Ter uma banda é ótimo. Você compõe com amigos, toca com amigos, viaja com amigos… É uma sensação de nunca estar só e de ter sempre com quem contar. No entanto, conforme o tempo passa, a mentalidade das pessoas podem mudar. É perfeitamente natural que surjam, ao longo do tempo, desavenças entre os integrantes.
É o que causa as constantes motivações de divergências artísticas em cisões de grupos musicais. Mas, de certa forma, tudo tem seu fim e precisamos entender isso. A Cachorro Grande, famosa banda gaúcha, sofreu com essas divergências e acabou fazendo sua turnê de despedida no final de 2018. Nenhum motivo trágico levou ao fim, mas a própria banda enxergou que os caminhos de cada um já estavam diferentes. Foi natural.
Beto Bruno, o ex-vocalista da Cachorro, aproveitou o fim do grupo para se dedicar a sua carreira solo. O resultado, caros leitores, nasceu hoje (23) através do Selo 180, com o disco Depois do Fim.
Ar fresco com a estética do rock dos anos 60 e 70
O álbum conta com 10 faixas inéditas, com diversas referências ao rock feito nos anos 60 e 70. Tem hard rock, psicodelia e indie, ao longo de riffs de guitarra e linhas de baixo pegajosas.
Mais sincero e fresco do que os trabalhos mais recentes da Cachorro Grande, vemos um Beto Bruno imerso como nunca enquanto compositor. Não à toa, o disco traz de forma recorrente discussões sobre o tempo e procura espalhar, simultaneamente, uma mensagem de positividade e de esperança.
Não poderíamos deixar de conversar com Beto sobre a nova fase. Aliás, em meio à tristeza de encerrar um ciclo, o compositor acreditou em um recomeço. Recrutou uma nova banda com Gustavo X (guitarra), Henrique Cabreira (guitarra), Sebastião Reis (violão), Rodrigo Tavares (baixo e guitarra), Pedro Pelotas (piano) e Eduardo Schuler (bateria). As novas composições fizeram com que ele sentisse novamente o tesão das gravações e da experiência musical como um todo.
Confira abaixo a nossa conversa exclusiva sobre o disco:
TMDQA!: Como é a sensação de lançar um disco solo logo após o fim da Cachorro Grande? Como está sendo este momento para você?
Beto Bruno: Foi uma transição difícil para caralho. Eu estava me recuperando ainda do final da banda. Foram os melhores momentos da minha vida. Aliás, foram 20 anos! Estava meio perdidão no final do ano passado, ainda chocado com a situação. Eu fiquei meio trancado em casa e, embora pareça clichê, peguei o violão. Estava meio empoleirado, mas antes mesmo de terminar de afinar, eu já estava fazendo uns riffzinhos. Foi aí que surgiu a ideia de fazer uma música. De repente, fiz três músicas. Depois, já eram cinco. Em 20 dias eu fiz essas 10 músicas. Quando eu vi que tinha essas músicas, todo aquele baixo astral, toda aquela insegurança, se transformou. Tudo isso virou um disco positivo, alto-astral.
Outra coisa que fez a diferença foi o lance das letras. Eu estava acostumado com uma banda como a Cachorro, onde cada um escrevia um pouco. Agora, sou apenas eu escrevendo sob o meu ponto de vista. Eu posso cantar de uma maneira muito mais verdadeira. Não estou cantando a letra que fulano fez para a mulher dele, ou a que cicrano fez sobre uma briga que teve com um amigo. Eu nunca me senti tão seguro. É muito mais pessoal.
TMDQA!: Analisando as letras e as composições, é perceptível que você colocou bastante da sua verdade ali, o que é ótimo. Uma das temáticas mais presentes é a ideia do tempo. Foi proposital ou você foi desenvolvendo isso de forma inconsciente no álbum?
Beto: Quando a banda terminou, muito da minha ressaca veio enquanto pensava sobre o tempo que passei, que meio que se perdeu, ficou nebuloso. Eu comecei a olhar para trás para ver o que aconteceu, no que a gente se transformou, para onde o tempo nos levou e o que ele fez com a cabeça de cada um de nós… Isso está muito presente nas letras. Eu sempre fui obcecado com a ideia do tempo, mas isso ficou mais forte recentemente. Depois de uma ferida grande dessas, eu me senti obrigado a olhar para trás.
