Conversamos com Clarice Falcão sobre "Tem Conserto", retrato atual de uma artista em mutação

A cantora e compositora Clarice Falcão lançou recentemente o seu terceiro álbum de estúdio, "Tem Conserto". Leia a entrevista exclusiva do TMDQA!

Clarice Falcão
Foto: Pedro Pinho

Temos medo de mudança. Por natureza, o ser humano gosta do conforto e acaba levando isso para seu gosto musical. Quando um artista querido anuncia um trabalho novo, ficamos de olho, desejando algo “tão bom quanto” seu trabalho anterior. Esperamos novidades, é claro, mas queremos que elas façam o que gostamos que eles façam.

Ocasionalmente, isso nos leva a frustrações. Quando determinada banda de rock assume uma postura mais pop, ou quando um artista pop assume uma postura mais conceitual, ficamos frustrados. Esquecemos, no entanto, que o artista é um ser pensante assim como nós, plural e sujeito a mudanças de pensamento.

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Conhecemos a cantora e compositora Clarice Falcão, por exemplo, através de suas letras bem humoradas que caminhavam sobre roupagens que se iniciaram no folk e depois flertaram com o synthpop. A maioria foi pega de surpresa com o recente lançamento de seu terceiro disco de estúdio, intitulado Tem Conserto. O álbum apresenta grandes flertes com a música eletrônica e um afastamento de sua característica ironia em favor de letras – em boa parte – mais sérias.

Somos apresentados a uma Clarice que não conhecíamos antes: a um ser humano que, assim como muitos, já lidou com problemas de ansiedade e depressão. A mensagem principal do disco trata a saúde mental com a prioridade com a qual ela deve ser tratada normalmente.

Vale lembrar sempre da pesquisa que apontou que cerca de 73% dos músicos possuem problemas de saúde mental. Mas, assim como o título, garantimos que “Tem Conserto”.

 

“Eu gosto bastante de contraste”

Clarice, que sempre foi apaixonada por música, viu nessa arte uma forma de conseguir ajuda. Um dos principais objetivos do novo álbum é retribuir essa ajuda, fazendo músicas atemporais que podem gerar identificação com um público que também passa por isso.

Para isso, a cantora se uniu ao produtor Lucas de Paiva, que já trabalhou com nomes como Alice Caymmi, Mahmundi e Silva. A atmosfera eletrônica que permeia o álbum foi algo muito bem pensado, ao representar um gênero musical com o qual Clarice criou familiaridade nos últimos anos.

Tivemos a oportunidade de conversar por telefone com ela, que nos contou detalhes sobre o processo de composição do álbum. Clarice falou sobre o lado “humano” do artista, sobre como seus problemas influenciaram as novas faixas e sobre o conceito da ambientação eletrônica.

Confira abaixo:

TMDQA!: Quando “Minha Cabeça” foi lançada como single prévio, ficamos surpresos com a sonoridade, com mais elementos eletrônicos e uma letra mais pessoal. Como chegou a esse som?

Clarice Falcão: Já faz uns dois ou três anos que eu comecei a ouvir música eletrônica com outros ouvidos. Eu sempre gostei muito de folk, de bandas independentes, mas eu ouvia também algumas coisas eletrônicas que puxavam mais para o pop. Ultimamente eu tenho escutado música eletrônica mesmo, e conhecido e participado mais da cena do gênero. Me apaixonei, na verdade, tanto pela música quanto pela cena. É uma cena muito política, muito interessante. Comecei a frequentar mais, tanto no Rio quanto em São Paulo.

Quando comecei a compor as músicas, vi que seria um disco sobre depressão e sobre ansiedade, e achei que combinaria justamente por não combinar com a eletrônica. Eu gosto bastante de contraste, então pensei que ficaria interessante. O primeiro disco, por exemplo, tem uma sonoridade fofinha, mas fala sobre assassinato. Achei que seria legal tratar desses assuntos com “música de pista” ao fundo. Aí chamei o Lucas de Paiva para produzir, porque ele é super desse rolê. A gente passou um ano produzindo as coisas na minha casa e saiu o disco.

