A música possibilita que conheçamos mundos incríveis que variam de artista para artista. Quanto mais artistas escutamos, maior o número de percepções de mundo às quais somos apresentados.
Em pleno 2019, no Brasil, não é missão fácil convencer alguém de algo, já que o egocentrismo está falando mais alto do que nunca. Em meio a este caos social, no entanto, artistas musicais estão usando suas respectivas vozes para nos apresentar a novas percepções de mundo e de vida.
Se pensamos que a raiva domina, existem aqueles que estão indo na contramão para apresentar uma perspectiva mais pessoal. Afinal, antes de tentar mudar o mundo, precisamos entender a nós mesmos. Emicida, por exemplo, mostrou seu ponto de vista de que, em situações como essa, é a calma que precisa dominar. Também reforçando a ideia de que o autoconhecimento é a chave para o sucesso pessoal (e, consequentemente, do mundo), eis que somos presenteados hoje (08) com o novo disco da banda cearense Selvagens À Procura de Lei.
Em Paraíso Portátil, a banda, já conhecida por apresentar mudanças sonoras a cada disco, mostrou um lado mais pop e, ao mesmo tempo, intimista. Em uma espécie de contraponto ao aspecto solar do antecessor Praieiro (2016), agora os temas tratados são mais introspectivos. O disco, resumido a 11 canções, explora assuntos como depressão, ansiedade e sonhos. Enquanto isso, em termos instrumentais, o Selvagens se arrisca mais nas composições de piano e no uso de sintetizadores.
“Nosso novo disco é mais voltado para o interior das pessoas”
Conversamos com o integrante Gabriel Aragão sobre o Brasil atual e sobre as influências para as novas composições. Também conversamos sobre a primeira década da banda, que está sendo comemorada em 2019.
Confira abaixo o papo na íntegra, e ouçam Paraíso Portátil:
TMDQA!: No nosso último papo, conversamos sobre quebra de expectativas. Como está sendo essa vivência para vocês, já que o disco novo é bem diferente do que os fãs esperavam?
Gabriel Aragão: Eu acho que todos os nossos discos, comparando um por um, todos representam grandes rupturas. Do segundo para o terceiro, talvez isso fique mais evidente. Naquela época, pensei que, se o Praieiro foi tão para fora e extrovertido, o próximo teria que ser o contrário. Vai ser para dentro, relacionado à noite, introvertido. Ao mesmo tempo, no entanto, não chega a ser um disco “Radiohead”. Nosso novo disco é mais voltado para o interior das pessoas. É um disco muito pessoal e mais íntimo. Ele toca em temas mais difíceis também, que não são assuntos muito “naturais”. “Eu Não Sou Desse Mundo“, por exemplo, é uma faixa que fala sobre depressão.
É legal quebrar as expectativas, tanto da gente quanto sobre o que os outros esperam. Talvez esperassem que a gente fosse lançar um trabalho super político, descendo o cacete quase como um Rage Against The Machine. Mas na verdade, foi um caminho muito natural. Não foi nenhuma forçação de barra. As composições nasceram assim, como um mergulho para dentro de si mesmo. O Paraíso Portátil passa uma mensagem de que, se você quiser mudar o mundo, primeiro você tem que mudar a si mesmo. Não adianta ir para o grito ou brigar com quem pensa diferente. Você vai só estar entrando na briga, sem resolver nada.
TMDQA!: Você citou o fato de que os discos da Selvagens nunca apresentam a mesma sonoridade. No primeiro disco, vocês foram meio indie. No segundo, puxaram um pouco para um rock mais clássico. Já no terceiro, vocês passaram a misturar mais elementos brasileiros na sonoridade. Agora, as canções novas trazem uma estética pop rock que talvez não estivesse tão presente nos discos anteriores. Como isso foi aparecendo para vocês?
Gabriel: No geral, o disco reflete bem o que estávamos escutando na época da composição: Tame Impala, The War On Drugs… Eu estava ouvindo bastante o terceiro disco do Twenty One Pilots. Eu queria sair muito da zona de conforto. Eu me esforcei muito para fazer diferente nesse disco. Eu estudei muitas técnicas de voz.
