Crônicas dos dias atuais: conversamos com As Bahias e a Cozinha Mineira sobre o novo álbum "Tarântula"

Raquel Virginia e Rafael Acerbi conversaram conosco sobre os conceitos do novo álbum, cujo título foi inspirado em uma covarde operação policial em SP.

As Bahias e a Cozinha Mineira
Foto: Pedro Dimitrow

No último dia 31 o grupo As Bahias e a Cozinha Mineira lançou seu terceiro álbum de estúdio. Intitulado Tarântula, o disco continua desenvolvendo a antropofágica trajetória musical evidenciada nos álbuns antecessores, Mulher (de 2015) e Bixa (de 2017).

Recheado de pautas sociais, o disco traz à tona temáticas como a importância do afeto e a polarização política que vivemos hoje. O título dado ao álbum remete à Operação Tarântula, uma ação policial que perseguiu travestis em São Paulo com a desculpa de prevenir a disseminação do vírus HIV. No ótimo trabalho, o músico apresenta canções que são, ao mesmo tempo, dançantes e reflexivas.

É o primeiro disco da banda por uma grande gravadora, a Universal Music Brasil. Enquanto isso, a produção é assinada por nomes como Guilherme Kastrup, Haroldo Tzirulnik, Márcio Arantes e Marcelinho Ferraz. Já em termos instrumentais, a gravação foi feita em parceria com outros músicos que não os integrantes da Cozinha Mineira. Isso permitiu ainda mais experimentações ao trio formado por Raquel Virginia, Assucena Assucena e Rafael Acerbi.

Junto ao lançamento do álbum, foram lançadas clipes para as faixas “Volta” (composição de Rafael), “A Carne Dos Meus Versos” e “Shazam Shazam Boom” (ambas de Raquel). Todos têm direção de Rafael Carvalho, que também dirigiu o clipe de “Das Estrelas”, lançado este ano.

 

“A gente conseguiu viver degrau por degrau na construção de uma carreira”

Tivemos a oportunidade de conversar com Raquel e Rafael sobre o novo álbum. No papo, abordamos questões referentes a amadurecimento, processos de composição e detalhes sobre as músicas.

Confira abaixo a entrevista, tal como os novíssimos videoclipes:

As Bahias e a Cozinha Mineira
Raquel Virginia, Rafael Acerbi e Assucena Assucena. Foto: Pedro Dimitrow

TMDQA!: Primeiramente, muito obrigado pelo tempo e atenção de vocês! Tarântula é o primeiro álbum d’As Bahias por uma grande gravadora, a Universal Music. O que sentiram de diferente em relação à produção independente?

Rafael Acerbi: Para nós, mudou toda a estrutura. Ser independente é fazer tudo do jeito que você pensa, mas não necessariamente você está em condições ideais de produção. Agora, com a Universal, a gente chegou em um espaço que é um sonho, cada um com sua expertise dentro dessa linha de produção. Foi um momento de muita realização. Estamos super ansiosos porque, mesmo tendo lançado dois álbuns, a gravação desse terceiro parece uma experiência inédita, sabe? Foi tudo diferente.

Raquel Virginia: A gente sempre esteve com ótimos profissionais, e agora estamos com um time muito empenhado em fazer dar certo e que o disco saia bom. A divulgação também está sendo muito bem pensada. Há maior investimento para que a veiculação seja bacana… É muito bom para nós estar com a gravadora e ter a possibilidade de, muito possivelmente, ter músicas na rádio e etc. Acaba nos levando a um grande público.

TMDQA!: Considerando a estética musical, o álbum flerta com várias camadas da MPB: bossa nova, pop, rock, além da influência de sonoridades nordestinas. Tem as mais reflexivas e tem as mais dançantes. Quais foram as principais influências de vocês para esse novo álbum, ou para a sonoridade do grupo como um todo?

Rafael: A gente tem uma característica que esteve presente também nos nossos dois primeiros discos: essa questão antropofágica, de não querer se limitar a um estilo e gravar as músicas que temos o desejo de gravar. Para esse disco, tivemos três produtores, e não gravamos com os integrantes da banda Cozinha Mineira. Demos carta branca para os produtores. Então, acabamos explorando novas sonoridades com a galera que gravou junto a nós.

Nós continuamos ouvindo Gal Costa, Milton [Nascimento] e essa turma toda, mas também escutamos muita música gringa para este álbum. Ouvimos sempre Michael Jackson, Prince… Por isso o disco vai um pouco para o pop e para o samba também. Foi o que você disse: a gente dá um passeio que é uma característica da banda, eu acho.

