A banda gaúcha Supervão lançou recentemente seu álbum de estreia, intitulado Faz Party. Mas não se trata apenas de um álbum. Estamos falando aqui de uma espécie de prisma, com várias faces que nos auxiliam na reflexão dos mais diversos temas.
E a melhor parte é que está tudo inserido em um contexto dançante, misturando indie rock com ritmos tradicionais brasileiros em uma ambientação eletrônica. O álbum entra para a discografia da banda após o lançamento dos EPs Lua Degradê (de 2016) e TMJNT (de 2017).
Formada por Mario Arruda, Leonardo Serafini e Ricardo Giacomoni, a banda também criou um selo próprio, a Lezma Records. Mas eles já eram iniciados no mundo da música antes mesmo de formarem o grupo, já que produziam festas dos mais diferentes estilos em sua região natal.
Esses eventos, somados às referências de infância dos integrantes, foram o que deu origem a uma estética sonora que bebe de várias fontes. Sonoridade essa que foi aprovada pela Natura Musical em seu edital de 2018 e que permitiu a realização do disco. Dito isso, chegamos à Faz Party, cujo nome brinca com ideias de derrota (“faz parte”) e celebração (“faça a festa”).
“A identidade pode ser tanto uma segurança quanto pode formatar”
Conversamos por telefone com Mario Arruda e Leonardo Serafini sobre o lançamento. Em uma divertida chamada tripla, a dupla nos contou detalhes sobre o disco, como influências musicais e identidade visual.
Confira abaixo:
TMDQA!: A primeira coisa que senti ao ouvir o álbum de vocês é que ele mistura ambientações orgânicas e digitais. Além disso, há a presença de referências de vários gêneros. Como que vocês pensaram nisso?
Supervão: O lance dessa mistura vem de diferentes encontros que tivemos na vida. A gente costumava fazer festas. Fazíamos festas indie e depois começamos a fazer festa de músicas brasileiras, de músicas psicodélicas… A cada evento nós fazíamos uma coisa diferente. Nisso já dá para ver como que fomos nos conectando com diferentes estilos. Depois disso, quando já tínhamos o selo e banda, começamos a tocar em festivais. Como já tínhamos essa vivência, fomos intensificando mais essa mistura no nosso som. Sentimos vontade de fazer isso porque gostamos mais de sentir o som do que de que tentar enquadrá-lo em alguma coisa. Às vezes, a identidade pode ser tanto uma segurança quanto pode formatar.
TMDQA!: Eu considero uma mistura muito original e, por assim dizer, benéfica. Vocês misturaram elementos eletrônicos com referências de ciranda, por exemplo. É algo bem genuíno.
Supervão: A gente quis misturar. Pegar o estilo de baixo de uma banda com o de percussão de outro gênero. Nos permitimos testar para ver o que acontecia. Essa mistura se expressa musicalmente, mas eu acho massa ir para algum lugar e conhecer uma outra cultura. Acho que tem uma questão antropológica, de querer ver qual é. Queremos pensar no que é criação a partir do que vamos estudando. Criação é a junção de uma coisa para outra, e o trabalho em si é colocar aqui uma do lado da outra e fazer ficar em pé.
TMDQA!: Rola uma questão muito antropofágica, que é uma característica da musicalidade brasileira em um geral. Pegar referências e usá-las ao seu favor. Culturalmente falando, isso é muito benéfico.
Supervão: Eu concordo. Não é como se estivéssemos nos me apropriando de algo. É como se essa coisa já fizesse parte de nós, sabe? A ciranda, por exemplo, é algo que toda criança, pelo menos uma vez, ouviu. O mesmo vale para a música pop em um geral. Ela vem e te invade.
TMDQA!: A sonoridade de vocês me remete a esse movimento da atual música brasileira de beber de várias fontes, fazendo algo cada vez menos óbvio e classificável. Como vocês enxergam este momento?
Supervão: Eu acho que essa cena é a nossa principal fonte. Gostamos muito de nos influenciar em artistas contemporâneos, mais do que ficar olhando para o passado. É claro que esse tipo de movimento no Brasil não é uma novidade. Mas somos muito abertos para os artistas contemporâneos, para nos comunicarmos com o atual. Eu acredito bastante nisso.
TMDQA!: Pensando nisso, existem algum artista ou movimento musical específico que tenha influenciado vocês, não apenas sonoramente, mas também liricamente?
Supervão: Tem esse lance mais transversal das influencias. Mas, se for para falarmos apenas da música, gostamos muito de Teto Preto, BaianaSystem, Baco (Exu do Blues), Ava Rocha… Gostamos muito o que eles fazem e a maneira como eles fazem.
É muito legal a maneira como essas junções são produzidas. Gostamos muito do Curumim e da Céu, que pegam a MPB e misturam com uma estética contemporânea. No geral, esses nomes da nova MPB fazem um som mais maduro. Nesse sentido, o indie é um estilo mais adolescente. Gostamos bastante de bandas indies atuais, como Mac DeMarco e Tame Impala. Isso sem contar, é claro, do eletrorock do Cansei de Ser Sexy, Cristal Castles…
Lembramos também quando curtíamos muito pop punk: blink-182, Green Day, NOFX e essa turma toda. Isso ajudou a gente a se permitir gostar do que quiser, independente do momento da vida.
“Tem uma carga de lo-fi nas bases”
TMDQA!: Vocês falaram que tratam o álbum como “um filme do Glauber Rocha com um som remasterizado em stereo 5.1”. Eu queria que vocês explicassem isso melhor.
