É estranho ficar o tempo inteiro em casa. É estranho não sair e não ter a liberdade para abraçar, beijar ou ter qualquer tipo de contato com outras pessoas. Apesar do ótimo esforço da classe artística em nos presentear com o conteúdo das ótimas lives, ainda é estranho ver uma apresentação e não sentir o calor, não pular junto, não interagir com a pessoa ao lado… Nesse cenário, faz falta um show presencial do BaianaSystem.
Conhecido por suas apresentações catárticas, o grupo viu em meio à crise do coronavírus o desafio de continuar na ativa mesmo diante da necessária política de isolamento social. Para o Baiana, não basta apenas um voz-e-violão para representar sua riqueza instrumental e estética. Isso acaba inviabilizando a proposta das lives, o que faz com que os fãs, adeptos ao grupo como um crente à sua religião, se mostrem cada vez mais sedentos.
O choque ainda se potencializou diante do período em que a situação foi se mostrando crítica. Após o primeiro Carnaval do mais recente disco O Futuro Não Demora, a banda foi da folia ao isolamento social. As várias ideias matutadas durante aquela época (que poderiam vir a se tornar novos sons) tiveram suas asas cortadas pelo vírus que assola atualmente a população mundial.
Mas e se dissermos que o Baiana conseguiu encontrar um método satisfatório de produção caseira e que está trabalhando em um novo lançamento? Pois é isto mesmo que está acontecendo! A banda prepara, ainda para Abril, o lançamento de O Futuro Dub, um disco de releituras dub das faixas de seu disco mais recente. As novas versões estão sob a inventividade do renomado produtor musical Buguinha Dub, um dos maiores especialistas no assunto.
“O dub é o que aguça os nossos sentidos”
O flerte entre o BaianaSystem e a estética dub não vem de hoje. Isso porque a influência está presente desde o disco homônimo lançado em 2010 (onde inclusive há a participação de Buguinha). Desta vez, no entanto, o grupo se deixou levar por essa incrível técnica de mixagem que tem ganhado cada vez mais espaço no universo musical.
Por telefone, tivemos a oportunidade de conversar com Russo Passapusso. O emblemático vocalista do Baiana nos deu uma aula sobre dub, em um papo que também abordou temas como introspectividade e produtividade em tempos de quarentena.
Confira abaixo o papo na íntegra (e #FiqueEmCasa). A versão dub do disco deve sair até o final de Abril.
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TMDQA!: Qual a relação do BaianaSystem com o dub? Ele está presente na sonoridade da banda desde o primeiro disco, mas de onde surgiu a ideia de lançar um disco, por assim dizer, focado na estética dub?
Russo Passapusso: A gente vem de uma fusão grande de expressões musicais. Quando o Baiana surge, ele surge muito enraizado nas percussões da cultura do reggae. Isso porque o reggae tem muitos derivados e muita mistura. A gente tem influência de gêneros daqui, como o samba-reggae e tudo mais da música baiana, que também carrega toda essa estética. Porém, as pessoas não conheciam muito a estética do dub. O dub é o que aguça os nossos sentidos e há muito tempo que colocamos ele nos nossos trabalhos. O próprio Buguinha Dub já trabalhou com a gente em versões de “Jah Jah Revolta” e “Frevofoguete”, que entraram no nosso primeiro disco
Após o contato com aquela multidão do Carnaval que a gente adora, a gente voltou para casa e se deparou com essa recomendação do confinamento, diante dos acontecimentos do coronavírus. Imagina como é o choque cultural de estar dentro desse processo e, de repente, quando você mais quer sair e tocar, você é inserido dentro desse confinamento. A gente não queria parar de produzir, então passamos a gravar individualmente de nossas respectivas casas. Aí chamamos o Buguinha e ele topou fazer de casa. Ao receber a primeira mixagem dele, a gente ficou sem acreditar na qualidade do material. Era aquilo mesmo que a gente queria!
TMDQA!: O dub é um gênero musical jamaicano que tem ganhado muito espaço na musicalidade da nova cena da música mundial. A que você relaciona esse grande momento do dub?
Russo: Depois de um tempo, o dub passou a ser relacionado não apenas com o reggae. Qualquer música pode ter uma espacialização dub. A dimensão sonora muda e te leva para outro lugar. A gente paquerou o trabalho de grandes engenheiros de som que fazem essa estética. Eles ajudam a tirar a música da padronização de som. O dub já é algo que faz parte do mundo. Hoje a gente vê muito isso nas bandas pop de hoje. A gente fala muito que o rap é o novo pop, dentro da música urbana e tal. Mas a estética da Jamaica é a base do drum & bass, faz a música eletrônica e influencia o hip hop. Abriu caminhos para o mundo da música pop.
