Cada um vive a sua própria vida. Temos nossas motivações, nossos objetivos, nossos sonhos, nossas ambições… O que somos, na verdade, é resultado de um conjunto de fatores sociais que nos transformam a cada dia. Nossa família, nossas amizades e, talvez o fator mais importante, a nossa localização acabam influenciando diretamente na nossa visão de mundo.
Dito isso, o lugar onde moramos acaba certamente nos presenteia com seus hábitos culturais, como vestimenta, modo de falar e hábitos noturnos. Por outro lado, ele nos limita, fazendo com que outras culturas pareçam estranhas.
Quem mora em um prédio à beira da praia de um bairro nobre dificilmente entende as necessidades dos moradores de uma favela ou comunidade. Não entendem, de fato, a sua luta diária por alimentação, moradia e lazer.
Aí entramos em uma questão importante: empatia. É importante nos colocarmos no lugar do outro. Com uma empática premissa, a banda Mulamba foi até a Ocupação 29 de Março, em Curitiba, para retratar e buscar entender melhor a realidade de quem vive em comunidades periféricas.
O resultado dessa experiência está no clipe de “Vila Vintém“, faixa que integra o homônimo álbum de estreia da banda (que é, por sinal, o melhor disco nacional de 2018).
“Eles têm muito para nos ensinar”
A Ocupação 29 de Março foi incendiada no final de 2018, durante uma ação policial. O fogo destruiu casas e prejudicou seriamente a vida dos moradores. Desde então, visto o descaso das autoridades, um grande movimento de solidariedade dos moradores da cidade tem ajudado a comunidade a se reerguer. Aos poucos as moradias vem sendo reconstruídas.
Conversamos sobre o lançamento com a baterista Caro Pisco. A conversa se desenvolveu incluindo também os temas da empatia e a polêmica questão do lugar de fala.
Confira abaixo o clipe e o papo na íntegra:
TMDQA!: “Vila Vintém” é uma música super necessária. As imagens são muito necessárias, já que muita gente nem sabe o que está rolando em determinados lugares. Como surgiu a ideia do clipe?
Caro Pisco: Aquela letra, toda forte, é da Cacau. Ela escreveu enquanto ela morava no Rio de Janeiro, sobre a Vila Vintém, uma favela de lá. Quando resolvemos fazer este clipe, a gente resolveu ir na Ocupação 29 de Março, sem roteiro mesmo, para ver como é. A canção pedia algo verdadeiro, que fugisse de roteiros. E não seria certo a gente falar sendo que não sabemos como funciona esse rolê. A gente foi lá e conheceu todo mundo. A energia de lá é incrível. É um pessoal que se importa uns com os outros. A gente trocou uma ideia com alguns moradores. Um dos caras era o Elidieu, que aparece no clipe. Ele contou que era haitiano e que atearam fogo em sua casa. Quando chegamos lá, ele estava começando a reconstruir sua casa. As imagens do vídeo são reais. É bem forte estar envolvido com algo assim.
TMDQA!: Como foi a reação dos moradores diante da iniciativa de vocês em gravar um clipe lá?
Caro: No dia em que fomos conhecer a ocupação e trocamos uma ideia com o Elidieu, ele falou uma parada que eu não vou esquecer jamais. Ele falou que a vida deles melhorou muito depois do atentado. Depois disso, já que virou notícia aqui em Curitiba, as pessoas começaram a se mexer. Começaram a cobrar respostas da Prefeitura em prol de ajudar os moradores com estrutura, saneamento… Se está melhor para ele agora, imagina como estava antes!
TMDQA!: É como se não existisse o diálogo, como se existisse uma barreira que não era para existir.
Caro: A gente tenta muito fazer rolê na periferia, para promover essa troca. Eles têm muitos rolês da comunidade deles. Eu acho que é mais do que obrigação nossa, do pessoal que tem mais condição, de tentar entender o que se passa. Eles têm muito para nos ensinar. É uma outra forma de lidar com a vida, que me soa mais humana. A ideia inicial, para lançar o vídeo, era fazer uma festa lá na ocupação. No dia, teve um temporal, e acabamos tendo que adiar. Mas a ideia era levar para lá. A gente conversou muito entre si enquanto concretizávamos a ideia, porque tem muita dessa coisa de lugar de fala e de não expor as pessoas lá. Mas eles acharam massa. Receberam a gente muito bem! Estamos muito felizes com o resultado.
“Você não sabe a dificuldade que os outros vivem”
TMDQA!: O que essa experiência do clipe adicionou à vida de vocês?
Caro: Eu não posso falar em nome de todas as meninas, mas minha opinião é que essa experiência me fez crescer muito. Somos muito diferentes umas das outras, temos vivências muito diferentes. Eu aprendi muito com a Cacau, porque ela veio da periferia de Pelotas. Você acaba olhando de outras formas. É uma parada que nos engrandece. As pessoas não ligam normalmente, né? Você não sabe a dificuldade que os outros vivem. Trata-se de conseguir enxergar o outro, de se colocar no lugar do outro, para tentar entender as prioridades de cada um. A gente chegou na ocupação e tentou fazer um rolê nosso, sem grana envolvida. Era algo que a gente queria fazer para movimentar o negócio das coisas lá dentro.
TMDQA!: A música traz uma mensagem importante. Ela é intitulada a partir de uma comunidade do Rio de Janeiro. Como você acha que a música consegue ajudar as pessoas a pensarem a respeito dessa causa?
Caro: Sabe aquilo do “Gentileza Gera Gentileza”? Eu penso que isso se aplica a todos os rolês. A ideia é ter a intenção boa, fazer coisa boa para o mundo. Nós temos essa merda de governo aí, que fica vomitando um monte de discursos de ódio. Queremos passar o contrário disso. Quando fazemos uma música dizendo para as pessoas se amarem, queremos que as pessoas externalizem isso. É como um mantra. Você começa cantando uma música e depois passa a entender o que está cantando. É tipo o É O Tchan!, que hoje nos perguntamos o porquê de cantarmos aquilo. Hoje em dia temos mais essa consciência. Queremos bater na tecla da coisa boa, de olhar o outro.
TMDQA!: Desde o lançamento do disco até hoje, como vocês veem a repercussão das músicas e mensagens da Mulamba?
Caro: Eu acho que, em um geral, é muita coisa boa. Quando fazemos uma parada assim, acessamos vários lugares. O disco fala sobre várias coisas, desde tragédia ambiental até o amor. Para nós e para algumas pessoas, esses depoimentos esquentam, como um abraço, que dá forças. Depois de lançarmos o disco, começamos a tocar mais. Vimos também que mais bandas de mulheres surgiram. Eu só consigo pensar em coisas novas para nós. Mas mais importante do que lançar algo é lançar algo em que você acredita.