Supervão: O som dos filmes do Glauber são meio lo-fi. A estética sonora brasileira tem essa precariedade intrínseca. Alguns grandes discos antigos também tinham uma carga meio lo-fi. No filme, isso fica mais forte. A gente gravou o álbum em um estúdio aqui de casa. Tem uma carga de lo-fi nas bases. Quando fomos regravar, acabamos preferindo as bases originais. Depois conseguimos um pré-amp, mas muita coisa ficou sem. Mesmo assim, não chega a uma qualidade de estúdio profissional. A gente foi tentando fazer nosso melhor, e depois masterizamos. A gente ficou pensando sobre como fazer uma imagem desse processo todo, aí pensamos no Glauber, ainda que soe meio megalomaníaco (risos).
TMDQA!: Isso que vocês citaram da estética lo-fi está bem explícito na capa do disco, que traz a questão da colagem em uma estética meio vaporwave. Como vocês a pensaram?
Supervão: A capa é uma foto. Montamos ela como uma colagem no computador mesmo, e depois levamos isso para o mundo físico. Pensamos como se fosse uma obra de arte. Ela parece uma colagem, apesar de não ser. A capa é realmente uma foto, que não tem nada com colagem.
TMDQA!: Voltando à sonoridade de vocês, o álbum si traz temáticas superinteressantes nas letras, como descrença e trabalho. O ouvinte, ao mesmo tempo, dança e reflete. Isso é interessante. Qual o impacto que vocês esperam que as músicas tenham no público?
Supervão: As letras vieram do inconsciente mesmo. Não pensamos em falar de um tema específico. Quando vimos, elas já estavam prontas. Elas nasceram ou no violão ou em um beat original. Montávamos a estrutura e ficávamos testando. De repente, surgia uma frase que soava bem. As temáticas, para nós, evocam este momento histórico neste lugar. Juntamos as temáticas com as músicas, com esse momento histórico brasileiro.
TMDQA!: Todo álbum é resultado do que o artista está pensando em determinado momento e espaço. É interessante ver que vocês estão analisando os contextos.
Supervão: Tem isso. Ainda assim, não é um disco de protesto ou reflexivo. Acho que ele tem mais um plano de deixar no ar. O que a pessoa vai fazer com a informação fica a critério dela. Já a construção das músicas com as letras, acho que elas são um pouco paradoxais. Se for observar, uma das letras mais tristes é “Castanha”, mas a levada é uma das mais alegres. Não sei se tem como nascer algo daí. Estou torcendo para que sim, mas ainda não sei.
A gente nunca parou de fazer show e, com o tempo, fomos refletindo sobre o impacto nas pessoas. Dependendo do show, as pessoas ficavam apenas contemplando. Fomos estudando formas para nos misturarmos mais com a galera e quebrarmos a seriedade.
“Uma afirmação de existência”
TMDQA!: Aproveitando o assunto de show, como vocês descreveriam o show da Supervão para uma pessoa que nunca teve a oportunidade de assistir a uma apresentação da banda?
Supervão: Acho que é um momento para libertar um pouco as suas amarras. Tem que ir para o show preparado para uma abdução. Você vai sair mudado de alguma forma.
TMDQA!: Como vocês avaliam a evolução de vocês enquanto grupo nesses quase 5 anos de banda, levando em conta a experiência com gravações de EP e de um álbum?
Supervão: São várias evoluções pessoais. Parece pouco tempo, mas para nós é bastante. Estamos surpresos com tudo que aconteceu com a banda, que alcançou várias coisas que não imaginávamos alcançar. A gente fica muito feliz com tudo que aconteceu. Fomos evoluindo bastante, ao ponto de termos montado nosso próprio estúdio e nosso próprio selo. Trabalhamos bastante. Cada vez mais, estamos alcançando coisas novas, mas já nos sentimos bem contemplados com tudo que já aconteceu.
Viajar e ter sido escolhido pelo edital da Natura foi algo muito doido. Desde então, trabalhamos com várias pessoas que admiramos. Vamos continuar tocando. Agora, pelo jeito, a galera está conseguindo entender melhor a nossa proposta de mistura. Uma grande conquista da banda, nesse sentido, foi se mostrar mais comunicativa para passar nossa ideia de forma melhor.
TMDQA!: Editais culturais como o da Natura Musical têm dado uma força grande não apenas para os artistas independentes como também para a cultura brasileira. Como veem a importância dessas iniciativas? Já tinham pensado em concorrer antes?
Supervão: Eu acho que são muito importantes, mas temos que entender que eles são cada vez mais raros. A gente está com a banda há 4 anos, e vemos cada vez menos editais. O edital da Natural é algo impressionante! Eles se preocupam com a cena inteira, apoiando desde o artista que está começando até artistas gigantescos mas que também precisam de apoio. Eles fomentam a cena e os festivais, então estão tentando alimentar toda a cadeia. A gente acha que precisa haver esse investimento na cultura brasileira, para nós nos reencontrarmos e conseguimos pensar sobre para onde estamos indo.
TMDQA!: Alguma contribuição final?
Supervão: O nome do disco o resume completamente, no sentido de que tem um duplo sentido. Um é de fossa e outro de celebração. A derrota remete a esse sentimento triste em relação ao Brasil, mas não conformista. Daí entra o outro sentido, de “faça a festa”. Fazer festa, em um cenário cultural ameaçado, se torna uma afirmação de existência. Se você celebrar, vai produzir uma rede de força e de confiança. Vai ser maior do que a dor alastrada. Vocês do site, por exemplo, são um motivo de existência. Estão incentivando coisas excelentes ao invés de reclamar do que está acontecendo.