Você não consegue imaginar, por exemplo, o Daft Punk sem o dub. Não existiria toda essa cultura da música eletrônica. O dubstep veio porque o dub se mesclou com o rock e os graves começaram a ficar mais agressivos. Surge essa sensação do “uá uá”, que soa bem tecnológico. E faz sentido esse movimento, já que começamos a ter contatos mais tecnológicos. Isso tem tudo a ver com o crescimento da cidade também. O humano passou a ficar mais acostumado com determinadas estéticas sonoras. Essa sensação é passada pela cultura do dub. Você começa a perceber, inclusive no silêncio, o valor do som.
“Buscas não pelo refinamento, mas, sim, pela originalidade”
TMDQA!: Em tempos de quarentena, como está sendo esse processo? Sei que grande parte diz respeito à produção do Buguinha, que está em Olinda, mas como está sendo essa troca entre vocês sobre o disco?
Russo: É difícil porque é uma transformação. Nos processos anteriores, já estávamos acostumados à possibilidade de nos encontrarmos no melhor estúdio para poder fazer o som. De repente, estamos todos em nossas respectivas casas, e nem podemos mandar uma placa para o maestro gravar por cima, por exemplo. Com o Buguinha, estamos passando tudo em fita, naquele processo analógico. Essa estética lo-fi com a qual estamos gravando se encaixa perfeitamente com esse tratamento que o Buguinha está dando às músicas.
A gente percebeu também que existe uma concordância de efeito de trabalho, porque, de repente, fomos submetidos às mesmas privações. O dub é criado muito em cima das privações. Isso acontece muito na música. Se você tira um dedo de um cara, ele inventa um novo jeito de tocar violão. O dub traz a inventividade em cima dessas precariedades da coisa. São sons diferenciados que não seguem padrões, resultados de buscas não pelo refinamento, mas, sim, pela originalidade. Para nós, acabou sendo a melhor forma. Estamos trabalhando muito com inventividade! É tudo experimentação; um quebra-cabeça dentro das possibilidades que a gente tem.
TMDQA!: É interessante traçar esse paralelo entre a produção dub e o momento do mundo atual. Por sinal, o próprio O Futuro Não Demora traz essa mensagem de esperança. Comparado aos discos do Baiana, este é um disco mais “para dentro”, mais reflexivo. É uma ideia que serve bem para refletir sobre a mensagem das letras sobre uma estética diferenciada.
Russo: Totalmente! Ao mesmo tempo que é diferenciada, se encaixa completamente com esse momento! É como se o disco acompanhasse as pessoas durante seus momentos. O Futuro Não Demora nasceu, foi para as ruas e viveu seu primeiro carnaval este ano, com todo aquele contato físico das multidões. As músicas participaram desse contato todo entre as pessoas. De repente, elas são colocadas dentro deste outro processo, em uma outra estética e outro ambiente. A música está sofrendo o mesmo processo de libertação e de inventividade que nós estamos vivendo hoje. Foi muito bom perceber isso: o dub enquanto dança, inventividade, possibilidade de locomoção…
Eu sou apaixonado por essa estética dub e sou apaixonado pelo disco original. Sempre falo para os meninos que é o disco que eu mais vou gostar na vida. Eu acho que o ele, sendo intitulado O Futuro Não Demora e com versos como “Já aconteceu com você e aconteceu comigo”, fora as questões ligadas à água, ao fogo e ao centro da terra, tem mais música brasileira. Tem vários ritmos nossos e, quando ouvimos isso, a gente “volta para dentro”. É essa visão introspectiva, de reconhecer que aquilo é um ritmo seu.
Colocando isso em paralelo com esses ritmos externos, com a carga do reggae, isso cria uma mistura que traz essa questão da antropofagia. Não só esteticamente, mas ideologicamente também, por causa das letras. O objetivo é fazer com que esse novo som aguce os sentidos. Vai ser uma experiência muito sensorial, que é o que acontece muito nos shows do Baiana. É uma forma de passar a sensação do ao vivo, tirando as questões espaciais. Isso sem falar na multidão de referências que o Buguinha está trazendo também!
“Sistema de replantio musical”
TMDQA!: Falando mais sobre as músicas, eu sinto que é como se as canções do Baiana não conseguissem se encerrar em si só. A gente vê isso com clareza nos shows do grupo, com versões mais longas e mais profundas das canções, mas vocês já fizeram isso em estúdio. Em 2017, vocês lançaram o Outras Cidades, com remixes de vários hits do grupo, e agora estão lançando um novo disco com novas versões. Você também tem essa percepção? Como é, para vocês, repaginar instrumentalmente as canções e, ao mesmo tempo, manter a mensagem?
