Música

Charles Manson, Trent Renzor e a história do "sanguinário" estúdio Le Pig

Uma complexa mistura de sentimentos vivida pelo vocalista do Nine Inch Nails na polêmica residência ajudou a transformar a sonoridade dos anos 90. Confira!

Le Pig, estúdio do Nine Inch Nails
Foto tirada por Trent Reznor do estúdio "Le Pig"

Os anos 60 foram marcados pela Beatlemania, como ficou conhecida a febre de dimensões jamais vistas anteriormente pelos Beatles que tomou conta da década. Enquanto o quarteto de Liverpool estava fazendo shows pelo mundo e lançando hit atrás de hit, um cidadão americano se tornou obcecado pelo grupo e usou sua interpretação equivocada das canções para cometer assassinatos.

Charles Manson se tornou uma figura popular por ter criado a “família” Manson, um grupo que consistia basicamente em adolescentes rebeldes de classe média encantados com o uso de drogas e com a cultura hippie. Tomando o White Album como uma espécie de profecia, Manson previu que a sociedade estava à beira de um apocalipse – ou “Helter Skelter”, como resolveu chamá-lo em referência à música dos Beatles.

No meio de toda essa história maluca e assustadora, um dos assassinatos mais cruéis cometidos pela “família” foi o da atriz Sharon Tate, casada com o diretor de cinema Roman Polanski e grávida de oito meses e meio de seu primeiro filho. O casal residia em uma mansão nos arredores de Beverly Hills com o famoso cabeleireiro Jay Sebring e o aspirante a cineasta Wojciech Frykowski com Abigail Folger, mulher que estava com ele – todos, exceto Polanski, foram mortos na casa.

Mais precisamente, a residência estava localizada na 10050 Cielo Drive. A mansão já era habitada por famosos há muitos anos: por lá, já haviam passado Henry Fonda (ator e pai de Jane Fonda), a banda Paul Revere & the Raiders e, entre outros, o casal Terry Melcher Candice Bergen. Estes últimos ocuparam o local entre 1966 e 1969 e, além de ser filho da lendária atriz Doris Day, Melcher era um produtor que chegou a financiar a carreira musical de Charles Manson.

Depois dos terríveis acontecimentos, o dono original da casa – o manager de talentos Rudolph Altobelli – parou de alugá-la e morou no local por 20 anos. Eventualmente, em 1992, o vocalista e multi-instrumentista Trent Reznor (Nine Inch Nails) se tornou inquilino do local.

Foto: Chris Eggertsen via Flickr

 

Trent Reznor e o estúdio da 10050 Cielo Drive

Enquanto alugava a casa, Reznor e sua banda produziram o EP Broken (1992) e o disco The Downward Spiral (1994). No entanto, o vocalista nem esperou o lançamento do último para sair do local. Segundo ele, “havia história demais naquela casa para eu lidar”.

Uma das polêmicas envolvendo a residência e a passagem de Reznor por lá foi o fato dele ter decidido chamar o estúdio de “Le Pig” (o porco); a escolha foi uma referência à mensagem deixada por Susan Atkins, uma das responsáveis pelo assassinato de Tate. Com o sangue da vítima, ela escreveu a palavra “pig” bem na porta da frente.

A “brincadeira” foi considerada de mal gosto até pelo próprio vocalista, que em entrevista para a revista Rolling Stone em 1997 explicou por que se arrependeu do aluguel:

Enquanto eu trabalhava no Downward Spiral, eu estava morando na casa em que Sharon Tate foi assassinada. Aí um dia eu conheci a irmã dela. Foi uma coisa aleatória, só um encontro breve. E ela disse: ‘Você está explorando a morte da minha irmã ao morar na casa dela?’ Pela primeira vez a coisa meio que me deu esse tapa na cara. Eu disse, ‘Não, é só meio que meu interesse no folclore americano. Estou morando nesse lugar em que uma parte bizarra da história aconteceu.’ Eu acho que eu nunca tinha percebido antes, mas eu percebi ali. Ela perdeu sua irmã em uma situação insensível e ignorante que eu não quero apoiar. Quando ela falou comigo, eu percebi pela primeira vez, ‘E se fosse a minha irmã?’ Eu pensei, ‘Foda-se o Charlie Manson.’ Eu não quero ser visto como o cara que apoia essas merdas de serial killer. Eu fui à casa e chorei aquela noite. Me fez ver que existe um outro lado das coisas, sabe? Uma coisa é andar por aí com seu pinto balançando no vento, agindo como se não importasse. Mas quando você entende as repercussões que isso tem… isso me deixou sóbrio: perceber que o que balanceia esse apelo da ilegalidade e falta de moralidade e essa coisa toda é a outra ponta da corda, as vítimas que não merecem isso.

