Entrevistas

"Nunca houve democracia na periferia": Senzala Hi-Tech nos guia pelo seu disco de estreia

Em seu disco de estreia, "Represença", o grupo Senzala Hi-Tech fala sobre o Brasil atual usando como referências costumes ingleses, abuso de poder e mais.

Capa de "Represença" (Senzala Hi-Tech)

Ah, a produção musical nacional dá mais orgulho a cada dia que passa!

Em meio a um caos político e social que assola o Brasil, vemos um refúgio (e também uma espécie de solução) na arte. O mundo da música, especificamente, tem nos presenteado com obras necessárias que falam, diversas vezes, o que está entalado na garganta de muitos. São gritos de resistência, ou melhor, de existência. Precisamos mostrar quem somos e deixar claro que cada um de nós tem (ou pelo menos deveria ter) seu espaço no mundo.

Indagando sobre aspectos opressores da nossa sociedade, sem medo de apontar culpados e defendendo seu ponto de vista, o grupo Senzala Hi-Tech lançou na última sexta (09) o seu aguardado disco Represença. Trata-se do primeiro grande álbum do grupo, após a divulgação de vários singles e de um EP homônimo em 2016.

Em paralelo às temáticas contundentes, as músicas contam com uma interessante ambientação sonora. Hip hop, reggae e samba se unem de forma orgânica para servir de base para as letras.

 

“Nunca existiu democracia na periferia”

Propusemos um faixa-a-faixa para o grupo explicar a origem e a proposta de cada uma das 8 canções. As respostas são dos integrantes MC Sombra, Junião e Diogo Silva.

Vale lembrar que a versão em vinil, também já disponível, conta com uma faixa extra, intitulada “Em Transe“. De acordo com Diogo, a música “fala desse transe que estamos vivendo agora, de notícias falsas, da mentira sendo colocada como verdade, dessa articulação digital e dessa influência do poder sobre as outras pessoas.”

Confira abaixo depoimentos sobre cada uma das músicas do primeiro álbum cheio do Senzala.

Senzala Hi-Tech
Foto: Reprodução / Instagram

“Na Terra da Pilantragem”

Diogo Silva: Quando eu comecei a compor, estava na África do Sul. Foi mais ou menos em 2017, e eu comecei a ver o Brasil do lado de fora. Aí você saca, né? Eu já entendia aqui de dentro, mas você saca mais pela TV internacional como o Brasil é colocado. Eu fui estudando, historicamente, as inúmeras sacanagens que temos no Brasil. A gente é a terra do golpe. Todo mês tem um golpe novo. O nosso produtor trouxe o ritmo do samba reggae. E aí nasceu!

MC Sombra: Essa música, composta por mim e pelo Diogo, se baseia na atual condição social, política e econômica do Brasil, e como isso é visto lá fora. A falta de credibilidade que o Brasil está tendo com esse governo atual. Algo que possa remeter às más condições, às condições caóticas que o nosso país vive em vários setores.

“Mandaram Apagar”

Junião: Somos a terceira população carcerária do planeta. Encarceramento em massa de corpos pretos que, muitas vezes, foram pegos com poucas gramas de maconha e trancafiados sem direito a uma justiça. 40% desses corpos presos ainda aguardam julgamento. Corpos negros com poucas gramas de maconha são tidos como traficantes. Corpos brancos, usuários. O álcool em escala de periculosidade é mais perigoso que a maconha, mas tem menos regulação, é celebrado e gera uma indústria.

Diogo: É uma música, que traz essas influências jamaicanas e caribenhas. A inspiração foi Marielle (Franco). Tem essa questão do silenciamento. Quantas pessoas eles mandaram matar? Mandaram matar Zumbi (dos Palmares), mandaram matar Marielle, mandaram matar vários indígenas… É essa coisa do silenciamento, do assassinato para provocar silêncio.

“Chefe de Estado”

Junião: O Estado paralelo e o Estado de direito hoje são a mesma coisa. Menos de 5% da população ficam com mais de 50% do lucro produzido. Lógica do capital que gera crise como política de estado, que gera desumanização, que geram classes e que geram corpos que podem morrer. O negro é o corpo que pode morrer e a sociedade bate palma.

Sombra: Imagina países que em, até hoje, existem ditadores. É isso que, de longa data, estão querendo fazer com o nosso país, e estou vendo uma grande possibilidade de isso vir a acontecer agora, através desse governo do Bolsonaro. Desse governo que oprime, que só nos traz descontentamento social, político, econômico, cultural, educacional e etc.

“Bozolândia”

Junião: Bolsonaro não é uma questão de agora, é uma metáfora da história mal contada do Brasil racista e homofóbico que vem desde os tempos coloniais. Muita gente vê em Bolsonaro uma volta ao período da ditadura, a 1964. Enganam-se, porque Bolsonaro representa um Brasil que sempre existiu de forma velada.  De forma velada apenas pra quem tá no centro. Mas pra periferia, Bolsonaro sempre foi realidade. Nunca existiu democracia na periferia. Pra pretos e periféricos, a letalidade policial e o Estado que extermina sempre foram realidade, mesmo em governos progressistas. Agora é hora de botar na mesa e expor o racismo estrutural, e as desigualdades de raça e de gênero que vem desde a época de Brasil colônia. Sem isso não tem democracia.

“Batucada”

Diogo: Para “Batucada”, nós fizemos uma coisa completamente diferente. É um afrobeat. Convidamos os percussionistas da Nação Zumbi (Gustavo da Lua e Toca Ogan) e fizemos uma música muito dançante. A letra fala desse universo da dança, da nossa negritude enquanto povo, de ritmos, e sobre a importância dos tambores e das religiões de matrizes africanas. Fala também sobre o empoderamento das mulheres, que estão se aceitando mais, com seus respectivos cabelos e corpos. Elas estão fazendo uma mudança extremamente importante no Brasil.

“Amor Verdadeiro”

Sombra: É uma música que fala de amor. Foi composta baseada no romantismo da musicalidade brasileira e vem da origem do samba, com participação da nossa ilustre negona Renata Jambeiro. Faz parte desse universo do samba. Acompanhamos o trabalho dela e conseguimos chama-la para essa participação que ilustra o disco. Em um momento como o que vivemos hoje, ter uma mulher negra junto com uma banca de negões que se chama Senzala Hi-Tech, explorando essa área musical para falar sobre amor, é muito importante.

“Chá das Cinco”

Diogo: Tem referência aos ingleses, que tomavam seu chá pontualmente ás cinco. Isso significa status e poder, porque os ricos podiam parar, mas os empregados, não. Também é uma brincadeira com a hora do break aqui no Brasil, onde as pessoas podem articular suas ideias e interagir com os amigos. É um dub e vem da influência do Lee Perry, um dos maiores nomes do dub jamaicano.

“Mercadores da Noite”

Junião: Numa sociedade desigual, onde não há regulação, o poder do dinheiro manda e destrói coisas belas.

Diogo: É sobre esses mercados ilegais que, socialmente, são legais. A música fala sobre por onde que eles circulam e como nós os acessamos.

Sombra: Fala sobre rolê, festa. O noturno do bagulho, que não é fácil para quem vive trabalhando nas madrugadas. Tem o lado bom, claro, mas tem o lado maléfico também: inveja, tretas, drogas, crime imperando e por aí vai.

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