Entrevistas

Coruja BC1 conversou conosco sobre o tema da saúde mental em seu novo álbum, "Psicodelic"

"As pessoas não conversam sobre aflições, sobre traumas. É esse o problema", ressalta Coruja BC1 ao se mostrar preocupado com a saúde mental das próximas gerações.

Coruja BC1
Foto: Pedro Gomes

Nunca é demais ressaltar a importância da saúde mental. O assunto tem se tornado tema recorrente de discussões nos últimos anos. Aliás, perdemos recentemente grandes nomes da música por conta de problemas de tal natureza: Chester Bennington, Chris Cornell, Avicii

Um estudo confirmou que a avassaladora maioria dos músicos tem problemas de saúde mental. No entanto, iniciativas têm sido tomadas para alertar a importância da saúde da mente, e a necessidade de procurar ajuda quando necessário. A banda Detonautas, por exemplo, lançou uma música para chamar atenção a respeito do alarmante número de suicídios. Mike Shinoda protagonizou uma campanha de prevenção a esses problemas.

O rapper Coruja BC1, de Osasco, usou a saúde mental como um dos temas centrais de Psicodelic, seu terceiro álbum de estúdio. Trata-se de um dos nomes de maior destaque da atual cena do hip hop nacional, e o disco tem dado o que falar.

 

A saúde mental do jovem da periferia

Além de se responsabilizar pela produção executiva e pela composição das faixas, Gustavo Vinicius Gomes de Sousa (nome de nascença do músico) pôs detalhes de sua vida pessoal e de sua vivência como jovem negro de periferia no álbum. A saúde mental, por mais importante que seja, muitas vezes acaba sendo deixada de lado nessas situações, onde é preciso lidar diariamente com a violência urbana e diversos outros problemas sociais.

A sinceridade em Psicodelic, lançado no dia 23 de Maio, se imprime em beats pesados, letras reflexivas e em toda uma questão visual. O eu-lírico é o próprio Coruja, que vai de versos como “Ainda criança vi o que o sistema reservou pros pretos” até uma conversa com sua psicóloga, onde releva seu aprendizado sobre a desigualdade que assola o mundo.

 

“Talvez a palavra seja ‘esperança'”

Coruja BC1 nos concedeu uma entrevista onde falou sobre os processos de criação do disco. Ele nos falou também sobre a dura realidade da periferia e sobre suas ambições enquanto artista.

Confira abaixo o papo:

Capa de "Psicodelic" (Coruja BC1)
Foto: Pedro Gomes

TMDQA!: O disco começa com a palavra “respira”, uma mensagem pedindo calma e paciência. A partir dali, temos um discurso importantíssimo sobre saúde mental, que se desenvolve ainda mais nas faixas seguintes. Eu queria saber um pouco sobre o processo de composição do álbum. De onde tirou inspiração para a composição do álbum e das letras?

Coruja BC1: Eu percebi que, nesses novos tempos de agora, a maior doença do século XXI talvez seja a ansiedade, a depressão. Eu comecei a olhar para as pessoas e para tudo em minha volta, e percebi que, muitas vezes, estamos tentando viver uma realidade paralela. O mundo digital conectou a gente de uma certa forma, mas desconectou a gente da verdadeira realidade. Eu comecei a perceber que, no último ano, aumentou 2,3% o número de casos de suicídio no Brasil e que a cada 46 minutos uma pessoa tira a própria vida aqui. Para nós, homens pretos da periferia que já nascemos dentro da violência urbana, não existe esse cuidado com a nossa mente. Não tratamos desses traumas. Revisitando alguns momentos traumáticos que eu tive, eu resolvi falar sobre saúde mental e sobre como ela nos afeta diariamente. Concluí que esse deveria ser o tema central do disco.

TMDQA!: Saúde mental é super importante. Nos últimos anos, perdemos vários artistas por conta de problemas dessa natureza. É uma situação complicada, e o seu álbum acaba sendo muito importante por conta de tudo que ele carrega consigo. Como você enxerga essa responsabilidade de discutir sobre esse tema com seus fãs ao se abrir e falar sobre sua experiência própria?

Coruja: Eu acho que a gente vive um tempo muito estranho e sombrio. É o tempo da narrativa da mentira, essa narrativa oportunista que aproveita a desinformação da grande massa para distorcer a história. Quando a gente começa a trabalhar a saúde mental como tema central, mas fala também sobre o que nos afeta nesse sentido que é a violência urbana, o fascismo e outros problemas, a gente tem uma responsabilidade maior. Eu me vejo como alguém que tem que ter uma paciência maior para fazer isso. Meu processo é construído de uma forma mais sólida, sabe? Eu tenho que ter a paciência para informar em um ciclo onde a grande maioria está mais interessada em desinformar.