Após todo o episódio da passagem de Trent Reznor pela histórica residência, o dono (Altobelli) resolveu demolir a casa original. Alguns anos depois, o local foi reinaugurado com o nome Villa Bella e recebeu um novo endereço, para tentar desassociá-la dos acontecimentos: agora, fica na 10066 Cielo Drive. O novo proprietário do local é o produtor de Hollywood Jeff Franklin, responsável por séries como Full House (Três É Demais, no Brasil) e Malcolm & Eddie.

Bem antes de sair do estúdio, no entanto, o Nine Inch Nails convidou Marilyn Manson e gravou o clipe de “Gave Up”, parte do EP Broken, na residência.

Além disso, como te mostramos por aqui, o disco de estreia de Manson, ironicamente, foi gravado no local.

Influência no Downward Spiral

De uma forma ou de outra, a energia da casa certamente influenciou nas composições do Downward SpiralO disco viria a se tornar um dos mais reconhecidos da banda e algumas das faixas, como “Piggy” “March of the Pigs”, traduzem um pouco dessa confusão mental em música.

Porém, a perspectiva niilista em temas como auto-mutilação e auto-controle foi a tônica do álbum. Nesse sentido, “Hurt” viria a se tornar um dos grandes hinos presentes no trabalho; a canção faz referência ao vício em heroína e à dificuldade de viver em seu próprio corpo.

Esses temas despertaram a atenção do lendário Johnny Cash, que chegou a fazer um cover dessa música; a versão de Cash foi extremamente premiada, tendo seu clipe eleito pela NME como o melhor de todos os tempos (em 2011). Além dele, outros artistas fizeram e fazem versões de “Hurt” até hoje – como o Mumford & Sons, que executou a canção em um show realizado em Cleveland (cidade natal de Reznor) em 2019.

Polêmicas envolvendo o Downward Spiral

Toda essa repercussão – somada à experiência complicada de morar na 10050 Cielo Drive – fez Trent Reznor passar por um dos momentos mais difíceis de sua vida. O cara chegou a receber notícias de sua própria morte, lidou com uma depressão e teve que conviver com boatos (falsos) de que teria se relacionado com o serial killer Jeffrey Dahmer, além de ser visto como um ícone sexual.

Essa última parte influenciou Reznor de uma forma mais pessoal, pois um dos maiores sucessos do disco – “Closer” – falava de forma bastante crítica sobre o ódio ao próprio corpo e obsessão, e acabou se transformando em uma espécie de hino sexual por seu refrão (“I wanna fuck you like an animal”/”Eu quero te foder como um animal”).

Para complicar mais as coisas, o garoto Dylan Klebold, responsável pelo massacre de Columbine, havia anotado várias das letras em seu diário antes de cometer os terríveis assassinatos. Juntamente com Marilyn Manson e com o filme Matrix, o disco recebeu severas críticas por parte de comitivas que analisaram o incidente.

Por fim, houve ainda uma polêmica com a faixa “Big Man with a Gun”. A bancada conservadora dos EUA, na época, alegou que a música fazia parte da onda de rap gângster (Dr. Dre, Tupac Shakur, Snoop Dogg, etc.) que cometia diversas transgressões aos “bons costumes”.

Em resposta, Reznor chamou o senador Bob Dole de “um tremendo de um idiota”, dizendo que a música era justamente uma sátira ao rap gângster. Ainda defendeu seu álbum, citando que o Downward Spiral poderia ser “perigoso, por meio de implicações e sugestões subliminares”, enquanto o rap gângster seria “caricatural”.

De qualquer forma, o disco foi extremamente aclamado pela crítica – especialmente quando revisitado em anos posteriores – e sua sonoridade foi imitada e reimaginada por diversas bandas dos anos 90 e 2000 como o Filter e até o Mötley Crüe.

Nine Inch Nails

Antes da demolição da 10050 Cielo Drive, Trent Reznor retirou a porta da frente da casa e a instalou no Nothing Studios, que viria ser a casa do Nine Inch Nails por vários anos; o estúdio situado em Nova Orleans foi vendido, mas a porta permanece preservada pelo novo dono do prédio.

Já nos tempos atuais a banda vem tentando se manter longe de polêmicas. Como contamos por aqui, o NIN apareceu em um episódio do seriado Black Mirror e cresceu 300% em visualizações em decorrência disso. Além disso, os caras se uniram à Marvel para recriar e vender a camiseta utilizada pela Capitã Marvel no filme da heroína, lançado em 2019.