TMDQA!: Foi algo bem pessoal então, certo?

Clarice: Sim! Música eletrônica tem essa facilidade de você conseguir produzir no seu tempo. Como ia ser um disco muito pessoal, achei que esse estilo de produção casou muito, em vez de alugar um estúdio e pagar por hora. Se fosse assim, ficaríamos meio limitados ao tempo, e não conseguiríamos trabalhar direito cada nuance do disco, sabe? No final das contas, foi perfeito.

TMDQA!: Sendo um álbum que trata de temas como depressão e outros tipos de distúrbios pessoais, como foi assumir essa característica? Como se deu esse processo criativo?

Clarice: Primeiro eu comecei a compor. Foi a primeira vez que eu comecei a compor no piano, ao invés de no violão. Eu não toco nenhum dos dois muito bem (risos), mas consigo me acompanhar, sabe? Acho que isso já deu uma cara diferente enquanto eu compunha as primeiras três músicas do disco, que foram “Morrer Tanto”, “Só + 6” e “Esvaziou”. Elas tinham a mesma temática mais ou menos, e me fizeram pensar que eu estava falando sobre o mesmo assunto, que é isso da ansiedade e da depressão, coisas com as quais eu convivo há um tempo mas nunca tinha falado diretamente sobre. Foi um momento em que pensei “eu vou fazer um álbum sobre isso mesmo ou eu vou tentar contornar algo que está saindo naturalmente?”. Eu sempre gostei muito de álbuns-conceito, de discos que têm uma “cara”. Aí falei “é isso”.

Eu acho também que a pista tem uma coisa de catarse que, apesar de não combinar, combina. Ela tem uma coisa de fazer esquecer os problemas, de dançar a sua depressão, a sua ansiedade. É um momento, pelo menos para mim, quase terapêutico. Descobri isso, de colocar os sentimentos para fora, nesse tipo de festa. Então, apesar do contraste na sonoridade, porque quando você pensa em depressão você pensa em um outro tipo de música, eu acho que no fundo mesmo combinou muito.

 

“É uma mensagem de ‘busque ajuda'”

TMDQA!: É um álbum mais pessoal, ao falar sobre temas como depressão e alguns dilemas pessoais. Lembra da importância da saúde mental. Eu já vi muita gente por aí se identificando com as letras. É interessante porque esse disco pode ajudar mais pessoas a se identificarem no seu trabalho.

Clarice: Eu acho que eu já fui muito beneficiada por música quando eu estava em momentos de depressão ou ansiedade. Quando o disco começou a se desenvolver, fiquei muito feliz em poder retribuir. Acho importante falar disso de uma outra forma, sabe? É claro que tem música de ficar no quarto chorando, mas não precisa ser necessariamente isso. Tem toda uma energia sonora, especialmente na última música, que era muito essencial. A ideia era não virar uma ode à depressão e não glamurizar isso. É uma mensagem de “busque ajuda”.

TMDQA!: Como é ter pessoas se identificando com a sua vida pessoal?

Clarice: É muito bom! Tem uma coisa de troca. As pessoas se sentem menos sozinhas, porque é muito bom saber que existem outras pessoas que sentem o mesmo que você. É uma via de mão dupla também. Quando eu escrevi “Minha Cabeça”, por exemplo, meu maior medo era lançar e as pessoas falarem “O que? Você está doida!”. Ter uma resposta de identificação é para mim, enquanto pessoa e não só como artista, muito reconfortante. Sabe quando às vezes falam em uma roda de conversa “Ah, vocês também sentem ou fazem tal coisa?”, as pessoas respondem “Não, cara” e você fica naquele sentimento de estar sozinho? É um sentimento muito ruim se sentir esquisito.

TMDQA!: A faixa-título, como já falamos antes, fecha muito bem a ideia do álbum. O que seria o tal conserto?