Rafael Acerbi (As Bahias e a Cozinha Mineira)
Foto: Pedro Dimitrow

TMDQA!: No início do ano, fomos presenteados com a primeira prévia do disco, a ótima e cheia de blues “Das Estrelas”, que foi lançada um dia antes do Dia da Visibilidade Trans. Por que escolheram justamente essa para dar um gostinho do que estava por vir?

Raquel: Ah, eu acho que é porque, naquele momento, como a gente ainda ia lançar o álbum mais pra frente, lançar “Das Estrelas” era a representação de uma sonoridade que As Bahias já haviam fazendo. Ela meio que é a transição entre o Bixa e o Tarântula. Mas não foi algo muito pensado. É uma música linda. A gravação não exigiu que fizéssemos grandes movimentos de produção. A gente achou que era um caminho bacana.

TMDQA!: Todos os três possuem composições no álbum. Rafael compôs “Volta” enquanto a Assucena compôs 4 e Raquel, 5. Como funcionou o processo em relação a vocês como um trio? Houve alguma divisão? Houve descarte de alguma faixa que acabou tendo que ficar de fora?

Rafael: No fim da turnê do Bixa, a gente já tinha algumas composições. Agrupamos elas para pensar o que faríamos no próximo trabalho. Tínhamos inicialmente a ideia de fazer um EP chamado Tarântula. Mas após conversas com a gravadora, surgiu de fato a questão de fazermos um disco. Então a gente acabou fazendo essa seleção, já que tínhamos umas quarenta músicas. Através do significado de Tarântula, que é a operação policial de mesmo nome, a gente foi procurando novos conceitos e significados, para ilustrar melhor o que essa palavra significa para nós. As músicas do álbum foram estabelecendo conexões entre si. Foi tudo de uma forma natural.

Além disso, é a primeira vez que ponho no nosso álbum uma canção em que eu canto [“Volta“]. Fico super emocionado. A gente tem falado muito a palavra “lapidação”, e em como As Bahias e a Cozinha Mineira é um produto no qual a gente tem investido muito, no sentido da lapidação e agora, com essa estrutura da gravadora, a gente conta com um time de pessoas para nos ajudar a fazer essas decisões. Tem sido muito interessante e o processo todo foi muito gostoso.

TMDQA!: Vamos falar agora sobre conteúdo. O álbum já começa com “a mátria que te pariu”, claramente uma afronta à sociedade machista em que vivemos. É sinal de que vem coisa boa por aí, e a gente confirma isso no decorrer do álbum. Vocês falam também sobre a questão da mídia (“Pipoco e Pipoca”), sobre a importância da empatia com o próximo (em “Das Estrelas”) e sobre a polarização política do nosso país (em “Chute de Direita”). Como foi misturar tantos temas importantes em um álbum, por assim dizer, importante?

Raquel: Eu acho que a gente conseguiu fazer uma síntese. Eu insisto na ideia de que nos comportamos como cronistas, analisando situações que a gente vive. O disco é uma síntese de reflexões que a gente vem abordando e que a gente discute entre nós e entre amigos. É o extrato artístico de tudo que temos sentido enquanto artistas nessas primeiras décadas do século XXI.

Raquel Virginia (As Bahias e a Cozinha Mineira)
Foto: Pedro Dimitrow

TMDQA!: Em “Fuça de um Fuzil”, vocês levantam um questionamento muito relevante sobre a história da música brasileira: a questão da bossa nova ter ganhado fama sendo um gênero musical completamente voltado às elites. Acho que a Raquel chegou a comentar no release que a canção ironiza o clássico “Águas de Março”. Apresentam uma outra bossa, a dos que não são elite. Como vocês veem essa situação nos dias de hoje, em que a produção musical é mais facilitada e um artista pequeno consegue colocar sua obra à disposição de milhões de pessoas? Acham que a nossa sociedade ainda dá preferência para o que é elitizado?

Raquel: Acho que estamos vivendo um momento de democracia na música. Inclusive, As Bahias e a Cozinha Mineira simboliza isso. Acho que a banda larga, a internet, as pessoas descobrindo como se autoproduzir e passando esses conhecimentos adiante, tudo isso contribui para que mais pessoas produzam suas artes e consigam, a partir disso, construir seus públicos. Mas acho que a gente ainda carece da evolução disso. Ainda temos um longo caminho a percorrer para que as artes no Brasil sejam mais democráticas.