TMDQA!: É muito maneiro ver um artista sair da zona de conforto e explorar novos mundos. Eu acho que isso tende a agregar positivamente a qualquer tipo de sonoridade. Eu senti isso no Praiero. Dá para perceber certo esforço em sair da comodidade. Isso é incrível!
Gabriel: No sentido da banda, a gente usou muito teclado. A gente usou um timbre “Legião Urbana“. O Rafa e o Caio também foram atrás de complementos para seus instrumentos. A gente pirou muito nisso. O Nicholas também passsou a usar muita bateria eletrônica, mesclando os beats com a bateria acústica. Foi bem legal porque saímos da zona. Agora, em questão de letra, acho que as composições são como “primas” das canções do segundo álbum, no sentido de ser muito “à flor da pele”, muito pessoal. É cem por cento emoção, com temas mais adultos. Isso reflete nosso estado atual. Cada um está na sua respectiva casa. Eu estou com filho pequeno… Estamos bem diferentes do que éramos na época do praieiro, quando morávamos juntos.
TMDQA!: É um disco mais imersivo na temática também, então.
Gabriel: Talvez algumas dessas músicas tenham sido escritas nessa transição. “Sem Você Eu Não Presto” eu compus quando estava saindo da casa da banda. Eu me abri para a espiritualidade, no sentido de querer estudar mais e me permitir mais. Aí o Caio chegou com “Deja Vú“, que tem tudo a ver também! Estávamos falando sobre a mesma coisa. O Rafa também estava passando por uma fase absurda de amadurecimento. No fim das contas, estávamos fazendo a mesma coisa. Eu estava estudando meditação na época. Estava lendo o livro “Autobiografia de um Iogue“. Tem uma frase que diz que, quando você aprende a meditar, você descobre também que carrega dentro de si um paraíso portátil. Você acessa esse paraíso de onde você quiser, mesmo o mundo estando um caos. Nossa reação a esse caos foi justamente olhar para dentro. Assim, fechamos o conceito do disco.
“Tem um pezinho na psicodelia”
TMDQA!: Vocês conseguem classificar o disco de alguma forma?
Gabriel: Ele é um disco bem pop, mas tem um pezinho na psicodelia. Acho que muito disso se deve à produção de Paul Ralphes. Ele tem essa pegada de deixar tudo redondo. Curtimos muito trabalhar com ele. As músicas, se você ouvir com o ouvido além do polimento da produção, têm um pouco de psicodélico. Ele tem uma produção pop, mas a composição é outra coisa. Tem um refrãozão, mas a gente viaja. Até a “Sem Você Eu Não Presto“, que é bem pop, por exemplo, tem uma estrutura muito louca.
TMDQA!: Em termos de referências, você citou Tame Impala, Twenty One Pilots… Mas também lembrei um pouco do Clube da Esquina ao ouvir o disco. Uma coisa que eu gosto muito de pensar, quando um artista faz um álbum, é no jeito que determinada sonoridade saiu. Vocês misturaram muitas referências, sejam elas nacionais ou internacionais. Eu queria saber como vocês desenvolveram as novas músicas a partir das referências citadas. O que vocês estavam ouvindo na época? O que conheceram de impactante?
Gabriel: Eu sei que o Caio e o Rafa estavam devorando muito Mac DeMarco. Eu estava mais na onda do The War On Drugs e do Twenty One Pilots. Todo mundo pirou no Currents, do Tame Impala, mesmo esse disco sendo de 2015. Também é muito prazeroso quando a gente pega um instrumento novo e acaba viajando nele. Eu compus muito no piano para esse disco, então as músicas acabam naturalmente saindo diferente. Talvez por isso que as canções soem tão intimistas. A gente comprou um bocado de pedais diferentes. O Rafa uns pedais muito loucos. Tinha um de phaser que a gente queria colocar em toda música (risos).