Eu não gosto muito de usar a palavra “responsabilidade”, mas eu acredito que eu tive vontade de falar sobre esse tema porque me considero um artista vivo para falar sobre qualquer assunto. Eu não me prendo a uma temática específica. Essa vontade de discutir nasceu da necessidade que esse momento exige. Poucas pessoas da minha geração estão preocupadas em como vamos estar daqui a dez anos. Eu vi muitas pessoas morrerem quando era criança, então eu me preocupo em manter a minha geração viva em todos os sentidos, física e mentalmente. Talvez a palavra seja “esperança”.

TMDQA!: Eu considero a arte algo muito importante para dar esperança, para mostrar o outro lado da história… Vimos isso em muitos álbuns lançados este ano. Está sendo algo muito forte e bonito de se ouvir.

Coruja: Eu tinha uma preocupação também de falar dos temas dos quais eu acho que o meu povo precisa, mas não têm repetitividade, saca? Algumas coisas são discutidas de forma muito superficial, como jogar um tema que todo mundo já sabe. A periferia já sabe de algumas coisas e eu preciso ser mais profundo em abordar os assuntos. É esse o problema: precisamos nos aprofundar mais nos problemas. Eu acho que esse álbum traz uma sonoridade única. Eu falo isso sem arrogância nenhuma. Esse é o álbum mais completo de rap. Eu tinha também uma preocupação de ser mais profundo nos temas e chegar mais na raiz da situação.

TMDQA!: É um discurso pesado, mas necessário. A narrativa do álbum nos coloca para refletir.

Coruja: Eu construo meu disco como um filme. Eu criei roteiro para clipes antes mesmo de criar o disco em si. Toda música tem o roteiro de um clipe. Eu tive a ideia de criar um disco assim. Cada faixa tem um porquê. É uma ferida que eu quero cicatrizar. Eu imagino o álbum muito como um filme.

Tem o lance da vivência, do coração e da alma, que eu considero primordial na hora de se fazer música. Tem essa questão imagética também, mas tem uma outra questão. Eu sinto falta de um tipo de música na minha geração, então eu tento ser isso que falta. E faço isso independentemente de para onde as atenções estão voltadas, porque eu sinto que a minha geração se desconectou um pouco da ideia de “vou fazer música da minha forma”. Existem fórmulas que são comuns.

TMDQA!: Por falar em fórmulas, você se influenciou em algum artista específico para alcançar a sonoridade de Psicodelic? Quais foram suas principais inspirações?

Coruja: Música preta! Black music! Eu não queria fazer um álbum de rap. A ideia era fazer um álbum de música preta, tá ligado? Tudo que eu escuto: Jorge Ben, Djavan, Little Walter, Chuck Berry, Nina Simone, Cartola, Originais do Samba, Adorinan Barbosa, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Racionais MC’s… Era essa a parada que eu queria trazer para dentro do meu álbum. Eu queria que meu álbum soasse versável mas, ao mesmo, que as faixas se conectassem. Minha maior preocupação foi juntar todas as minhas influências e fazer um álbum de música preta.

 

“As pessoas não conversam sobre aflições, sobre traumas. É esse o problema”

TMDQA!: O disco conta com uma conversa entre você e sua psicóloga. É algo bem pessoal e diferente para a composição de um álbum. No contexto de Psicodelic, ele é bem importante. O que te motivou a inserir um trecho tão pessoal no álbum e, no geral, compartilhar momentos importantes da sua vida com todos os seus fãs em Psicodelic?

Coruja: Eu acho que essa confusão social merece uma resposta muito maior do que um porquê simples. Não nascemos na periferia à toa. Existe todo um processo estrutural e histórico que nos jogou ali. Eu achei essa ideia central de discutir saúde mental algo essencial para incentivarmos as pessoas a uma sessão de terapia, por exemplo. As pessoas não conversam sobre aflições, sobre traumas. É esse o problema. Às vezes vemos uma pessoa tirando a própria vida, mas somos pegos de surpresa, porque não sabíamos dos problemas dessa pessoa. Ela não tratou daquilo, seja por conta de uma timidez ou um preconceito. Eu pensei que preciso ajudar meus irmãos a cuidar da saúde mental e tratar esse assunto com normalidade. Eu acho que esse foi o principal motivo para eu ter colocado uma sessão de terapia no meio do álbum.