Clarice: Acho que é complicado, porque cada um tem o seu próprio processo. Eu acho que a resposta mais geral é “procurar ajuda”. É muito difícil lidar com isso sozinho. Existem muitas opções, desde a terapia até remédios, mas tem gente que pode não se dar bem com um ou com o outro. Remédios, por exemplo, me ajudaram muito, mas é difícil dizer “usem remédios”, justamente por conta dessa questão pessoal. Mas acho que não passar por isso solitariamente é o primeiro passo.

Eu também fui muito privilegiada porque a minha família convive com isso há gerações. É importante estar com pessoas ao seu redor que te entendam. Seja por falta de informação ou por falta de experiência, existem pessoas que não sabem lidar com isso de uma forma tão delicada e consciente. É preciso tentar conviver de uma forma pacífica com os problemas. Eu não sei se existe um conserto definitivo. Não garanto que os problemas nunca voltarão, mas acredito que a convivência com suas angústias e seus demônios é algo essencial. Às vezes, quando queremos calar e acabar com eles, pode ser uma luta perdida.

 

“O que eu fiz nesse disco de genuíno é fazer dele muito do que eu estou vivendo”

TMDQA!: Eu acho interessante quando um artista muda, porque nessas mudanças existe uma coisa humana. É como se mostrasse que você não é uma coisa só.

Clarice: Exatamente. As pessoas esperam que você seja uma coisa só e que você não mude, não cresça, não evolua… Não necessariamente no sentido de melhorar, mas de mudar mesmo. Se eu fizesse outro Monomania agora, isso sim seria pouco genuíno. Tenho muito orgulho de ter feito aquele disco e foi parte essencial do meu percurso enquanto artista. É quem eu fui, mas não mais quem eu sou. Hoje em dia não é mais o que eu escuto. O mais genuíno para mim, neste momento da minha vida, foi fazer o Tem Conserto, mesmo não sabendo se o próximo disco vai continuar sendo de eletrônica. Não sei o que vou estar ouvindo e o que vai me mover daqui a dois, três anos. O que eu fiz nesse disco de genuíno é fazer dele muito do que eu estou vivendo, tanto em termos de letra quanto de sonoridade.

TMDQA!: Além de todas essas questões, o Tem Conserto soma mais ao seu repertório. Como você avalia o desenvolvimento ou o caminho que a sua sonoridade percorreu desde Monomania, de 2013?

Clarice: Eu sempre gostei muito de música, então vou somando. O Monomania eu fiz em uma época que me fez juntar tudo que eu ouvia ao longo da minha adolescência. Eu fiz com 20 anos, então era todo o folk independente que escutei nessa fase da minha vida. Sempre gostei muito de cantoras e compositoras que valorizavam muito a letra, como Cat Power. Depois, em Problema Meu, foi uma experimentação para eu descobrir para onde eu iria e para quebrar a ideia conceitual do Monomania, que é quase como se fosse uma grande música só. Tem brega, tem folk, tem marchinha, rock… Chamei o Kassin para produzi-lo, por ele ser muito bom com tudo. Foi um disco “anárquico”. Agora, o Tem Conserto reflete o que tenho ouvido e vivido. Ambos os lados são muito pessoais.

TMDQA!: Isso mostra que o álbum é uma coisa fluida. É mais enriquecedor do que ouvir o mesmo artista lançando o mesmo tipo de música.

Clarice: Exatamente. O que acontece também é que você cria uma base de fãs, e muita gente fica tentando atender às expectativas dessa base de fãs. Mas eu não consigo fazer um álbum baseado no que as pessoas vão achar. Pelo menos para a minha pessoa, fazer uma coisa pensando na recepção sempre soa pouco genuíno. No fundo, o que me define como artista e compositora ainda está no Tem Conserto, sabe? As letras ainda têm a essência do que eu gosto e faço de acordo com a minha visão de mundo. Podem estar um pouco menos bem humoradas, mas continuam tendo humor de uma forma mais sutil e continuam com minha visão. Quem gostava de mim pela minha essência vai continuar. Quem gostava por conta da sonoridade talvez não curta tanto. Mas é difícil agradar todo mundo (risos).