TMDQA!: Gosto de pensar nesse disco como uma busca por respostas, na ideia de se reconhecer para mudar o mundo. Gosto de pensar também que todo disco quer dizer alguma coisa. Vocês terem lançado esse disco, com essas músicas, no Brasil de 2019, certamente significa alguma coisa. O que isso tem a ver, para vocês, com o Brasil de hoje em dia?
Gabriel: A gente acabou se acostumando com coisas ridículas, com esse ambiente de violência, com essa loucura. Em 2018, quando estávamos compondo bastante, as notícias eram muito chocantes. Veio com força essa coisa das fake news, da violência verbal… Eu acho que todo mundo se sente muito mal com essa situação toda. Acredito que existam pessoas que se arrependem do que fizeram. Acho que precisamos ficar fortes para resistirmos. Por falar em resistência, todo mundo da banda foi para aquele show incrível do Roger Waters em São Paulo. Foi uma apresentação muito forte que nos tocou profundamente.
As músicas acabaram saindo assim porque, da minha parte, eu estava em um processo de autoconhecimento, de começar a aprender a meditar e a ver esse tipo de coisa. Eu acho que eu sobrevivi, de certa forma, por causa disso (risos). Quantos amigos e familiares queridos falaram coisas absurdas? Como sobreviver a uma loucura dessas? Eu acho que, em meio a isso tudo, um mergulho para dentro de si mesmo foi a melhor coisa que nós, enquanto banda, conseguimos fazer. Se alguma coisa vai salvar este país, eu acho que é a autocrítica.
“Quisemos traçar nosso próprio caminho”
TMDQA!: Mudando de assunto, como vocês estão montando o repertório dos novos shows, considerando que a Selvagens é uma banda que tem estilos diferentes a cada fase que vive?
Gabriel: A gente tem ensaiado bastante, porque é um disco muito diferente mesmo. Na verdade, a gente só vai saber como vai ser quando subirmos no palco. O maior barato de lançar um disco novo é a oportunidade de voltar para aquele começo, quando quase ninguém sabe cantar as músicas. As pessoas ficam lá contemplando. Eu estou louco para ver como vai ficar. Vamos ver como o disco vai crescer, e quais músicas vão ter um desempenho melhor.
Vai ser legal também a gente fazer 10 anos de banda e de repente parar de tocar muita coisa. Aquela época já passou. Quantas vezes a gente não terminou o show tocando “Mucambo Cafundó“? Eu sei que muitos fãs ficam enfurecidos, mas é isso mesmo. A gente precisa evoluir. Não é que a gente nunca mais vá tocar algumas faixas, mas a gente precisa valorizar o disco novo inteiro. Das coisas antigas do Selvagens, estávamos pensando em resgatar o que a gente não tinha tocado muito na turnê do Praieiro. A gente está com 10 anos de banda. Para sobrevivermos como artistas, precisamos nos reinventar.
TMDQA!: 10 anos, né… Considerando este tempo todo, como vocês enxergam a evolução de vocês enquanto artistas e a evolução da música brasileira? Quando vocês começaram, se pararmos para pensar, sequer existiam as plataformas de streaming.
Gabriel: A gente chegou em São Paulo em 2013. Nesse ano, estávamos lançando o segundo disco da banda, pela Universal. A produção de CDs ainda era uma ideia forte. Foi também o ano em que o Spotify chegou ao Brasil. A gente vê que já estamos muito velhos (risos), porque a gente praticamente “estreou” o streaming com a Universal. Por sinal, também foi o ano em que a MTV acabou. A gente foi lá no último dia. Todo mundo chorando… Foi uma transição louca.
Do segundo para o nosso terceiro disco, foi uma adaptação louca. Com relação à música, foi engraçado. Em 2009, quando a gente estreou, o fim do Los Hermanos, que acabou oficialmente em 2008, ainda era muito recente. Eu lembro que muita gente tentou ocupar esse vazio que ficou. Em nossas primeiras conversas, a gente já falava em fazer algo bem diferente de Los Hermanos, embora a gente gostasse muito. A gente não quis calçar os sapatos deles. Quisemos traçar nosso próprio caminho, falando sobre Fortaleza e tal. E cá estamos, 10 anos depois.