TMDQA!: Por falar no interlúdio, ele nos direciona de uma maneira brilhante a um outro momento do disco: o das músicas românticas. Não fica uma mudança chocante porque fomos preparados para isso. Isso ajuda a reforçar a ideia de que é um álbum completamente seu, como se você estivesse falando diretamente com o seu público. Como surgiu a ideia de dividir a narrativa do álbum em momentos?

Coruja: É uma questão semelhante à narrativa do filme, que é dividida em momentos. Eu tenho dirigido e roteirizado alguns projetos, e isso me ajudou bastante a construir o disco. Acho que vem muito do fato de eu escutar muito vinil. Eu não sou uma pessoa que escuta um álbum de forma aleatória, sabe? Eu escuto da primeira até a última faixa, para entender a mensagem que o artista quis passar. É uma coisa que o Racionais fez muito bem em Nada Como Um Dia Após o Outro Dia e Sobrevivendo no Inferno. Eu aprendi bastante com nomes como Mano Brown, Kanye West e Dr. Dre. Eu acho que um álbum precisa ser feito assim. Precisa de uma ligação. Esse álbum é inteiramente pensado. Tem música que vai te ajudar a entender a música anterior. A pessoa só vai entender a última faixa, por exemplo, se ouvir o álbum por inteiro. É algo meio Marvel nesse sentido (risos), de amarrar uma obra na outra. É como se cada track fosse um filme do MCU.

TMDQA!: O que você tem ouvido de feedback de seus fãs, em relação ao seu novo álbum? Como você vê o entendimento do público em relação a Psicodelic?

Coruja: Psicodelic repercutiu de uma maneira muito foda. Eu recebo várias mensagens por dia, e alguns dizem que o disco os ajudou. Eu senti que a música chegou às pessoas de uma forma diferente, e isso é muito bom, porque é o que eu quero. Enquanto artista, não quero pertencer a apenas uma geração, mas quero conversar com as pessoas muito além de coisas superficiais. Quero atravessar gerações. Quero ter relações sólidas com meus fãs e tê-los perto de mim. Quando leio ou ouço mensagens positivas de outras pessoas, eu fico contemplado. 

TMDQA!: O disco está recheado de participações especiais ótimas. Quando temos a primeira noção de que a sua voz não é a única que prevalece, ouvimos Djonga cantando com você em “Gu$tavo$”. Na música, vocês travam um diálogo sobre serem o terror de suas respectivas cidades. Parcerias como essa, independentemente do gênero, são cada vez mais comuns, especialmente quando estamos falando da cena independente. 

Coruja: Eu e o Djonga somos pessoas muito próximas. No geral, todas as pessoas que participaram do disco são meus amigos e fazem parte do meu convívio. Com o Djonga, eu tenho uma parada muito foda. Nascemos no mesmo mês, no mesmo ano e temos o mesmo nome: Gustavo. É muita coincidência para uma parada. Além disso, somos dois MCs muito competitivos, sabe? Nós dois achamos que o rap merecia ser contemplado por uma música nossa. A gente precisava também se presentear enquanto amantes do hip hop.

 

“Eu quero mais do que números”

TMDQA!: É o seu terceiro álbum de estúdio, o primeiro desde No Dia Dos Nossos, de 2017. A sua carreira alavancou desde então. Isso pode ser visto no número de visualizações de seus clipes. As prévias do álbum já somam mais de um milhão de visualizações no Youtube. Como você enxerga essa sua evolução e esse seu amadurecimento como artista musical?

Coruja: Posso falar uma coisa do fundo do meu coração? Eu acho daora ter um monte de views, mas eu quero mais do que isso. Eu quero mais do que números. Eu quero que minha música conecte as pessoas de verdade. Quando eu terminei o Psicodelic, eu olhei e falei “Eu fiz o melhor álbum, cara!”. Não desmerecendo ninguém, mas foi o que eu achei. Do meu último álbum para esse, eu senti que a sonoridade evoluiu e as ideias amadureceram. Eu me tranco no estudo para competir comigo mesmo, para fazer algo melhor do que eu tenha feito anteriormente. Eu acho que esse é o caminho. Eu quero competir comigo mesmo, e falo isso no sentido de encontrar uma musicalidade ainda não feita. Eu quero desafios. Quero que meus álbuns soem um diferente do outro, com cada um deles trazendo uma parada nova. Eu acho que essa mentalidade não está muito presente na minha geração.

TMDQA!: É isto! Alguma contribuição final?

Coruja: Queria agradecer vocês pelo contato, pela oportunidade e por terem gostado do álbum!

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