito intencional. Quando eu vim com a ideia para o Alvaro, ele achou genial. Tínhamos o conceito e tudo mais fechado, mas a gente dificultava tudo sempre. Ele falava para escrevermos músicas sem sujeito, aí a gente se matava para escrever músicas sem sujeito para não apontar o dedo, mas no meio a gente deu uma desencanada, até porque o Rick falou “Vamos fazer fluir. Já temos a estrutura. Vambora”. Aí rolou.

TMDQA!: É o primeiro disco da banda em quase quatro anos. Algum artista ou movimento recente da música influenciou vocês ou contribuiu de alguma forma com a composição do álbum?

Rodrigo: Artista em específico, não. Talvez alguma coisa da nossa estética do punk. Lembramos de nossos heróis do passado, como o Ratos de Porão e o Cólera, que viveram a ditadura militar. Lemos um pouco e fizemos a música bônus “O Outro do Outro”. A gente discutiu a Doutrina do Choque, da Naomi Klein. A gente discutiu pós-verdade. A gente discutiu esse racismo arraigado que temos, sim, no Brasil e que não era tão escancarado mas que agora é muito mais. A gente lembrou dos nossos pares da música brasileira, que também nos levou a produzir: filósofos, sociólogos… E a própria realidade, a própria distopia que a gente vive: treta com o velhinho na padaria, a confusão que rola no Facebook… A gente está inserido nisso tudo, e nos influenciou bastante.

TMDQA!: São 28 anos de Dead Fish, com uma histórico de músicas incríveis e shows lotados com muitas rodinhas. Inclusive este ano o épico Zero e Um completa 15 anos. Como você enxerga o desenvolvimento e o amadurecimento do grupo nesse tempo, após o lançamento de vários discos (8) e mudanças na formação?

Rodrigo: É muita história para tentar te explicar em pouco tempo. O que eu posso te falar é que, do que eu escrevi com 20 e poucos anos, muito faz sentido para mim e outras coisas coisas, não. A gente estar, na maior parte do tempo das nossas vidas, envolvido com uma banda, faz muita diferença hoje. Porque sabemos tudo de muitas coisas: como é ser independente, como é ser do mainstream… O Dead Fish provavelmente é a banda que mais errou em toda a sua carreira. É a banda que mais errou no mundo, mas também é a banda que, quando tenta acertar, acerta! Acho que o tempo nos trouxe certa segurança e firmeza. Se eu tivesse que fazer um disco como o Ponto Cego com 20 e poucos anos, talvez eu ficasse muito mais inseguro. A experiência nos ajudou muito.

TMDQA!: Dá para perceber isso. Aliás, o Ponto Cego é a entrega de um álbum muito maduro e forte, com indícios de vontade e de garra na composição.

Rodrigo: Você que está dizendo isso. Eu não tinha parado para pensar (risos). Mas que bom que você acha isso tudo.

TMDQA!: Que dica você quer dar para os futuros ouvintes do Ponto Cego?

Rodrigo: Escutem pensando em como você está inserido no contexto político-social. E um pedido especial para os millennials: ouçam o álbum inteiro! Tentem fazer a conexão de uma coisa com outra. Eu sei que, hoje, isso é pedir muito para uma galera que não tem dois minutos para fazer nada. Mas, se for para ouvir o álbum novo do Dead Fish, que ouça inteiro. Depois falem o que quiserem.

TMDQA!: O que espera dos futuros shows da turnê?

Rodrigo: Espero o que eu sempre esperei a minha vida inteira: conhecer lugares novos, tocar em festivais legais dos quais eu possa me orgulhar, conhecer mais gente interessada em música e arte, e continuar vivendo da minha banda. Basicamente isso.

TMDQA!: É isso! Parabéns pelo álbum! Alguma contribuição final?

Rodrigo: Queria agradecer ao Tenho Mais Discos Que Amigos! pela oportunidade. Sempre acompanhei vocês. Obrigado!

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