“Esse é o meu maior tesão”
TMDQA!: Uma coisa que eu considero muito importante em um disco é a maneira como ele é montado para construir a narrativa. Eu queria saber como você criou a ordem das músicas. Eu vejo “Marlon Brando, Beatles e Pelé” como uma transição entre momentos do disco, por exemplo.
Beto: Essa música foi para encerrar o “lado A” do disco. Essa é uma das coisas que eu mais gosto desde pequeno. Eu gravava muita fita, e elas eram como discos, sabe? Eu gravava fitas como “Os melhores sons de batera do ano de 72”. Pegava várias músicas e fazia uma ordem convincente. Esse é o meu maior tesão, tanto que eu cuidava disso em toda obra da Cachorro Grande. Mas é a primeira vez em que faço isso apenas com faixas minhas. Quando as músicas começaram a aparecer, eu pensei “está faltando a terceira faixa do lado B”. Pensei que seria legal uma violão-e-voz, para respirar. Aí pintou “A Mais Linda do Verão”. Foi tudo estudado e nada foi por acidente.
O grande lance da faixa final é que as vozes estão ao contrário. A música está normal e as vozes ao contrário. Quando terminar o vinil, se voltar a música ao contrário, vai dar para entender o que elas estão falando. Vai dar um efeito muito doido! É como se o tempo da nossa vida estivesse fazendo um loop.
TMDQA!: E a banda que vai te acompanhar neste projeto? Como você a recrutou?
Beto: Eu fui fazendo as demos e, enquanto isso, comecei a montar a banda. Tem o Eduardo Schuler, o baterista. Ele é uma mistura de Keith Moon, do The Who, com o Ginger Baker, do Cream. Se precisar tocar igual o Ringo, ele toca. Que batera! Aí soube que ele veio morar aqui em São Paulo, com a banda dele, a Doris Encrenqueira. Na cara de pau, convidei ele para tocar comigo e o cara topou, achando até que fosse pegadinha.
Ele trouxe o guitarrista dele (Henrique Cabreira). Aí veio o (Gustavo) X. O Pedro (Pelotas) já estava ouvindo as demos comigo. Uma semana antes de entrarmos em estúdio, apareceu o Sebastião Reis. O Nando (Reis) me ligou e sugeriu. Eu nem estava preparado. Nos encontramos em um show do Skank e ele não sai mais do meu lado. Isso tem oito meses. Ele foi meu braço direito no disco todo. De uma hora para outra, a banda cresceu. Isso mudou o clima aqui de casa. Entraram coisas boas, mas antes precisei tirar tudo que estava podre. Se você não se livrar do que está podre, não vai ter espaço para entrar coisas boas na sua vida.
TMDQA!: Quando se está com pessoas que transmitem energia boa, tudo tende a ser melhor.
Beto: Claro, principalmente na música. Eu quis fazer um disco bonito, que transmitisse alguma coisa boa. Olha a fase que a gente está passando… Se não for para passar alguma coisa boa, eu estou fora! Não estou aqui para ser mais um revoltadinho de 45 anos, saca? Quero passar coisas boas porque acredito que esse seja o modo de conseguir coisas boas em retorno.
A ditadura acabou quando eu tinha 10 anos, então não vivi muito dela. Mas a gente conhece os discos da época e sabemos o que nossos amigos e familiares mais velhos viveram. Eu acho que hoje estamos passando por uma coisa parecida, só que pior, porque se passaram 50 anos. Então, vamos para frente, e vamos com alguma coisa boa. Meu disco fala sobre cada um fazer o que sabe da melhor forma possível.
TMDQA!: O Depois do Fim tem também uma mensagem de esperança. Acredito que você queira passar isso também.
Beto: As pessoas não veem que depois do fim existe um recomeço. Por isso o loop entre o início e o final do disco, saca? O fim não termina. A ideia é abrir o coração para o fim das coisas, para que comecem outras. Muitos acharam o disco deprê, mas eu achei o contrário. É exatamente o contrário que eu quis falar. É no começo de uma nova era, uma coisa nova nascendo.