 

“É um reflexo dessa geração do Instagram e do Facebook

TMDQA!: E como artista? O quanto você se vê evoluída desde o início de sua carreira?

Clarice: Acho que o que eu mais aprendi com esse disco foi a não me esconder tanto atrás de ironias. Nesse disco, há mais honestidade nesse sentido. No Monomania e até no Problema Meu, eu ocasionalmente não me mostrava tão vulnerável enquanto artista e pessoa por causa da ideia de que “tudo é uma grande piada”. Nesse disco, eu estou falando sério. Antigamente eu podia falar “não sei se você percebeu, mas é uma piada. Não vou matar ninguém com cianureto”. Esse disco eu estou falando exatamente o que eu sinto. Se alguém falar que algo nele é ridículo, eu vou ter que dizer “é, então eu sou ridícula”.

O mais bonito de um artista é o lado vulnerável dele. A gente gosta dos artistas pelo lado humano deles. Aquilo do “tal pessoa nunca errou”, por exemplo: a pessoa erra, se sente mal. Eu não conseguiria me identificar com o artista que é feliz e perfeito o tempo inteiro. É assim que eu vejo a minha grande evolução.

TMDQA!: Existe muito isso de “endeusar” um artista. Mostrar esse lado vulnerável é mais interessante para um ouvinte do que se mostrar “sem erros”.

Clarice: Exatamente. Eu erro o tempo inteiro. Eu me sinto mal e não tenho as respostas para tudo. Não foi um processo fácil. A gente está acostumado a esconder as coisas que fazem a gente mal. É um reflexo dessa geração do Instagram e do Facebook, em que todo mundo tem uma vida perfeita. O meu instinto principal é que, se estou me sentindo mal, vou esconder e fingir que está tudo ótimo. Fazer um disco dizendo que às vezes eu me sinto mal para caramba é difícil, mas foi muito catártico.

TMDQA!: Comparado com os outros dois discos, Tem Conserto é um álbum mais curto, com apenas nove faixas. Eu sinto que ele tem uma mensagem mais clara e direta ao ponto. Por que o disco se desenvolveu assim? Houve a possibilidade em algum momento de o disco ter mais canções?

Clarice: A gente cogitou até colocar “Bad Trip” no disco, porque de alguma forma tinha a ver, tanto conceitual quanto sonoramente. Mas, quando colocamos as faixas na ordem, percebemos que o disco conta uma espécie de história. Tem um desenvolvimento que eu gosto muito, e sinto que não falta nada nele. Começa num choque de espírito e vai crescendo: tem um momento de leveza em “Dia D”, fica muito pesado em “Só + 6” e termina com “Tem Conserto”. Qualquer coisa que colocássemos ali no meio desequilibraria um pouco a narrativa e diluiria a mensagem. O que você disse faz muito sentido, de ser um disco direto. Ele é pouco diluído, e se colocássemos mais músicas soaria como se estivéssemos falando a mesma coisa de novo. A mensagem está muito na cara.

Sinto que ele tem o tamanho que tinha que ter. Não há nenhuma música, para mim, que dá vontade de pular. Não tem música para “encher linguiça”. Eu sinto que a gente conseguiu, tanto sonoramente quanto em termos de letra, olhar para todos os lados que eu enxergo a situação. Qualquer outra música, mesmo “Bad Trip”, que tem a ver mas que no fim das contas é uma música mais pontual, quebraria a ideia do disco ser universal, de poder ser escutado em qualquer momento.

TMDQA!: Em breve começa a nova turnê. Como a nova sonoridade vai se misturar com o folk/synthpop dos álbum anteriores? Você já consegue nos adiantar alguma coisa sobre?

Clarice: Sim, com certeza. A principal preocupação, na hora de pensar o show, foi de as músicas antigas não destoarem completamente do repertório novo, mas também não podemos fazer versões que as descaracterizem completamente, até porque as pessoas também querem ouvir as antigas. A gente está fazendo versões puxando para o eletrônico, mas estamos fazendo o possível para não tirar essa característica. Volta e meia usamos samples das músicas antigas, então estamos tentando achar esse meio do caminho.

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