TMDQA!: Vocês vão lançar clipes também para “Volta”, “Carne dos Meus Versos” e “Shazam Shazam Boom”, tudo no mesmo dia. Vocês lançaram também um clipe lindo para “Das Estrelas”. Como enxergam a importância da imagem para a produção musical de hoje em dia?

Rafael: Eu acho que, hoje em dia, uma grande dificuldade para o artista é conseguir dar sobrevida ao seu álbum. Dentro das possibilidades do mundo moderno, do streaming, o ouvinte tem a facilidade de escolher o que ele quer ouvir. Acho que o videoclipe é um dos produtos onde a gente consegue trazer significados mais contundentes para a música, em meio a uma sociedade imagética. Hoje em dia, você percebe que os álbuns são muito efêmeros. A cultura de se escutar um álbum por completo é uma coisa que o mercado tem demonstrado que não tem mais tanta regra. Tem artistas que lançam single, artistas que lançam EP… Lançar um álbum por completo é uma coisa que a gente tem visto que é cada vez mais raro, porque é difícil um álbum ter sobrevida. A gente sentiu essa necessidade de gravar três conteúdos audiovisuais. Para nós, é uma grande realização entender que o lançamento desse álbum se completa com os vídeos. Acho ótimo que consigamos fazer tudo isso nesse momento.

TMDQA!: A faixa “Tóxico Romance” conta com a participação do Projota. Com que outros artistas vocês já se imaginaram fazendo uma parceria?

Raquel: Ah, eu acho que hoje eu escolheria o Projota mesmo (risos). Acho que ele foi muito assertivo na participação e, como estou muito na vibe do disco, eu não sei se consigo imaginar agora. Porque eu não sou muito de pensar em alguém para participar de tal música. Eu sou de pensar que eu tenho uma música que tem a cara de determinado artista. Foi assim com o Projota. Tanto que Mulher e Bixa não têm participação porque não vimos a necessidade de participação. Em “Tóxico Romance”, achamos que precisávamos de alguém como o Projota, nessa pegada de um rap com uma veia mais popular e mais sedutora que ele tem. Ele é um dos maiores hitmakers do rap brasileiro. Mas eu me imagino colaborando com Ludmilla, IZA, Ivete Sangalo, Elza, Gal Costa, Criolo… Tem muitos nomes incríveis na música brasileira (risos)!

TMDQA!: Esse é o terceiro álbum de estúdio d’As Bahias. O grupo existe desde a metade inicial da década. Como vocês encaram essa passagem do tempo, em termos de amadurecimento, vivência e popularidade?

Rafael: Eu acho que a gente conseguiu viver degrau por degrau na construção de uma carreira. A gente não é uma banda que é um fenômeno, um estouro, um sucesso absolutamente gigante de público. A gente viveu desde o underground até as gravadoras, passando pelo momento de ser independente e o de ter um próprio escritório independente. Então, eu sinto que a gente tem construído um espaço de maturidade a cada ano que passa para consolidarmos a nossa obra.

Gravar um disco hoje é, como você disse antes, um processo mais democrático, mais possível. No entanto, fazer a manutenção de uma carreira é algo mais complexo, ainda mais em um momento de crise de cultura. É importante manter esse trabalho e levá-lo para frente. A gente faz mil balanços a respeito disso. Para chegarmos onde estamos na Universal, foram debates enormes para entendermos de fato a significância disso a cada momento.

TMDQA!: Que conselho ou dica vocês dariam para os ouvintes do álbum? Algo para eles mentalizarem enquanto ouvem ou para refletirem sobre.

Raquel: Eu falaria para eles pensarem, enquanto ouvem, na travesti (risos). Acho que é isso: pense no Brasil, pense na violência, em quantas pessoas querem ser amadas e não conseguem ter acesso a esse amor.

Rafael: Como a Raquel falou, eu acho que a palavra “cronista” é muito cabível, porque é, de fato, uma leitura sobre afeto, sobre tempo, sobre genocídio e sobre as contradições desse país que a gente vive hoje em dia. É um disco que vai provocar uma reflexão diferente sobre o século XXI a cada música. A nossa mensagem, como banda, é a da posteridade da coexistência, o entendimento dos limites e das liberdades, do afeto… Eu acho que o disco está indo por este lugar.

TMDQA!: Muito obrigado pelo tempo de vocês e parabéns pelo álbum.

Rafael: Muito obrigado!

Raquel: Muito obrigada! Foi um prazer.

Capa de "Tarântula" (As Bahias e a Cozinha Mineira)
Foto: Divulgação