“Não dá para perder tempo!”
TMDQA!: Em termos estéticos, o disco traz uma mistura de hard rock com indie, além de um “quê” bem característico do som da Cachorro Grande. Teve alguma influência específica que tenha te ajudado no processo?
Beto: Milton Nascimento! Eu sempre ouvi muito, mas de uns 5 anos para cá, bateu de um jeito que me tirou do caminho da Cachorro Grande. Inclusive, se não pintasse esse batera, eu faria um disco mais voltado para a MPB. O mais legal em tudo é que eu gravava as demos com celular, fazendo o violão-e-voz. Eu mandava para um grupo que temos da banda. Conhecendo só os acordes, os caras chegavam no estúdio com tudo pronto na mente. Foram 10 dias de estúdio para 10 músicas, e sem ensaio.
TMDQA!: Que interessante! O disco tem arranjos elaborados, linhas de baixo e de guitarra que pegam… É muito legal pensar que foi tudo “na hora”.
Beto: Na hora, todo mundo deixava que a magia acontecesse onde tem que acontecer, que é no estúdio. A Cachorro Grande fazia batalhões de ensaios antes de entrar no estúdio. A gente chegava no estúdio com tudo pronto, mas ficava um resultado frio. A mágica já tinha acabado, porque a gente apenas executava o que já estava arranjado, pré-definido nos ensaios. Depois de muito tempo lapidando, chega um momento em que a música já saiu do seu controle. Eu não deixei isso acontecer nesse disco. Não teve ensaio. Tudo foi arranjado na frente de todo mundo. O Clube da Esquina, por sinal, também foi assim. Quem chegasse antes no estúdio colocava a sua parte. No final do dia, a música estava pronta.
Nos Beatles, por exemplo, o Paul (McCartney) passava na casa do John (Lennon), na metade do caminho para a Abbey Road. Decidiam a música que iriam gravam e iam para o estúdio. Lá, mostravam para os caras às 10 da manhã. Às às 4 da tarde, já estava tudo gravado. E o mais doido é que, dez dias depois, já estava em primeiro lugar. E assim foi com a maioria das bandas dos anos 60. Tudo acontecia dentro do estúdio. O ensaio só existia para ir para turnê. O Led Zeppelin se formou em maio de 68 e, em Agosto, eles já tinham um disco lançado. Em janeiro do ano seguinte, já tinham o segundo. A partir dos 70, foi tudo ficando mais sofisticado, com o lance de ensaiar muito.
TMDQA!: E voltamos à questão do tempo presente no seu disco!
Beto: É o tempo. Não dá para perder tempo! Ficam muito tempo ensaiando quando o mais importante é ir lá e gravar.
TMDQA!: O que esperar dos shows dessa nova turnê?
Beto: Tem uma pegada completamente diferente. Eu toco as dez faixas do disco, só que no meio dessas dez, eu tenho também 10 músicas da Cachorro das quais eu sou o único compositor. “Roda Gigante”, por exemplo, é só minha. No disco, ela tem uma guitarra no canal esquerdo, uma no direito e um violão no central. A banda tocou ela com uma guitarra só a vida inteira. Agora, eu tenho dois guitarristas, um de cada lado, e tenho um violão. Aquela coisa do estúdio vem de forma cristalina para o palco, com todos os arranjos. “Quando Amanhecer” tem bandolim, violão e guitarra. Com a Cachorro, tocávamos só com o (Marcelo) Gross na guitarra. Agora temos os três instrumentos. Nesta banda, somos sete.
Outra coisa é que agora não tem improviso. Existia uma coisa de competição musical em cima do palco com a Cachorro, de um querer tocar mais que outro. Enquanto isso, eu saía do palco, porque não tinha como eu ficar dançando de improviso. É um show em que eu estou muito mais presente. Estamos fazendo justamente os arranjos originais dos discos. Eu estou encantado com isso. São mais pessoas, onde cada um sabe o seu espaço no palco.