Russo: É um processo de terapia. No BaianaSystem, a gente faz muito desse sistema de replantio musical. Eu pego letras e continuo. Pego pedaços das músicas e continuo. Se a gente pega “Capim Guiné” e coloca ao contrário, começou a virar o groove arrastado que serviu de base para “Cabeça de Papel”. Uma música dá na outras. “Terapia” vira “Playsom”, que vira “Saci”… Isso vem muito da música jamaicana, de usar o instrumental de uma música para outra letra. No soundsystem jamaicano, você fica 40 minutos ouvindo o mesmo instrumental enquanto vários cantores versam letras diferentes. É reciclagem, o que tem muito a ver com os dias de hoje, de não jogar um material fora e reaproveitá-lo ao máximo. Dentro desse replantio musical, a cultura do dub vem muito forte.
“Como a mensagem se mantém?” é uma pergunta muito boa, porque você também fica atento aos aspectos instrumentais do BaianaSystem. Muitas vezes, as pessoas acostumadas com o hip hop e com as culturas de beats mais homogêneos, sem muitos instrumentistas, se atentam mais à letra. No Baiana, nós temos instrumentistas. Tem a guitarra baiana que funciona como uma voz. É como se fosse um cantor que dobra e às vezes até duela comigo. De repente, víamos as pessoas cantarolando as linhas do Beto, e aquilo passava um sentimento absurdo. A cultura do dub é isso. Esse replantio, portanto, abre tanto a possibilidade auditiva quanto de criação das músicas. É o ditado que diz que “os segredos estão nos detalhes”.
TMDQA!: E o dub tem desenvolvido seu espaço na música brasileira há um certo tempo já, certo? Lembro que O Rappa já trazia alguns elementos. Mais atrás, nos anos 80, os Paralamas do Sucesso incorporaram essa estética também. O Cidade Negra chegou até a lançar um disco de dub no final dos anos 90. Uma vez que as pessoas ainda não entendem com muita clareza o que é o dub, eu queria que você desse dicas de artistas dub para a galera começar a se inspirar e entender melhor do que se trata esse movimento.
Russo: Como um bom exemplo vou dar disco o Dub Side Of The Moon (do Easy Star All-Stars). As pessoas todas conhecem Pink Floyd, então elas vão entender quando ouvirem. Outro disco de dub que eu acho incrível é o Super Ape do Lee “Scratch” Perry e sua sequência, o Return Of The Super Ape. Qualquer disco do King Tubby é interessante, porque é a base de tudo. O Mad Professor tem aí suas mixagens incríveis.
Sobre os nacionais, esse que você citou do Cidade Negra (Dubs, de 1999) é incrível porque tem essa referência brasileira. E, claro, tem o Vitrola Adubada, do Buguinha Dub. Para mim, é um clássico que traz essa estética. Além disso, nos soundsystem do Brasil, como Digitaldubs e Ministereo Público, você vai encontrar muitos dubs, tanto para a estética do dancehall, quando a releitura da própria coisa do dub.
“Colocando muito material para fora”
TMDQA!: O Baiana é um grupo que está sempre na ativa. Desde o lançamento da versão original d’O Futuro, vocês já disponibilizaram oficialmente as novas faixas “Cabeça de Papel”, “Miçanga” e “Corrida Elétrica”, além das ótimas versões estendidas de “Água” e “Fogo”. E com a “descoberta” dessa nova forma de produção, os fãs terão mais novidades autorais durante a quarentena?
Russo: O Baiana tem se mostrado uma banda “de estúdio”, que está colocando muito material para fora. A gente queria muito estar tocando, porque sabemos que os fãs entendem o nosso show como completo contato físico, quase bebendo o suor do outro (risos). A gente preferiu acelerar esse processo de produção todo para, quando pudermos sair de casa, chegarmos com bastante material novo. Nosso interesse é acelerar cada vez mais esse nosso processo interno de descoberta para o público em casa. Esse é o caminho. É feito em casa. Fique em casa! É a nossa saída para essa situação. Meditem e pratiquem o processo de autoconhecimento.
TMDQA!: Que dica você daria para os artistas neste momento de isolamento social? Apesar de tudo, a produção artística não pode parar!
Russo: Eu acho que isso está acontecendo de uma forma incrível, graças a essas lives. É claro que existem diferenças entre um artista solo e uma banda, por exemplo. Se eu pego um violão aqui e começo a tocar, não é como um show do BaianaSystem e não vai abraçar a coletividade mais ampla do nosso grupo. Isso também vai muito ao encontro das ferramentas que esses músicos possuem dentro de suas casas. É preciso achar uma estética que permita o seu meio de produção caseiro. É importante para que a gente não caia na armadilha de colocarmos coisas de menor qualidade dentro do processo. Existe um caminho para colocar coisas de qualidade tão forte quanto as gravações anteriores se você acha a maneira certa de comunicar. Não é ter os melhores equipamentos, mas sim o que você quer tirar com aquela música!