Finalmente o maior vilão dos quadrinhos ganhou um filme próprio. Coringa estava mergulhado em um mar de expectativas e, para o bem ou para o mal, não se fala em outra coisa. Seja pela atuação fenomenal de Joaquin Phoenix ou pelas queixas de apologia à violência, a produção dirigida por Todd Phillips parece ter vindo para ficar por muito tempo na cabeça do público.
A história contada foi uma origem do vilão Coringa, quando ainda era conhecido como Arthur Fleck e vivia desoladamente na Gotham dos anos 80. Arthur cuidava da mãe, já idosa e doente, enquanto trabalhava como palhaço em funções constrangedoras e nutria o sonho de lançar carreira no stand up comedy.
A graça do filme foi mostrar que um sistema pode (e vai) virar as costas para a própria população e como isso pode ter consequências graves. Na verdade, os reflexos do abandono já são gravíssimos, de forma individual, para cada pessoa que se encontra nessa condição, mas Coringa mostra o que acontece quando isso transborda para a sociedade como um todo.
Mas como assim? Primeiro, Gotham foi retratada como uma cidade zumbi. Atolada em crises políticas e econômicas, protestos, greves, sujeira e, claro, crimes. Se os governantes não conseguiam manter a própria cidade, como poderiam ajudar quem vivia nela?
Além disso, ficou claro o abismo social que existia entre ricos e pobres. Quem já era rico ficava cada vez mais rico e quem era pobre se afundava nos becos da metrópole falida. Daí a importância da família Wayne, que surpreendentemente tem papel fundamental na trama, simbolizando o nível mais alto dessa pirâmide.
Polêmico desde o início
Ao contrário da estilização na matança que vemos em filmes de Tarantino, por exemplo, o Coringa de Todd Phillips usa uma agressividade crua, sem cortes, sem virar o rosto. A comparação que mais tem feito sentido é com Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos de Martin Scorcese (referências admitidas por Phillips em entrevistas de divulgação do filme, inclusive), por causa da escalada da violência na trajetória de Arthur.
Daí o receio de pessoas da “vida real” serem influenciadas e passarem a cometerem atos agressivos depois de assistirem ao filme. Mas, convenhamos, essa discussão é antiga e o risco de haver episódios violentos já é grande o suficiente sem a influência do Coringa. Só nos Estados Unidos, foram 94 tiroteios em escolas apenas no ano de 2018. Esse problema já é real e não vai ser um filme que vai torná-lo maior ou menor, por mais impactante que seja.
Mesmo assim, não há como condenar as salas de cinema que reforçaram a segurança no fim de semana da estreia do blockbuster. Se há o receio, é melhor prevenir.
Outro nível de tensão
A grande diferença do Coringa interpretado por Joaquin Phoenix, além da atuação visceral, foi a atenção que o roteiro teve com o distúrbio psicológico do personagem. Apesar de tentar viver uma vida normal, era nítido que ele tinha certas limitações – logo confirmadas pela própria trama. Havia certa preocupação de que as truculências assumidas pelo vilão teriam um pé em discursos de ódio gerados por masculinidade frágil ou supremacia racial, mas não foi esse o viés adotado. Fugiram do clichê e acertaram em cheio.
Quanto à personalidade do protagonista, a melancolia mesclada com a obrigação de parecer sempre feliz chegava a ser digna de pena. E pode colocar a responsabilidade por isso no desempenho de Phoenix. O ator entregou algo que foi além das expectativas e concorre fortemente a “melhor Coringa de todos”. Daí outra preocupação: a identificação inicial com o personagem poderia ser confundida com uma espécie de glorificação dos atos cruéis que ele praticaria mais tarde. Mas, como recurso narrativo, sentir dó foi essencial.
A risada, algo obviamente associada a momentos alegres, virou algo sombrio, soturno, desconfortável. A figura do palhaço foi transformada em uma máscara que ia totalmente para lado oposto do que palhaços geralmente representam.
Tudo isso aliado a uma trilha sonora agoniante transformou os 121 minutos de duração em um conjunto de momentos inquietantes. Cruzadas de pernas, ajeitadas na poltrona e olhadas para o lado foram algumas das reações mais comuns na sessão no cinema.
A tensão foi o que mais se destacou no filme. Coringa tratou, em um nível amplo, de privilégios, de desigualdade social, de influência midiática na tentativa de manipulação das massas. Porém, em um cenário mais particular, o foco esteve na perda da vontade de viver, no desaparecimento dos limites morais, no salto de um niilismo melancólico para a vontade anárquica de ver o circo pegar fogo. Com isso, veio também o perigoso ganho de confiança do personagem à medida que ele passou a gostar do caos.
O medo de se identificar com o vilão, no fim das contas, não veio por causa da empatia com uma vítima de bullying ou de um distúrbio mental. O incômodo maior acabou sendo com a percepção de que muitos de nós já estão perto de “quebrar” mentalmente, igualzinho ao Arthur.